Parece que à falta de bons exemplos atuais, a memória colectiva começa a ter dificuldades em recuperar parte da sua história. A altura do envolvimento democrático de forma geral, as reformas estruturais que eram produzidas e aplicadas neste e noutros países, as carreiras do setor público que eram competitivas, o Estado Social que funcionava e até os líderes que eram efectivamente exemplos cívicos e para a sociedade.
Gostava de dar um exemplo fictício para poder expor o que poderia reavivar as nossas memórias.
Para quem não sabe, o escritor búlgaro Georgi Gospodinov venceu o prémio Booker Internacional com o seu livro intitulado “Time Shelter”. Foi a primeira obra literária escrita em búlgaro a conquistar este galardão.
À data, para os interessados, o livro já está disponível em Portugal com tradução em inglês.
Para entenderem, de forma sumária, este livro relata a história de uma “Clínica do Passado” em que oferece um tratamento muito prometedor para quem sofre de Alzheimer.
Nessa clínica, cada piso do edifício reproduz uma década ao detalhe, transportando os doentes de volta aquele tempo.
Não irei contar o desenrolar nem o final desta “Clínica do Passado”, deixo para quem quiser ler o livro.
Mas queria usar este exemplo, de uma ficção em que poderíamos colocar qualquer pessoa a regressar a determinados períodos históricos, para analisar o bem que isto nos poderia fazer enquanto sociedade.
Hoje vivemos um total descrédito desacreditado, e que negativo é associar o peso destas duas palavras juntas, no sistema político partidário que sustenta a nossa democracia. Portugal é um país que politicamente está assente nos vários partidos políticos. Não somos uma sociedade, nem temos a cultura, de um partido personalizado num líder como acontece em França com “o Partido de Macron” ou mesmo em Itália com “o Partido de Meloni”.
Portugal fez nascer e crescer a sua democracia alicerçada na ideologia de um conjunto de partidos políticos.
Porém, hoje esquecemos as suas virtudes e sobretudo a sua importância.
Numa “Clínica do Passado”, se regressássemos à década de 1970 em que tantos reuniram, sem grupos de whatsapp para combinar e redes sociais para difundir ideias, para fundar partidos anos mais tarde; Em que tantos, de norte a sul de Portugal, estudaram e aplicavam os conceitos da Academia para aprimorar na prática um conjunto de propostas de políticas públicas que serviram para sustentar a sociedade em torno do Estado Social eficaz; Em que havia interesse de colaborar, do jovem de 18 anos ao seu avô de 65 anos, numa revolução que trouxesse uma liberdade democrática como tivemos o 25 de Abril;
Se Portugal vivesse, num fictício piso da “Clínica do Passado” de Georgi Gospodinov, novamente essa fase de encantamento e esperança pela democracia, será que agora em 2024 voltaríamos a ter uma participação massiva na vida cívica em que os melhores iam querer dar o seu contributo como na década de 1970?
Numa “Clínica do Passado”, se regressássemos à década de 1980, íamos viver a verdadeira criação do SNS português. Vínhamos do famoso Decreto-Lei que o país reconhece e atribui a Arnaut, pela sua aprovação no verão quente de 1979.
Infelizmente, creio não estar muito distante da opinião generalizada, somos um país daqueles que ditam e definem a memória histórica de Portugal em função da sua ideologia. Seja de esquerda ou de direita.
Eu prefiro acreditar no que a história nos deixou.
Em função disso, sobre o SNS a quem fantasiamos “Pais”, há um grande órfao do mérito. É a história que o diz, não sou eu.
Factualmente o célebre Decreto-Lei “de Arnaut” aprova as bases do que viria a ser o SNS. Porém, saibamos: 2 meses depois, em setembro de 1979, sem nada trabalhado no terreno nacional pelo SNS, esse Governo cairia.
