Liberalismos e liberalismos mais ou menos liberais


As democracias liberais admitiam um significativo espaço de intervenção do Estado em todas as atividades que contribuíam especificamente para o bem comum, enquanto, por outro lado, lhe definiam uma barreira rigorosa e, em princípio, inultrapassável no que respeitava à privacidade da vida de cada cidadão.


Vi, recentemente, na Netflix, uma minissérie que recomendo, sobretudo, a magistrados e advogados.

Retrata, de certa maneira, o universo político, judicial e mediático que envolve e condiciona, hoje, quem quer tomar parte e assumir responsabilidades na coisa pública; chama-se Anatomia de um Escândalo.

Entre as mais evidentes características dos tempos atuais, podemos destacar não só a incoerência entre a prática social e as ideias dominantes, como também, a da pouca coerência, e mesmo incoerência, de algumas destas.

Mais do que o enredo da série, a atitude de todos e cada um dos envolvidos num dos casos de violação denunciado muito tempo depois de ocorrido, não precisamente pela vítima, mas pelos que têm, nesse exato momento, interesse político na sua divulgação, deverá fazer refletir todos os que trabalham para a Justiça.

A questão que quero abordar não é, todavia – como na série -, o da maior ou menor latitude na expressão do consentimento da vítima no ato sexual que alegadamente lhe terá sido imposto, ou, sequer, o da sua vontade de queixar-se, mas, mais exatamente, o da possibilidade da manipulação dessa mesma vontade para fins políticos.

Nesta fase de afirmação do pensamento e da cultura neoliberais, podemos, com efeito, assistir, em paralelo, à voragem privatizadora de atividades e serviços públicos e a uma inovadora atitude de policiamento e intervenção direta do Estado na esfera privada dos cidadãos.

Isso pode suceder através, precisamente, da transformação da natureza semipública de certos crimes em pública, deixando, assim, de se exigir a queixa da vítima para poderem ser perseguidos pelo Estado.

Em épocas não muito distantes, realçava-se, pelo contrário, a exigência de uma linha muito clara de demarcação entre o que deveria ser a esfera privada e a esfera pública.

Cuidava-se, então, de demarcar os limites da possível interferência do Estado na esfera privada, salvaguardando-se uma área radicalmente privativa da vida dos cidadãos, onde aquele não deveria, em qualquer circunstância, poder interferir de motu proprio.

Nesse aspeto, o «liberalismo tradicional» – se assim lhe podemos chamar –  ajudou a concretizar um novo patamar de progresso para a humanidade.

As democracias liberais admitiam, por isso, ainda, um significativo espaço de intervenção do Estado em todas as atividades que contribuíam especificamente para o bem comum, enquanto, por outro lado, lhe definiam uma barreira rigorosa e, em princípio, inultrapassável no que respeitava à privacidade da vida de cada cidadão.

Com a sedimentação do neoliberalismo, avançou-se, contudo, noutra direção: negou-se, por princípio, qualquer vantagem à pertença e gestão, pelo Estado, de atividades económicas e serviços dirigidos à realização das necessidades públicas e, ao invés, em nome de uma mal definida, mas exigente e imperativa moral coletiva, abriu-se a porta à iniciativa estatal em áreas que, anteriormente, eram reconhecidas como dependentes apenas da vontade de quem nelas estava envolvido.

O mais curioso nesta inversão de paradigma é que, pelo menos neste segundo passo – o da substituição da iniciativa pessoal pela obrigatória iniciativa do Estado, no policiamento e condenação dos comportamentos morais dos cidadãos – tal orientação foi, frequentemente, questionada por parte da chamada esquerda tradicional e estatizante, mas, com surpresa, ou talvez não, apoiada pelas correntes, antes mais libertárias, da soit disant nova esquerda.

Talvez que a velha esquerda tenha conservado mais viva uma (má) memória histórica do que sucede quando ao Estado é permitido imiscuir-se em demasia na vida, atos e opções individuais dos cidadãos.

Com efeito, hoje, fruto da ação de movimentos política e culturalmente ultraconservadores e, na sua raiz, de inspiração calvinista, mesmo que assumidos, agora, como ultra-progressistas, assistimos ao restabelecimento de uma cultura de censura e intervenção estatal na vida e nos comportamentos pessoais.

Para os teóricos e sacerdotes de tais movimentos não há, por exemplo, espaço para a prescrição da ação criminal e, menos ainda, para a tomada em consideração da evolução da personalidade e comportamentos de qualquer cidadão.

O que aconteceu ontem – podendo esse ontem ter sucedido há algumas dezenas de anos e num contexto social, pessoal e cultural totalmente diferente – marcará para sempre, se nisso houver interesse, quem foi seu protagonista.

