Psicólogo João Nuno Faria. “Não sou apologista das políticas restritivas”

Psicólogo João Nuno Faria. “Não sou apologista das políticas restritivas”


O psicólogo recomenda o uso do telemóvel a partir dos 10 anos e do smartphone a partir da adolescência. Os pais devem ter poder de supervisão, mas não de policiamento.


As crianças começam a usar telemóveis cada vez mais cedo, mas que impacto pode ter no seu desenvolvimento?

Não existem obrigatoriamente grandes linhas orientadoras a dizer quando é que se deve entregar um telemóvel ou um smartphone a uma criança ou a um jovem e faço essa distinção pela diferença que os aparelhos têm. Da minha experiência e das minhas leituras de várias publicações costumo recomendar aos pais que antes dos dez anos, uma criança que ainda está em pleno primeiro ciclo, não tem necessidade na sua experiência diária para precisar de ter, quer um telemóvel, quer um smartphone. Depois quando entra para o segundo ciclo e até chegar ao terceiro, dos 10 até aos 12/13 anos, a criança aumenta a sua autonomia, já tem mais professores, mais aulas, um horário da saída e de chegada, algumas até vão sozinhas para a escola então aí aumenta a necessidade de estarem em contacto com pessoas de referência e, do ponto de vista do seu desenvolvimento, a entrega de um telemóvel será altamente adequado. A partir da adolescência, as necessidades sociais aumentam muito, quer para satisfazer as necessidades sociais, quer de procura de informação e de entretenimento faz sentido a introdução de um smartphone. Mas isto não é a Organização Mundial de Saúde que o diz, o que diz é que antes dos dois anos de idade, as crianças não devem entrar em contacto com ecrãs de proximidade, depois até aos cinco anos não devem ultrapassar os 30/ 60 minutos de utilização, mas deve ser uma utilização saudável e deve ser feita sempre na presença de um adulto que tem de servir como mediador da experiência. Ou seja, não é só entregar o smartphone durante meia hora para a mão da criança, é estar com ela, é explorar o vídeo que está a ver, é interagir e explicar para lá daquele conteúdo.

Não é dar autonomia…

Até aos cinco, seis anos, o adulto deve ser mediador e isso é absolutamente fundamental, até porque apesar de terem alguma autonomia na questão de carregar os vídeos não têm discernimento para se aperceberem onde é que estão a tocar, por isso, aumenta um certo grau de perigosidade se ficar completamente autónoma. A partir dos seis anos vai subindo a sua autonomia, já pode usar sozinha o ecrã e aumentar para duas, no máximo três horas por dia. Mas a interação com os ecrãs não é propriamente ter um telemóvel ou um smartphone. Habitualmente, a maior barreira que encontro é o facto de os pais dizerem que há colegas do seu filho que já têm smartphones e pensam que o seu possa ficar excluído. É preciso haver um equilíbrio entre bom senso e aquilo que é desenvolvimento adequado, isso é uma tarefa parental.

Problemas que há uns anos não se colocavam…

Mas tem imensas vantagens toda esta acessibilidade e permite capacitar as crianças desde cedo para o futuro tecnológico. Não podemos ficar absolutamente assustados e diabolizar este tipo de dispositivos que são muito valiosos e importantes, que podem contribuir muito para o desenvolvimento da criança quando devidamente utilizados, sem nunca esquecer os mecanismos de controlo que os pais têm físicos e digitais. Físicos estou a falar do estabelecimento de regras e limites de utilização propriamente dita no dia-a-dia e digitais estou a falar do controlo parental que deve ser utilizado até certa idade.

Principalmente quando um smartphone tem associado o acesso à internet…

Daí fazer a distinção do telemóvel e do smartphone. O primeiro será só para fazer chamadas, o segundo é que tem a conexão à internet. Essa evolução faz sentido à medida que a criança vai crescendo e que os pais vão depositando mais confiança na sua autonomia, na sua forma de gerir o dia-a-dia, mas os pais terão sempre de supervisionar. A regra é muito simples: eu com um filho de 13, 14 anos deixo-o sair de casa e ir onde quiser? Não, quero saber onde vai, com quem vai, a horas é que volta. Estas regras do mundo físico podem ser transportadas para o nosso mundo virtual. E se assim for, então como pai não posso nunca estar demitido da ideia de onde o meu filho anda virtualmente, a que horas é que sai e que chega ao mundo físico e com quem é que se está a relacionar. Naturalmente que para filhos mais novos tem que se ter mais atenção e para os mais velhos dá-se mais autonomia. Mas são as mesmas regras e as mesmas preocupações que enquanto pai tenho no mundo físico, apenas transporto e adapto para o mundo virtual.

Daí salientar o papel dos pais…

Supervisão. Há um conceito muito consensual no mundo da psicologia é que um papel de supervisão não é de policiamento. Policiamento dá ideia de um papel evasivo e não respeitador da autonomia crescente das crianças e dos jovens.

E como vê crianças de um ano ou pouco mais a verem vídeos no YouTube nos restaurantes para os pais estarem “descansados” a almoçar ou a jantar?

O meu primeiro pensamento enquanto pessoa é absolutamente crítico e vai contra ao que é indicado, porém, como pai acho que se desencadeia uma visão muito compreensiva de quanto tentador é enquanto estratégia, porque é realmente eficaz. Quando se entrega um desses ecrãs a estas crianças o objetivo é concretizado: a criança está entretida, os pais conseguem-se dedicar às suas prioridades, às suas necessidades, abdicando ter de pôr em primeiro lugar as necessidades da criança quando está à mesa. Caso contrário, é muito mais trabalhoso, mas é um trabalho que vale muito a pena, mas nem todos estão disponíveis para o fazer. Estar com a criança, brincar, fazer desenhos, ler um livro, etc. são muitas as alternativas para manter uma criança ocupada enquanto espera pela refeição, a questão é que estamos cada vez menos disponíveis, mais saturados, a precisar de tempos para nós e para aquilo que nos é importante fazer. Tenho a certeza que as pessoas que o fazem se forem questionadas se o devem fazer vão dizer que não. No meio da crítica que fazemos e a crítica mantém-se – não é o mais adequado para a criança – mas do ponto de vista das necessidades daqueles adultos resulta e, por isso, tenho uma valente dose de compreensão ao perceber quando isso acontece.

Por outro lado, principalmente nos adolescentes, aumenta o risco do sedentarismo e da obesidade infantil. Há um conjunto de experiências que as crianças deixam de viver por estarem presas aos ecrãs…

É válido. A Organização Mundial da Saúde quando estipulou estes tempos de ecrã nem sequer teve a ver com o impacto que tem nas dimensões psicológicas das crianças e dos jovens, a preocupação centra-se pelo risco do sedentarismo e sobretudo em relação ao desenvolvimento das doenças cardiovasculares que continuam a ser a principal causa de morte do mundo. E quando dizem não mais do que este tempo é porque desejam que as crianças e os jovens desenvolvam outro tipo de atividades para não estarem sentadas, a agir passiva ou ativamente sobre os ecrãs, porque este tipo de experiências aumenta muito o risco do sedentarismo e de todas as consequências que provoca, apesar de haver algumas companhias que se orientam para o desenvolvimento de tecnologias acessórias que juntam a prática desportiva aos videojogos. Há o exemplo da Nintendo que criou um sistema de interação com o jogo que passa pela execução de exercícios físicos para se conseguir jogar, mas mesmo assim, é uma gota porque a maior parte das experiências são sentadas, só focada naquela experiência, aliada do exterior.

