Uma bússola que nos orienta para lá dos ‘clichés’

Uma bússola que nos orienta para lá dos ‘clichés’


Bússola, do francês Mathias Enard, é um romance ambicioso que procura salvar o mundo de falsas fronteiras e diferenças na relação entre o Ocidente e o Oriente.


«Na minha cabeça, não cesso de jogar roleta russa». Um verso de Tom Waits que lança um rastilho e explode em ecos na mente de qualquer hipocondríaco. É assim que encontramos um homem, de noite, num quarto em Viena, frente à insónia, imaginando-se condenado na véspera de ir buscar os resultados de uns exames clínicos. Fumando ópio, tomando o peso do gatilho, é a memória que dispara e Franz Ritter, o protagonista do mais recente romance do francês Mathias Enard (Niort, 1972), Bússola, vai repassar os anos da sua vida, num imersivo labirinto que explora os laços e a influência do Oriente na cultura ocidental, seguindo a história de amor entre dois arabistas.

Há um fio de perfume que nos conduz atrás de um vulto apaixonante, o de Sarah, uma investigadora com um fascínio pela identidade e história do Oriente. Nesta obra, que venceu em 2015 o mais prestigiado prémio das letras francesas, o Goncourt, Mathias Enard confiou ao protagonista as suas próprias memórias dos anos que viveu entre Damasco, Teerão e Istambul. Já o júri atribuiu o prémio ao livro pela forma como desmonta os «clichés» na visão do Ocidente sobre o Oriente. Como o autor disse ao_SOL, essa foi a forma que encontrou de falar da catástrofe que toma conta da Síria, conseguindo «ver para lá das chamas, além da destruição e da morte».

Antes do 11 de Setembro, antes da Primavera Árabe, e com uma licenciatura em Línguas Orientais, Enard passou uma década entre a Síria, o Líbano e o Egito, e verteu as suas experiências e erudição numa trama sedutora em que a ficção orquestra a realidade sob a batuta de uma fenomenal erudição que faz de Bússola uma obra que não deixa de nos dar lições de história, e ao mesmo um livro de viagens, uma narrativa fluida, embalando-nos na intimidade de Ritter, que além de tudo é um musicólogo e amante de poesia, um guia ideal.

«O que me interessa é dar a conhecer e a ver a forma como estas culturas orientais e ocidentais, ao longo dos séculos, se mesclaram e utilizaram elementos alheios para se modificarem», referiu o escritor francês ao SOL. «A literatura tem de cumprir um papel decisivo e que passa por ir além do que podemos ver nas notícias, na televisão, neste mundo que é cada vez mais conectado mas também, de certa forma, muito superficial», adiantou. «Aquilo que podes ver no Facebook ou no Youtube é limitado. Ao contrário, a literatura pode ir muito mais fundo, porque pode ocupar-se de coisas que não se ficam meramente por um nível informativo, mas permitem construir uma experiência real do ponto de vista da empatia para o leitor».