Sem Centros de Saúde, que arrancam nos modelos que tinham nessa altura, haveria SNS? Sem os hospitais que são feitos por esse novo Governo haveria SNS? Sem as carreiras médicas, aprovadas por esse novo Governo, haveria SNS?
A resposta é não.
E o grande “órfão” de mérito de termos um SNS hoje em dia é o Primeiro-ministro que implementou tudo isto: Aníbal Cavaco Silva. Com todos os seus defeitos e todas as suas virtudes.
Será que se hoje, em 2024 quando é mais que unânime que nunca o SNS esteve tão deficitário, fôssemos para uma “clínica do passado”, os portugueses saberiam ver que Portugal lutou com Arnaut pelo SNS com grande responsabilidade e mérito de criar as grandes bases da sua aprovação – com maior apoio do centro-esquerda democrático – mas saibamos que posteriormente também houve toda um reconhecimento de mérito e grande trabalho também do então Primeiro-ministro Cavaco Silva – com um governo de maioria de apoio de centro-direita democrática – e que foi essa “união” e esse “respeito” ideológico que durante décadas deu ‘vida’ ao SNS?
Será que não é altura de vermos que a ideologia não resolve os problemas do SNS, mas que a base tem de ser a de 1979 e de 1980 em diante em que havia contributos de ambos os lados ideológicos? Será pedir muito que haja moderação e aceitação de propostas que são boas para o SNS, sem serem rejeitadas apenas por cunho ideológico?
E, para não andar em muitos pisos do edifício da “Clínica do Passado”, se recuássemos à década de 1990? Um terceiro piso, usando a ficção do vencedor do prémio Booker International.
A década de 1990 quando Portugal já fazia parte da União Europeia, quando tínhamos tanto orgulho dos nossos portugueses que emigravam na procura de um futuro melhor como igualmente tínhamos um profundo respeito pelos imigrantes que vinham para Portugal por motivos vários, fosse pela nossa livre democracia ou pelo continente europeu oferecer outros sonhos que outros continentes não davam, para contribuir para o nosso crescimento económico forte dessa década.
Será que em 2024, se recusássemos à vivência dessa década de 1990 de amor e respeito por quem vai e quem vem, saberíamos não aceitar políticas segregacionistas e por vezes xenófobas que hoje vemos serem ditas em órgãos de comunicação social por políticos que têm falta de respeito pela história e pela memória deste país de emigrantes e imigrantes?
Sei que não é possível viver num livro.
Mas Portugal, tal como é feito qualquer livro, tem de começar a escrever páginas que façam os seus “leitores” (leia-se “os portugueses”) sonharem por um futuro melhor.
Como sonharam e escreveram páginas de vida os portugueses de 1970 que fizeram história pela democracia plena e juntavam-se Portugal fora para construir o “25 de abril” e o nosso estado democrático.
Como sonharam os portugueses da década de 1980 que tiveram contributos de ideologia de esquerda e contributos de ideologia e um governo de direita para conseguir criar e sustentar bem um SNS que hoje definha por quezílias partidárias.
Como sonharam os portugueses do mundo da década de 1990 que respeitavam, recebiam bem e eram bem recebidos para onde escolhessem viver, trabalhar e ajudar as suas sociedades com tolerância, respeito e sem descriminação e xenofobia.
Poderiam existir vários pisos de uma “clínica do passado” para o nosso país atual. Não sei se seria solução para credibilizar e devolver esperança, unindo o país em causas comuns.
Mas sei que no passado tudo o que construímos, respeitámos e conquistámos foi quando entendemos que muito mais era o que nos unia do que aquilo que nos separava.
Ler será sempre bom. E podemos ler livros de ficção, como o que usei para esta reflexão, ou ler livros de história.
Talvez para Portugal crescer e se unir devêssemos voltar, não à “clínica do passado” mas sim aos Livros de História para sabermos voltar a ter memória. Porque, como sempre ouvi o meu Pai dizer, “quem não tem memória, não tem futuro”.