Em nome da necessidade de pôr fim a um conjunto de crimes e abusos efetivamente praticados, mas, antes, socialmente tolerados, admite-se, hoje, perseguir factos mais que pretéritos – e, portanto, também, preteritamente valorados de outra forma – especialmente quando praticados por quem, no presente, tenha alguma notoriedade ou relevância pública.

Para trás, ficam anos de luta pela emancipação da consciência individual de cada pessoa.

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», de Camões e até hoje: asserção eterna e global.

Atualmente, a intervenção, sempre escandalosa, dos media – e, logo, da Justiça de alguns países – no desvendamento e divulgação de casos da vida privada, passada e presente, de possíveis «agressores» e «vítimas» com notoriedade pública, cumpre, assim, uma nova função política.

Por alguma razão, a notoriedade pública do putativo agressor é que, em geral, determina, neste tipo de casos, a iniciativa persecutória e punitiva do Estado.

Consequentemente, esta não se dirige, apenas, a punir o crime e a ressarcir as vítimas, mas, antes, também – e porventura com maior acuidade – a permitir condicionar ou eliminar da vida pública o alegado transgressor.

Para tanto, caso não exista uma vítima evidente ou esta não tenha tomado, voluntariamente, alguma iniciativa no sentido de denunciar o crime que sofreu, procura-se e, mesmo que forçadamente, dá-se-lhe palco e microfone.

Também aqui, em muitos casos, a vontade da vítima é constrangida.

Uma espada de Dâmocles – nada liberal – poderá, pois, dissecando o passado privado de qualquer um, condicionar as pretensões de quem se tenha aventurado, noutro tempo e noutras circunstâncias, a agir à revelia do mais recente e algo hipócrita catecismo moralista que a todos é imposto.

A necessidade de coesão ideológica do aparelho neoliberal, legitima, assim, a intervenção e intrusão do Estado na privacidade de quem, por um qualquer motivo, mesmo se na ligeireza da juventude, a ponha hoje em crise.

Mais do que discutir ideias, parece ser, agora, mais importante, eficaz e politicamente produtivo discutir pessoas: e esta discussão, sendo mediaticamente mais apelativa, evita, ainda, a reflexão sobre ideias que possam questionar o atual sistema de governo global.

Nada, pois, de contrição, perdão, regeneração e reconciliação para os que decidirem, um dia, dedicar-se à coisa pública: o seu passado privado é e será sempre o seu inelutável presente e futuro, se isso convier ao poder do momento.

O totalitarismo é, na realidade e afinal, um bichinho que se infiltra e quer vingar em qualquer sistema.


Liberalismos e liberalismos mais ou menos liberais


As democracias liberais admitiam um significativo espaço de intervenção do Estado em todas as atividades que contribuíam especificamente para o bem comum, enquanto, por outro lado, lhe definiam uma barreira rigorosa e, em princípio, inultrapassável no que respeitava à privacidade da vida de cada cidadão.


Vi, recentemente, na Netflix, uma minissérie que recomendo, sobretudo, a magistrados e advogados.

Retrata, de certa maneira, o universo político, judicial e mediático que envolve e condiciona, hoje, quem quer tomar parte e assumir responsabilidades na coisa pública; chama-se Anatomia de um Escândalo.

Entre as mais evidentes características dos tempos atuais, podemos destacar não só a incoerência entre a prática social e as ideias dominantes, como também, a da pouca coerência, e mesmo incoerência, de algumas destas.

Mais do que o enredo da série, a atitude de todos e cada um dos envolvidos num dos casos de violação denunciado muito tempo depois de ocorrido, não precisamente pela vítima, mas pelos que têm, nesse exato momento, interesse político na sua divulgação, deverá fazer refletir todos os que trabalham para a Justiça.

A questão que quero abordar não é, todavia – como na série -, o da maior ou menor latitude na expressão do consentimento da vítima no ato sexual que alegadamente lhe terá sido imposto, ou, sequer, o da sua vontade de queixar-se, mas, mais exatamente, o da possibilidade da manipulação dessa mesma vontade para fins políticos.

Nesta fase de afirmação do pensamento e da cultura neoliberais, podemos, com efeito, assistir, em paralelo, à voragem privatizadora de atividades e serviços públicos e a uma inovadora atitude de policiamento e intervenção direta do Estado na esfera privada dos cidadãos.

Isso pode suceder através, precisamente, da transformação da natureza semipública de certos crimes em pública, deixando, assim, de se exigir a queixa da vítima para poderem ser perseguidos pelo Estado.

Em épocas não muito distantes, realçava-se, pelo contrário, a exigência de uma linha muito clara de demarcação entre o que deveria ser a esfera privada e a esfera pública.

