Lendas e Narrativas: O conto dos 25’s


As duas datas são complementares: o país que somos hoje, no limite era possível até sem o 25 de Abril (em Espanha não houve golpe de estado ou revolução e ninguém dirá que são menos democráticos do que nós).


Foi o Professor Adriano Moreira que disse um dia que os portugueses precisavam de entender as causas das consequências que lhes acontecem.

As razões ficam tantas vezes perdidas em narrativas sobre o nosso passado que obscurecem as causas reais dessas consequências. Todos as nações precisam de uma narrativa que contam de si próprias a si próprias.

Nós também temos as nossas, claro, e em relação ao 25 de Abril, temos uma que é mais ou menos isto: era uma vez um país cinzento, estagnado e pobre, governado por um regime autoritário / fascista (riscar o que não interessa) que deliberadamente procurava a pobreza e infelicidade do seu povo e mantinha uma guerra em África para esmagar as justas aspirações de liberdade e felicidade dos povos subjugados.

Numa manhã gloriosa de um dia inteiro e limpo (por acaso, chovia), uns heróis militares derrubaram o governo e acabaram com o regime, para gáudio de toda a população. Desde então vivemos em democracia, felicidade e crescimento económico e esta data é uma data na qual todos os portugueses se reveem e à qual aderem incondicionalmente.

Como a verdade depende do olhar do observador, muito do que está dito acima poderá ser contestado por muita gente, mas, factualmente, do que não há dúvida é que o tal “dia inteiro e limpo” deu origem a dezenas de milhares de saneamentos, prisões, convulsões sociais, nacionalização da economia, emigração de milhares de vencidos políticos, micro golpes de estado e desordem completa.

Um ano e meio depois do 25 de Abril de 1974, o país estava à beira de uma guerra civil, os comunistas estavam a um passo de tomar o poder (apesar de terem perdido fragorosamente as eleições para a Constituinte de Abril de 1975) e, sobretudo, estávamos a um passo de mudar definitivamente como país: o processo de descolonização entrava nos seus passos finais ordenados e comandados a partir de Moscovo, e muitas centenas de milhar de refugiados sem terra ou pertences, que tinham fugido com a roupa que tinham no corpo, aterravam nos aeroportos nacionais no termo de uma gigantesca ponte aérea que os tinha evacuado de África. Tinham perdido tudo no espaço de poucos meses e “regressavam” à metrópole sem nada a que pudessem chamar seu.

Entre Abril de 74 e Novembro de 75, o país caiu na desordem completa, governos que nada governavam sucediam-se ao ritmo de golpes de estado palacianos, e sempre omnipresente, o partido comunista português ia presidindo ao processo revolucionário em curso, tomando posições em todas as instituições que não tinha destruído, nacionalizando a economia, apoderando-se dos jornais e rádios, saneando os jornalistas que não aderiam à nova cartilha, instituindo uma lavagem de cérebros na educação acerca da nova cartilha leninista…

Primeiro foram os partidos que eles chamaram “fascistas”, depois partidos moderados do centro, e só quando o fogo chegou às barbas do PS, com a “ocupação” do jornal República (que no dito regime fascista era publicado e difundido) é que os socialistas entenderam que eram os próximos a cair no dominó de tomada de poder dos comunistas.

Foi o momento em que, depois de uma semana de cerco à Assembleia Constituinte, par a vergar à vontade da revolução, e na eminência de mais um golpe de estado, Mário Soares se meteu no carro a caminho do Porto, onde achava que estaria seguro, e uma parte dos deputados não comunistas fizeram o mesmo, dispostos a reconstituir no Norte a legitimidade da República. Perfilava-se a guerra civil.

A inteligência política no mundo ocidental olhava para Portugal como uma possível nova Cuba e uma vacina contra o comunismo…

Nesta juntura fatídica sobreveio o 25 de Novembro. O dia não foi inteiro nem limpo; foi tão confuso que permite quase cinquenta anos depois construir uma narrativa que põe do lado dos perdedores a extrema-direita!

Mas não, a verdade é uma evidência: a 25 de Novembro foi derrotada a revolução comunista e venceu a possibilidade de termos uma democracia e um estado de direito em Portugal.

A narrativa que tem vindo a ser construída desde há muitos anos é que os comunistas não tiveram nada a ver com o 25 de Novembro, não o provocaram nem o quiseram, foi antes a extrema-esquerda…

Ninguém vai dizer que a extrema-esquerda que se cristalizou um ano depois na candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, não teve nada a ver com o assunto. Claro que teve, eram os idiotas úteis do Partido Comunista, tal como muitos militares deslumbrados com o seu conjuntural poder.

Mas basta pensar um instante no país que hoje seriamos não fora o 25 de Novembro, para concluir que os vencidos foram os comunistas.

