Gigi Riva. Apagou-se ao longe o Rugido do Trovão

Gigi Riva. Apagou-se ao longe o Rugido do Trovão


1944-2024 – Com o coração na Sardenha foi figura ímpar de toda a Itália.


Era Luigi mas, como sempre, em Itália chamavam-lhe Gigi. Foi amado e desprezado com a força bruta de um vinho da sua ilha, a Sardenha, com a agressividade de um carignano. Ah!, quem nunca provou um vinho tinto carignano, encorpado, rico, intenso, quase impenetrável, não pode saber o que é a Sardenha, essa ilha perdida a sul da Córsega e a norte da Tunísia, no Mar Tirreno, com o estreito de Bonifácio ali ao colher da mão como uma concha de água límpida, quase transparente. Depois, quando a sua carreira de futebolista começou a carrilar nos eixos de uma solidão insular que o levou a comandar o Cagliari, equipa da sua cidade do coração – porque, na verdade, nasceu em Leggiuno, na província de Varese, na região da Lombardia, no dia 7 de novembro de 1944 – ganhou a alcunha de Rombo di Tuono, o Rugido do Trovão, porque os pontapés desferidos pelo seu pé esquerdo eram tonitruantes, assustadores, assassinos. E, no entanto, Gigi era um destro. Um destro forçado, torturado, um menino a quem, na escola e em casa, amarravam a sua mão esquerda à força de cadarços para que escrevesse cópias e ditados com a direita. Não, o Destino não se amarra à força de cordéis. Riva libertava-se no campo, primeiro quando, de 1961 a 1963, jogou pelo Legnano, soberbamente batizado com o nome de Associazione Calcio Dilettantistica Legnano, que se limitou a três épocas na Série A, nos anos 40 e 50, e começou a mostrar a toda a exigentíssima Itália, que ama o calcio como ama Gina Lollobrigida e os Ferrari, um estilo peculiar de aplicar a velocidade repentina de cada vez que se aproximava de um defesa e, sem ele perceber ao certo como, lhe escapava pelo lado esquerdo antes de finalizar a obra de arte com esse toque quase diria de Sandro Botticelli, às vezes suavemente tal qual uma pincelada na Vénus que perseguia, às vezes apenas fundamental à moda de quem se cansa de fazer algo de tão belo que sente necessidade de fazer um rasgão na tela.

Carlo Vulpio, um jornalista e escritor de categoria, foi autor de um livro sobre Luigi Riva. Deu-lhe o título de Il Sogno de Achille. O sonho de alguém que soube sempre que tinha uma fraqueza num dos calcanhares e na primeira grande entrevista que deu não escondeu essa fraqueza: «A primeira realidade com que me deparei foi a pobreza. Eu era pobre. Os meus pai eram pobres. A minha família era pobre. O céu, mesmo com Deus, não iria nunca dar-me nada. Tinha de conquistar tudo». Agora e na hora da sua morte, aos 69 anos, sabemos que conquistou tudo, até o impossível. Só não conquistou, por mesquinhez, a plenitude do coração dos italianos.

Em 1964, Gigi Riva foi para Cagliari para não voltar mais. Todos o criticaram por escolher um clube mais pequeno do que a sua categoria aconselhava mas ele foi para o Cagliari com a convicção que iria transformar o clube à medida da sua imagem e venceu essa batalha como Aquiles venceu Heitor na Guerra de Troia. No dia 13 de setembro de 1964 estreou-se com a camisola bipartida a azul e vermelha e o emblema bem sardo dos quatro mortos de cabeça enfaixada, e perdeu frente à Roma por 1-2. Como Aquiles, Gigi não gostava de perder. Não gostava nada de perder. Essa derrota inicial marcou-o. Foi fazendo golos com a facilidade com que os garotos da Sardenha correm pelos campos estreitos onde cresce apenas a gipsofila. Foi o melhor marcador do campeonato italiano em 1966/67, 1968/69 e 1969/70. Com uma grande diferença entre essas três épocas: em 1969/70 o Cagliari tornou-se na primeira equipa italiana de fora do continente a conquistar o Scudetto. Era Gigi e os seus soldados. Os companheiros que entravam com ele em campo e diziam uns para os outros: com Riva podemos olhar o sol de frente e não ter medo, nunca ter medo!

O Gigi de Dalida podia ser napolitano e frustrado por ter sentido a vontade de emigrar para a América. Mas tinha muito de Gigi Riva. Recordam-se?: «Arriva Gigi l’Amoroso/Il rubacuori, gli occhi neri da insolente/Gigi l’Amoroso/Il vincitore senza cuor, ma così affascinante». Gigi «Il Vincitore!». E, depois… «Gigi?/Sei tu laggiù nel buio?/Aspetta! Lascia che ti guardi!/Ma tu piangi! Tu piangi Gigi?». Sim, Gigi Riva também teve direito a chorar e muito. A Itália chamou por ele no dia 27 de junho de 1965 e vestiu a tão linda camisola da squadra azzurra pela primeira vez contra a Hungria. Mais uma derrota na estreia – 1-2. Sonhava com a presença no Mundial de 1966, em Inglaterra, mas partiu a perna esquerda num encontro particular uns meses antes, frente a Portugal. Fez, no total, 42 jogos com a maglia dos Fratelli d’Italia e com 35 golos foi, no seu tempo, o topo-canoniere da seleção. Reganhou o mundo e o amor dos adeptos quando fez o golo que valeu a vitória da Itália no Europeu de 1968.

Só que a Itália começou a discutir Gigi. Que não era mais Gigi. Que não servia para ser o avançado que faria a diferença no Campeonato do Mundo do México, em 1970. Piero Marras gritou numa canção que Gigi não se discutia, que Gigi era eterno, que Gigi fazia falta à própria idiossincrasia dos italianos: «Dopo tanti calci di rigore/Troveremo insieme l’umiltà/Per ricominciare con più cuore/Quando Gigi Riva tornerà/Crescerà la solidarietà/Ci sarà un po’ più di umanità/E sapremo piangere davvero/Quando il sogno ci confermerà/Che non passerà più lo straniero/Quando Gigi Riva tornerà». Dois Gigi, Riva e Rivera, ainda marcaram, ambos no prolongamento, os golos decisivos daquele jogo infinito contra a Alemanha Ocidental (4-3), no Estádio Azteca, e que conduziram a squadra azzurra à final frente ao Brasil. Gigi Riva esteve lá, com o número 11 nas costas, o número dos canhotos, mas o Brasil era de um planeta desconhecido e ganhou de goleada – 4-1. Dois anos depois teve uma oferta generosa para e transferir para a Juventus. Recusou. Cagliari corria-lhe no sangue ainda mais do que a Leggiuno onde nascera. Era um emblema da Sardenha. Ainda surgiu no Mundial de 1974, na República Federal da Alemanha, numa demonstração de decadência que se alastrou a toda a equipa que acabou por nem passar a fase de grupos. Nas suas duas épocas derradeiras marcou oito golos no total na Série A. «Quando Gigi Riva tornerà/La partita ricomincerà/Grideremo insieme Italia, Italia/E patetico non sembrerà…». Palavras que o vento levou. Gigi Riva não voltou a ser o Rugido do Trovão. Nos últimos anos, a doença de Parkinson roubou-lhe os gestos. Já não fazia mais diferença se usava a mão direita ou a esquerda porque ambas se tornaram inúteis. Na última terça-feira ouviu-se ainda um soluço de trovão sobre os montes da_Lombardia…