E também aumenta o risco do cyberbullying

Os riscos são muito elevados, isso é sabido. Também existe cyberbullying dentro dos videojogos, mas este risco é mais elevado através das redes sociais e dos sistemas de comunicação. É no WhatsApp, por exemplo, que se verificam os principais casos. Mais uma vez entra a supervisão, não o policiamento, em que os pais devem estar muito atentos aos sinais de alerta e neste caso falo mais dos jovens. É preciso estar atento ao comportamento dos jovens, basta ver como pega no telefone quando nos aproximamos, se fica muito ansioso, se guarda o telefone, se fica muito atrapalhado, etc. Se isso acontecer podem ser sinais de que há uma relação problemática com a tecnologia e que pode estar a acontecer alguma coisa no sentido provavelmente do cyberbullying.

E qual deve ser o papel da escolas?

Sou coordenador de um grupo de pessoas que trabalham naquilo que se chama Núcleo de Intervenção no Comportamento Online e todos temos esta visão consensual de que não somos apologistas das políticas restritivas, porque isso é criar um artificialismo. Ou seja, passa a ideia de proibição enquanto está na escola para depois ter uma permissão total assim que passar o portão. Parece quase um corte com a realidade. Uma realidade que é proibitiva para passar para uma realidade totalmente liberta e permissiva. E ao negar-se totalmente a presença dos smartphones nas escolas estamos também a negar a existência destas tecnologias para os tempos letivos e não letivos e com isto estou a chamar a atenção para o incrível poder que os smartphones e os tablets têm no domínio da aprendizagem. Há escolas que usam modelos pedagógicos interessantíssimos recorrendo às tecnologias que potenciam o conhecimento das crianças a um nível que muito dificilmente os livros o fariam. Só professores é que o conseguiriam fazer. Nos intervalos existe um potencial riquíssimo que as escolas podem aproveitar usando estes instrumentos para tornarem os recreios mas convidativos, mais interessantes, mais estimulantes versus a maior parte do marasmo daquilo que são os recreios dos jovens a partir dos 13 anos. Há um campo de futebol e com ou sem telemóvel está sempre ocupado, um campo de basquetebol com ou sem telemóvel está sempre ocupado, uma mesa de pingue-pongue com ou sem telemóvel está sempre ocupado. Parece que quando existem alternativas de entretenimento e de estimulação de acordo com aquilo que os jovens precisam em cada idade a opção é para aí que recai a escolha, quando a oferta nos recreios é escassa, os campos e as atividades são incrivelmente limitadas virarem-se para o smartphone não parece uma alternativa estranha. Costumo dizer isto de forma muito provocatória: quando as escolas pegarem nos seus recreios e os transformarem em sítios verdadeiramente estimulantes para as crianças e para os jovens então vamos retirar os smartphones porque, nessa altura, os smartphones encontraram concorrentes à altura. Na nossa opinião, se os recreios forem mais estimulantes não acreditamos que o smartphone seja a primeira e a única opção.

Ainda há um grande caminho pela frente?

Atribuo isso ao efeito da geração. Quando nasci já tinha uma máquina de jogos em casas porque tinha um irmão seis anos mais velho, cresci a minha vida inteira com computadores, gosto de jogar videojogos, tenho redes sociais, portanto estou familiarizado com a questão da tecnologia. Mas a formação que dou a pais noto que muitos não estão assim tão familiarizados com a tecnologia, não conhecem os nomes dos jogos, nem as várias redes sociais que inclusive os filhos usam e os pais não têm conhecimento. E isso pertence a esta geração que é a última que se desenvolveu sem grande contacto com a tecnologia, ou seja, para pais de 40/50 anos porque quando esta geração nasceu a tecnologia não estava muito implementada, a nova geração de pais que vem a seguir já foi uma geração que lidou mais precocemente com a tecnologia e, por isso, tem muito mais a dizer e tem muito mais consciência dos benefícios e dos perigos. Quando dermos este salto geracional vamos encontrar uma geração bem mais consciente dos riscos e das oportunidades.