Um país onde as “conquistas revolucionárias de Abril” se teriam aprofundado, com o seu cortejo de nacionalizações de tudo o que mexesse, uma reforma agrária que se propunha destruir “a base económica do fascismo” (está lá tudo escrito nos decretos-lei de nacionalizações), o ataque à classe média que ousasse pensar de forma diferente, o reforço da “verdade oficial” na Pravda e nas Izvestias (os novos nomes dos jornais Diário de Noticias e Século), o completo saneamento de quem discordasse da linha oficial, preso, como foram tantos, ou forçados ao exílio, como foram muitos mais. E, claro, no seu devido tempo, a proibição dos partidos políticos desnecessários à maquilhagem da ditadura comunista e para isso bastavam o triste MDP / CDE e os “verdes”.

Teria havido uma guerra civil? É possível pensar que sim, havia no país forças “reacionárias” suficientes para resistir, e a Europa Ocidental e os EUA teriam seguramente apoiado. O desfecho teria sido em todo o caso sangrento e teria culminado na exclusão do processo do Partido Comunista e das esquerdas.

Ou um sentimento de inevitabilidade teria travado as forças anticomunistas, estes teriam vencido e Portugal caia-lhes nas garras por décadas. Que país seriamos hoje? Melhor, mais feliz, mais reconciliado consigo próprio? Parece-me bem que não.

Ouvi nos últimos tempos os sucessores de Mário Soares, o homem que a 24 de Novembro fugiu de carro para o Porto, a explicar que o 25 de Abril é uma data consensual entre os Portugueses e o 25 de Novembro não, pelo que o seu meio século não pode ser celebrado.

O argumento não vale nada: o 25 de Abril não é uma data consensual nas memórias que deixou a muitos portugueses. Perguntem lá às centenas de milhares (mais de meio milhão) de “retornados” que perderam tudo em África, se se reveem nas consequências do golpe de estado.

O 25 de Novembro, tal como o 25 de Abril, tem vencedores e vencidos. A diferença é que os vencidos do 25 de Novembro continuaram entre nós a viver a sua vida normal e sem contrariedades, e sem perder nada das vantagens das suas vidas.

As duas datas são complementares: o país que somos hoje, no limite era possível até sem o 25 de Abril (em Espanha não houve golpe de estado ou revolução e ninguém dirá que são menos democráticos do que nós). Não era seguramente possível sem o 25 de Novembro. Não o celebrar é amputar a história e insistir numa narrativa que ofende e agride uma parte do país.

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade

Lendas e Narrativas: O conto dos 25’s


As duas datas são complementares: o país que somos hoje, no limite era possível até sem o 25 de Abril (em Espanha não houve golpe de estado ou revolução e ninguém dirá que são menos democráticos do que nós).


Foi o Professor Adriano Moreira que disse um dia que os portugueses precisavam de entender as causas das consequências que lhes acontecem.

As razões ficam tantas vezes perdidas em narrativas sobre o nosso passado que obscurecem as causas reais dessas consequências. Todos as nações precisam de uma narrativa que contam de si próprias a si próprias.

Nós também temos as nossas, claro, e em relação ao 25 de Abril, temos uma que é mais ou menos isto: era uma vez um país cinzento, estagnado e pobre, governado por um regime autoritário / fascista (riscar o que não interessa) que deliberadamente procurava a pobreza e infelicidade do seu povo e mantinha uma guerra em África para esmagar as justas aspirações de liberdade e felicidade dos povos subjugados.

Numa manhã gloriosa de um dia inteiro e limpo (por acaso, chovia), uns heróis militares derrubaram o governo e acabaram com o regime, para gáudio de toda a população. Desde então vivemos em democracia, felicidade e crescimento económico e esta data é uma data na qual todos os portugueses se reveem e à qual aderem incondicionalmente.

Como a verdade depende do olhar do observador, muito do que está dito acima poderá ser contestado por muita gente, mas, factualmente, do que não há dúvida é que o tal “dia inteiro e limpo” deu origem a dezenas de milhares de saneamentos, prisões, convulsões sociais, nacionalização da economia, emigração de milhares de vencidos políticos, micro golpes de estado e desordem completa.

Um ano e meio depois do 25 de Abril de 1974, o país estava à beira de uma guerra civil, os comunistas estavam a um passo de tomar o poder (apesar de terem perdido fragorosamente as eleições para a Constituinte de Abril de 1975) e, sobretudo, estávamos a um passo de mudar definitivamente como país: o processo de descolonização entrava nos seus passos finais ordenados e comandados a partir de Moscovo, e muitas centenas de milhar de refugiados sem terra ou pertences, que tinham fugido com a roupa que tinham no corpo, aterravam nos aeroportos nacionais no termo de uma gigantesca ponte aérea que os tinha evacuado de África. Tinham perdido tudo no espaço de poucos meses e “regressavam” à metrópole sem nada a que pudessem chamar seu.

