É costume dizer-se, entre nós, que os políticos falam demais.
Recordo, aliás, um dito cómico, que resumia, e bem, esse sentimento popular: «eles falam, falam, falam, mas não dizem nada».
Hoje, os comentadores políticos, preocupam-se, contudo, com o contrário: com o facto de alguns políticos não falarem.
O que os preocupa – percebe-se – é que, assim, lhes falta a matéria para desenvolverem as suas sempre inovadoras, profundas e sapientes análises, perorando sobre o sentido do que foi dito, do que não foi, do tempo que mediou entre uma frase e outra, do esgar que acompanhou uma afirmação ou uma negação.
Se, nesse aspeto, podemos até ser solidários com quem, assim, tem de trabalhar e de repente lhe roubam a matéria para o fazer, não podemos, no entanto, deixar de nos rejubilar, um pouco que seja, com tão inaudito silêncio.
É que ele, mais do que as sempre repetidas e já gastas palavras de consolo, diz muito sobre a nossa real situação política e económica.
No que me diz respeito, o que mais aprecio na cidade onde, nos últimos anos, tenho vivido nos Países Baixos, é precisamente o pouco ruído que nela se faz.
Vai, certamente, ser-me difícil voltar a ouvir, em breve, todo o barulho de uma cidade como Lisboa e, desde logo, o facto de entender tudo o que os meus concidadãos dizem nos transportes públicos, nos supermercados, nas esplanadas e, até, em algumas conferências, dado que, em geral, tais conversas e discursos nada têm de animadores.
O meu radical desconhecimento da língua neerlandesa tem-me poupado ao esforço judicativo que o entendimento das conversas dos que me rodeiam voluntária, ou involuntariamente, obriga.
Inquieta-me, por isso, voltar a ter de perceber tudo o que, à minha volta, é dito, repetido, deformado ou em tom inflamado.
Regressando, no entanto, à ideia inicial – a do silêncio voluntário dos políticos nacionais e europeus – ela não deixou de me lembrar, de certa maneira, uma atitude idêntica do almirante Pinheiro de Azevedo, quando, exausto com a lide política, decidiu entrar em greve da governação.
O problema não parece residir, todavia, no momento e mesmo na forma ou lugar de tal recusa em falar, mas sim no da sua razão de ser.
O que a todos deve preocupar é, na verdade, o facto de a interrupção provisória do discurso político poder significar, mais do que uma atitude singular e pessoal de quem, num dado momento da vida política, já cansado do ruído que fez e também sofreu, preferiu, por uma vez, ouvir e calar.
O que nos deve deixar deveras inquietos é, precisamente, pressentir em tal silêncio o prenúncio do esgotamento do discurso político atual, seja ele o da esquerda ou o da direita democrática.
É que tal exaustão – e, com ela, a renúncia a explicar democraticamente e com verdade as razões das medidas da governação – pode dar origem à substituição do discurso político democrático por um ritual muito mais perigoso, e já antigo, de gritos, palavras de ordem rancorosas e galvanizadas por fanfarras militares.
Já se ouvem os hinos, mais ou menos bélicos, que, à margem da racionalidade política, procuram mover emocionalmente a sociedade para um tipo de agitação, que a sua atual e já indisfarçável frustração poderá ser levada a acolher e repetir.
Compreendo, muito bem, que é difícil e desgastante estar sempre a repisar o cardápio de medidas provisórias, complementares e, frequentemente, sobrepostas a outras antes anunciadas, com que se pretende, apesar de tudo, aliviar os sintomas mais agudos provocados por um sistema económico e por uma orientação política que, em geral, parecem ter emperrado de vez.
E, quando digo isto, não me estou a referir apenas ao que se passa em Portugal.
A crise é geral, o que não anima nada.
Quem abrir e ler um qualquer jornal escrito numa das línguas europeias que nos são mais acessíveis, lá verá os mesmos artigos sobre a crise dos preços da habitação, da falta de habitação para jovens, da falta de investimento público na habitação social, da crise da escola pública, da crise dos serviços nacionais de saúde, dos salários genericamente baixos dos mais novos, do desinteresse destes pelas funções públicas.
Nem a guerra na Ucrânia e os seus pavores – narrados sempre com (in)discutível objetividade por comentadores assíduos e sempre bem informados por um dos lados da contenda – conseguem já demover os articulistas dos jornais franceses, ingleses, espanhóis e italianos de continuarem a alertar, agora com veemência, para a exaustão das políticas nacionais e europeias e a sua incapacidade para responder, seriamente, a tais crises do Estado Social.
O problema parece, pois, residir no não funcionamento temporário do tão – e justamente – celebrado Estado Social, que alguns querem, ainda assim, remendar, e outros, que antes tanto o celebravam também, só pretendem, agora, enterrar de vez.
A verdade é que não parecem subsistir, hoje, palavras simples e exatas, capazes de explicar, com credibilidade suficiente, como salvar e melhorar um sistema em que muitos dos políticos europeus não acreditam já – ou não querem acreditar – poder continuar a funcionar no futuro próximo.
E o futuro – todos sabemos – é já amanhã.
Daí, o silêncio cansado e, nalguns casos, comprometido de muitos políticos europeus, que ainda há meses se revezavam diariamente nas TVs proclamando a salvação do seu mundo privilegiado e condenando tudo e todos que, entendiam, não o dever integrar.
A verdade, também, é que bastantes cidadãos já se aperceberam de tal deserção do projeto do Estado Social e, revoltados – como aconteceu, não há muito, em alguns países europeus -, não ligam mais a palavras, discursos e medidas paliativas com que alguns dos céticos os pretendem engodar.
É essa a razão por que, por fim, partem à aventura, buscando, nas margens do sistema democrático, alternativas mal definidas e, algumas, mesmo perigosas para a paz interna e externa da Europa: para o seus direitos e liberdades.
Razão mais do que suficiente para fazer falar os políticos que, responsavelmente, continuam a acreditar na possibilidade de, ainda hoje, afirmar uma política virada para os cidadãos e o aperfeiçoamento e reforço do Estado Social.
Os políticos que não se contentam apenas com arquitetar e repetir medidas urgentes e aliviadoras, mas gostam, ainda, de explanar, propor e executar políticas consequentes, capazes de reforçar duradouramente as mais fundas estruturas do Estado Social e permitir, pois, à maioria dos cidadãos antever o seu futuro e o dos seus filhos com estabilidade e esperança.
Mais importante do que cavar trincheiras de guerra é, sim, acredito piamente, aprofundar e fortalecer os alicerces do Estado Social.
Foi nele que, do nosso lado, também se fundou, afinal, a paz de que beneficiámos durante tantos anos.