Lisboa com e sem camisa

Lisboa com e sem camisa


Gervásio Lobato foi o autor de uma das grandes obras jocosas da nossa literatura, entretanto caída no esquecimento: Lisboa em Camisa. Armando Ferreira tinha por ele uma admiração profunda. Respondeu-lhe com Lisboa sem Camisa mas a sua obra acabaria por ser muito mais volumosa do que a do mestre.


Assim, à primeira, e para quem conhece bem a obra de um e de outro, dir-se-iam rivais, uma espécie de espadachins da escrita trocando golpes humorísticos às vezes tão simples, de outras vezes tão elaborados, mas uma jocosidade específica, típica dessa Lisboa de outras eras, própria de uma pequena burguesia que gostava de armar ao fino, de esquecer a miséria que guardava na despensa e procura exibir-se com tiques de alta sociedade. Conheci-os, a ambos, há muitos anos, na Casa das Conchas, termo de Ourém como dizia o meu bisavô Acácio de Paiva, que lá viveu, também escritor e poeta que privilegiava o calembur, o riso, por vezes até a chalaça que magoa como uma lâmina penetrando devagarinho entre a terceira e a quarta costela. Conheci-os lendo, claro está. Era muito garoto ainda, mas fiquei fascinado, tanto por um como por outro. Não, não foram rivais do humor porque Gervásio Lobato nasceu muito antes de Armando Ferreira – o primeiro a 23 de Maio de 1850, o segundo a 25 de Outubro de 1893. Ambos em Lisboa, como não podia deixar de ser, foram escritores essencialmente lisboetas, foram caricaturadores eméritos das gentes da capital. Gervásio Jorge Gonçalves Lobato morreu no dia 26 de Maio de 1985, tinha Armando da Silva Ferreira apenas dois anos e só viria a morrer no dia 3 de Dezembro de 1968. Gervásio foi de tudo um pouco: escritor, dramaturgo, jornalista, comediógrafo, tradutor, romancista, professor de declamação, e ainda gramou a grandessíssima estucha de ter trabalhado como segundo oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. Ora tubérculos!, pode tê-lo ajudado muito na construção das suas personagens mas devia ser uma seca insuportável para que tinha tamanha verve. Pelo caminho tirou o Curso Superior de Letras e a cadeira de Direito Internacional da Escola Naval. Começou por dedicar-se ao teatro – O Rapto de um Noivo – ao mesmo tempo que colaborava de forma prolífica como poucos em todos os jornais que puderam ter a satisfação de usar da sua palavra escrita: Gazeta de PortugalGazeta LiteráriaRecreioJornal da NoiteDiário IlustradoProgressoCorreio da NoiteSéculoDiário de NotíciasO PantheonRibaltas e GambiarrasJornal do Domingo, A Ilustração Portuguesa e etc., etc. Irra!, que é de homem. Mas, vendo bem, estou aqui é para falar da família Antunes, a começar pelo patriarca, o sr. Justino Antunes, vindo do Algarve para casar com a filha do administrador do conselho, um figurão que costumava consolar-lhe a tristeza de não ter filhos com uma frase irredutível:

– «Deixe-se d’isso homem, há muitos casados que nunca têm filhos; o meu pai, por exemplo…»

E é neste estilo que se desfia Lisboa em Camisa, um volume que cabe no âmbito de uma obra maior chamada Comédia de Lisboa. Os personagens ficarão registados para sempre com a posterior colaboração indispensável de Armando Ferreira: D. Josephina, irmã de Justino, sempre com o seu Arnestozinho agarrado às saias, de tiradas complexas («Meu mano vai ser pai na pessoa de minha cunhada!»), D. Angélica, a mulher de Antunes, que acabaria por dar à luz a luz dos olhos do Antunes, a Fifi, o conselheiro Torres, vizinho, convidado, por interesse social, para padrinho da criança, mas que o evitou até à última instância: «Padrinho? Veremos… veremos…, preciso pensar, sim… porque é uma grande responsabilidade». O conselheiro tanto se fartou da pedinchice do Antunes que lá aceitou. E o batizado da Fifi Antunes foi de estadão. «Eles foram dois patos marrecos, uma grande pescada do alto, uns dois quilos de vitela, da perna, para assar, oito tenros franguinhos para fazer de fricassé, uma grande língua de boi que, pelo tamanho, parecia ser de vaca, azeitonas, muitas couves lombardas, muitas cenouras, muitas mãos de nabos, uma avalanche de hortaliça para fazer um bom cozido, o ideal culinário…». Em tudo isto gastou o alegre papá um bom par de vinténs.

Do batizado ao casamento 

Se foi Gervásio Lobato a batizar a Fifi Antunes, seria Armando Ferreira a casá-la. Engenheiro do Ministério da Agricultura, ocupando em seguida o cargo de secretário da Anglo-Portuguese Telephone Company, Armando chegou a ser Chefe de Redacção de A Capital e colaborou bastamente com o Comércio do Porto, o ABC, a Ilustração Portuguesa, o Jornal da Europa O Século Ilustrado, a Gazeta dos Caminhos de Ferro e com o semanário O Domingo Ilustrado. Também crítico de teatro no Diário Popular, no Notícias Ilustrado e no Jornal do Comércio. Foi n’O Século Ilustrado e na Ilustração Portuguesa que se cruzou com o meu bisavô Acácio (tendo sido ambos cofundadores da Sociedade de Autores e Compositores Portugueses) e daí vários livros a ele dedicados na biblioteca da Casa das Conchas.

Armando Ferreira nunca escondeu a sua admiração por Gervásio. A sua obra foi bem mais fecunda do que a do seu antecessor, com títulos às dezenas – Amor de PerdigãoA Família PirangaAs Aventuras de D. Martinho de Aguilar em LisboaA Barata LoiraGlóriaUm Livro de GraçaSorte GrandeOs meus FantochesCoisas da Maria RitaCaixinha de Rapé: Filosofia dos que Riem e por aí fora. Li-os todos. Na adolescência. Reli-os todos nos últimos anos porque, graças à probidade do meu querido Bernardo Trindade, o melhor alfarrabista do país, enchi com eles uma prateleira da minha biblioteca de Alcácer. Lisboa sem Camisa, dividida em três tomos – O Casamento de Fifi Antunes, O Baile dos Bastinhos e O Galã de Alcântara – é a sua «piéce de résistence». O autor achou necessário fazer um prefácio: «A comédia de Lisboa de 1880 não acabou. Actualizou-se. Falta-lhe a graça natural de Gervásio Lobato, mas não resisto à tentação de reviver Lisboa em camisa, hoje, devido às modas e às medidas de salvação pública, Lisboa sem camisa; diligenciarei fazê-lo, como então se prometeu no prefácio daquela obra, com a mesma “intenção crítica e a mesma identidade de processos, em estudo alegre e rápido, procurando fereir sempre a nota cómica e ao mesmo tempo a nota verdadeira da vida actual de Lisboa nas suas diferentes esferas de acção”». Era Armando citando Gervásio. Em 1935 – sobre o prefácio de 1878: «Lisboa em Camisa é o segundo volume dos estudos humorísticos da vida lisboeta de que já há um volume publicado com o título Comédia de Lisboa. (…) Lisboa em Camisa é perfeitamente independente da Comédia de Lisboa, que a precedeu, e da Comédia do Teatro, que está no prelo, como qualquer destes volumes será independente dos que porventura se lhes sigam, a Comédia do Amor, a Comédia da Política, a Comédia do Crime ou a Comédia da Sacristia». Gervásio Lobato não teve tempo para tudo. Mas teve a arte de por os lisboetas a aprenderem a rir-se de si próprios. Os Antunes viveram ainda pela pena de Armando_Ferreira mas não morreram nem nunca morrem: fiquem atentos. Quando derem por ela já se estarão a rir por causa deles…