Entre Abril de 74 e Novembro de 75, o país caiu na desordem completa, governos que nada governavam sucediam-se ao ritmo de golpes de estado palacianos, e sempre omnipresente, o partido comunista português ia presidindo ao processo revolucionário em curso, tomando posições em todas as instituições que não tinha destruído, nacionalizando a economia, apoderando-se dos jornais e rádios, saneando os jornalistas que não aderiam à nova cartilha, instituindo uma lavagem de cérebros na educação acerca da nova cartilha leninista…

Primeiro foram os partidos que eles chamaram “fascistas”, depois partidos moderados do centro, e só quando o fogo chegou às barbas do PS, com a “ocupação” do jornal República (que no dito regime fascista era publicado e difundido) é que os socialistas entenderam que eram os próximos a cair no dominó de tomada de poder dos comunistas.

Foi o momento em que, depois de uma semana de cerco à Assembleia Constituinte, par a vergar à vontade da revolução, e na eminência de mais um golpe de estado, Mário Soares se meteu no carro a caminho do Porto, onde achava que estaria seguro, e uma parte dos deputados não comunistas fizeram o mesmo, dispostos a reconstituir no Norte a legitimidade da República. Perfilava-se a guerra civil.

A inteligência política no mundo ocidental olhava para Portugal como uma possível nova Cuba e uma vacina contra o comunismo…

Nesta juntura fatídica sobreveio o 25 de Novembro. O dia não foi inteiro nem limpo; foi tão confuso que permite quase cinquenta anos depois construir uma narrativa que põe do lado dos perdedores a extrema-direita!

Mas não, a verdade é uma evidência: a 25 de Novembro foi derrotada a revolução comunista e venceu a possibilidade de termos uma democracia e um estado de direito em Portugal.

A narrativa que tem vindo a ser construída desde há muitos anos é que os comunistas não tiveram nada a ver com o 25 de Novembro, não o provocaram nem o quiseram, foi antes a extrema-esquerda…

Ninguém vai dizer que a extrema-esquerda que se cristalizou um ano depois na candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, não teve nada a ver com o assunto. Claro que teve, eram os idiotas úteis do Partido Comunista, tal como muitos militares deslumbrados com o seu conjuntural poder.

Mas basta pensar um instante no país que hoje seriamos não fora o 25 de Novembro, para concluir que os vencidos foram os comunistas.

Um país onde as “conquistas revolucionárias de Abril” se teriam aprofundado, com o seu cortejo de nacionalizações de tudo o que mexesse, uma reforma agrária que se propunha destruir “a base económica do fascismo” (está lá tudo escrito nos decretos-lei de nacionalizações), o ataque à classe média que ousasse pensar de forma diferente, o reforço da “verdade oficial” na Pravda e nas Izvestias (os novos nomes dos jornais Diário de Noticias e Século), o completo saneamento de quem discordasse da linha oficial, preso, como foram tantos, ou forçados ao exílio, como foram muitos mais. E, claro, no seu devido tempo, a proibição dos partidos políticos desnecessários à maquilhagem da ditadura comunista e para isso bastavam o triste MDP / CDE e os “verdes”.

Teria havido uma guerra civil? É possível pensar que sim, havia no país forças “reacionárias” suficientes para resistir, e a Europa Ocidental e os EUA teriam seguramente apoiado. O desfecho teria sido em todo o caso sangrento e teria culminado na exclusão do processo do Partido Comunista e das esquerdas.

Ou um sentimento de inevitabilidade teria travado as forças anticomunistas, estes teriam vencido e Portugal caia-lhes nas garras por décadas. Que país seriamos hoje? Melhor, mais feliz, mais reconciliado consigo próprio? Parece-me bem que não.

Ouvi nos últimos tempos os sucessores de Mário Soares, o homem que a 24 de Novembro fugiu de carro para o Porto, a explicar que o 25 de Abril é uma data consensual entre os Portugueses e o 25 de Novembro não, pelo que o seu meio século não pode ser celebrado.

O argumento não vale nada: o 25 de Abril não é uma data consensual nas memórias que deixou a muitos portugueses. Perguntem lá às centenas de milhares (mais de meio milhão) de “retornados” que perderam tudo em África, se se reveem nas consequências do golpe de estado.

O 25 de Novembro, tal como o 25 de Abril, tem vencedores e vencidos. A diferença é que os vencidos do 25 de Novembro continuaram entre nós a viver a sua vida normal e sem contrariedades, e sem perder nada das vantagens das suas vidas.

As duas datas são complementares: o país que somos hoje, no limite era possível até sem o 25 de Abril (em Espanha não houve golpe de estado ou revolução e ninguém dirá que são menos democráticos do que nós). Não era seguramente possível sem o 25 de Novembro. Não o celebrar é amputar a história e insistir numa narrativa que ofende e agride uma parte do país.

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça
Subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade