A fome como arma de guerra


Durante a maior parte da história da espécie humana o recurso à força foi a principal forma de resolver conflitos, quer entre indivíduos, quer entre Estados.


O aparecimento do Estado foi de par com um tendencial monopólio da força pública. Quanto mais forte o Estado, maior o grau de concentração do uso da força nas suas mãos. No plano das relações entre Estados o uso da força como forma de solução de litígios manteve-se pujante até ao termo da I guerra mundial, com o direito a fazer a guerra como um dos atributos da soberania. A Carta das Nações Unidas trouxe a novidade duradoura da proibição do uso da força mas salvaguardou o direito inerente de legítima defesa, a exercer na ausência de actuação por parte do Conselho de Segurança, situação aliás frequente.

A consciência dos flagelos da guerra levou à codificação pactuada das regras relativas às suas práticas, com identificação de condutas e armas proibidas e a obrigação de proteger os não combatentes. A diferenciação das populações civis (e a protecção dos combatentes que se rendem ou que ficam hors combat) está plasmada nas quatro convenções de Genebra de 1949 e nos dois primeiros protocolos adicionais. A maior parte das normas de direito internacional humanitário (DIH) tornaram-se costume internacional geral, são aplicáveis a todas as partes num conflito, quer seja internacional, quer seja interno.

Ao contrário do que aconteceu durante a maior parte da história da humanidade, o cerco de uma população civil e o recurso à fome para dar origem a uma vitória sobre um inimigo que se encontre entre a população civil, corresponde a uma prática proibida pelo DIH. O Estatuto de Roma que deu origem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) tipifica como crime de guerra “provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, nomeadamente, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra” (artigo 8º nº 2 b) xxv). Em 2019 foi acrescentada à alínea e) do nº 2 do artigo 8º uma nova sub-alínea xix) com o mesmo tipo penal, agora para os conflitos armados que não têm carácter internacional.

Aplicando o DIH ao cerco que se verifica à faixa de Gaza constata-se facilmente uma situação de emprego proibido da fome como arma de guerra, quer se considere o conflito entre Israel e o Hamas como um conflito internacional (como defende a Autoridade Palestina, o Hamas e a maioria dos Estados) ou um conflito não internacional (como defende Israel).

Israel (e os EUA, a Federação Russa, a Bielorúdssia, a República Popular da China, a União Indiana, o Paquistão,…) não é parte no TPI. Mas tal não impede que seja responsabilizado, enquanto Estado perante o Tribunal Internacional de Justiça, e, a título de responsabilidade dos indivíduos, no que respeita à conduta dos seus funcionários e agentes, perante tribunais penais, pelas violações do DIH positivado nas Convenções de Genebra (de que é parte) e que, enquanto costume, também é aplicável a todos os Estados.

Qualquer Estado é livre de punir, por via do seu direto interno, as violações do DIH. A lei portuguesa qualifica como imprescritíveis o procedimento criminal e as penas para os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão. A mesma lei declara-se aplicável a factos praticados fora do território nacional, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega ao Tribunal Penal Internacional.

 

 

A fome como arma de guerra


Durante a maior parte da história da espécie humana o recurso à força foi a principal forma de resolver conflitos, quer entre indivíduos, quer entre Estados.


O aparecimento do Estado foi de par com um tendencial monopólio da força pública. Quanto mais forte o Estado, maior o grau de concentração do uso da força nas suas mãos. No plano das relações entre Estados o uso da força como forma de solução de litígios manteve-se pujante até ao termo da I guerra mundial, com o direito a fazer a guerra como um dos atributos da soberania. A Carta das Nações Unidas trouxe a novidade duradoura da proibição do uso da força mas salvaguardou o direito inerente de legítima defesa, a exercer na ausência de actuação por parte do Conselho de Segurança, situação aliás frequente.

A consciência dos flagelos da guerra levou à codificação pactuada das regras relativas às suas práticas, com identificação de condutas e armas proibidas e a obrigação de proteger os não combatentes. A diferenciação das populações civis (e a protecção dos combatentes que se rendem ou que ficam hors combat) está plasmada nas quatro convenções de Genebra de 1949 e nos dois primeiros protocolos adicionais. A maior parte das normas de direito internacional humanitário (DIH) tornaram-se costume internacional geral, são aplicáveis a todas as partes num conflito, quer seja internacional, quer seja interno.

Ao contrário do que aconteceu durante a maior parte da história da humanidade, o cerco de uma população civil e o recurso à fome para dar origem a uma vitória sobre um inimigo que se encontre entre a população civil, corresponde a uma prática proibida pelo DIH. O Estatuto de Roma que deu origem ao Tribunal Penal Internacional (TPI) tipifica como crime de guerra “provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, impedindo, nomeadamente, o envio de socorros, tal como previsto nas Convenções de Genebra” (artigo 8º nº 2 b) xxv). Em 2019 foi acrescentada à alínea e) do nº 2 do artigo 8º uma nova sub-alínea xix) com o mesmo tipo penal, agora para os conflitos armados que não têm carácter internacional.

Aplicando o DIH ao cerco que se verifica à faixa de Gaza constata-se facilmente uma situação de emprego proibido da fome como arma de guerra, quer se considere o conflito entre Israel e o Hamas como um conflito internacional (como defende a Autoridade Palestina, o Hamas e a maioria dos Estados) ou um conflito não internacional (como defende Israel).

Israel (e os EUA, a Federação Russa, a Bielorúdssia, a República Popular da China, a União Indiana, o Paquistão,…) não é parte no TPI. Mas tal não impede que seja responsabilizado, enquanto Estado perante o Tribunal Internacional de Justiça, e, a título de responsabilidade dos indivíduos, no que respeita à conduta dos seus funcionários e agentes, perante tribunais penais, pelas violações do DIH positivado nas Convenções de Genebra (de que é parte) e que, enquanto costume, também é aplicável a todos os Estados.

Qualquer Estado é livre de punir, por via do seu direto interno, as violações do DIH. A lei portuguesa qualifica como imprescritíveis o procedimento criminal e as penas para os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão. A mesma lei declara-se aplicável a factos praticados fora do território nacional, desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega ao Tribunal Penal Internacional.