Cuidava-se, então, de demarcar os limites da possível interferência do Estado na esfera privada, salvaguardando-se uma área radicalmente privativa da vida dos cidadãos, onde aquele não deveria, em qualquer circunstância, poder interferir de motu proprio.

Nesse aspeto, o «liberalismo tradicional» – se assim lhe podemos chamar –  ajudou a concretizar um novo patamar de progresso para a humanidade.

As democracias liberais admitiam, por isso, ainda, um significativo espaço de intervenção do Estado em todas as atividades que contribuíam especificamente para o bem comum, enquanto, por outro lado, lhe definiam uma barreira rigorosa e, em princípio, inultrapassável no que respeitava à privacidade da vida de cada cidadão.

Com a sedimentação do neoliberalismo, avançou-se, contudo, noutra direção: negou-se, por princípio, qualquer vantagem à pertença e gestão, pelo Estado, de atividades económicas e serviços dirigidos à realização das necessidades públicas e, ao invés, em nome de uma mal definida, mas exigente e imperativa moral coletiva, abriu-se a porta à iniciativa estatal em áreas que, anteriormente, eram reconhecidas como dependentes apenas da vontade de quem nelas estava envolvido.

O mais curioso nesta inversão de paradigma é que, pelo menos neste segundo passo – o da substituição da iniciativa pessoal pela obrigatória iniciativa do Estado, no policiamento e condenação dos comportamentos morais dos cidadãos – tal orientação foi, frequentemente, questionada por parte da chamada esquerda tradicional e estatizante, mas, com surpresa, ou talvez não, apoiada pelas correntes, antes mais libertárias, da soit disant nova esquerda.

Talvez que a velha esquerda tenha conservado mais viva uma (má) memória histórica do que sucede quando ao Estado é permitido imiscuir-se em demasia na vida, atos e opções individuais dos cidadãos.

Com efeito, hoje, fruto da ação de movimentos política e culturalmente ultraconservadores e, na sua raiz, de inspiração calvinista, mesmo que assumidos, agora, como ultra-progressistas, assistimos ao restabelecimento de uma cultura de censura e intervenção estatal na vida e nos comportamentos pessoais.

Para os teóricos e sacerdotes de tais movimentos não há, por exemplo, espaço para a prescrição da ação criminal e, menos ainda, para a tomada em consideração da evolução da personalidade e comportamentos de qualquer cidadão.

O que aconteceu ontem – podendo esse ontem ter sucedido há algumas dezenas de anos e num contexto social, pessoal e cultural totalmente diferente – marcará para sempre, se nisso houver interesse, quem foi seu protagonista.

Em nome da necessidade de pôr fim a um conjunto de crimes e abusos efetivamente praticados, mas, antes, socialmente tolerados, admite-se, hoje, perseguir factos mais que pretéritos – e, portanto, também, preteritamente valorados de outra forma – especialmente quando praticados por quem, no presente, tenha alguma notoriedade ou relevância pública.

Para trás, ficam anos de luta pela emancipação da consciência individual de cada pessoa.

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», de Camões e até hoje: asserção eterna e global.

Atualmente, a intervenção, sempre escandalosa, dos media – e, logo, da Justiça de alguns países – no desvendamento e divulgação de casos da vida privada, passada e presente, de possíveis «agressores» e «vítimas» com notoriedade pública, cumpre, assim, uma nova função política.

Por alguma razão, a notoriedade pública do putativo agressor é que, em geral, determina, neste tipo de casos, a iniciativa persecutória e punitiva do Estado.

Consequentemente, esta não se dirige, apenas, a punir o crime e a ressarcir as vítimas, mas, antes, também – e porventura com maior acuidade – a permitir condicionar ou eliminar da vida pública o alegado transgressor.

Para tanto, caso não exista uma vítima evidente ou esta não tenha tomado, voluntariamente, alguma iniciativa no sentido de denunciar o crime que sofreu, procura-se e, mesmo que forçadamente, dá-se-lhe palco e microfone.

Também aqui, em muitos casos, a vontade da vítima é constrangida.

Uma espada de Dâmocles – nada liberal – poderá, pois, dissecando o passado privado de qualquer um, condicionar as pretensões de quem se tenha aventurado, noutro tempo e noutras circunstâncias, a agir à revelia do mais recente e algo hipócrita catecismo moralista que a todos é imposto.

A necessidade de coesão ideológica do aparelho neoliberal, legitima, assim, a intervenção e intrusão do Estado na privacidade de quem, por um qualquer motivo, mesmo se na ligeireza da juventude, a ponha hoje em crise.

Mais do que discutir ideias, parece ser, agora, mais importante, eficaz e politicamente produtivo discutir pessoas: e esta discussão, sendo mediaticamente mais apelativa, evita, ainda, a reflexão sobre ideias que possam questionar o atual sistema de governo global.

Nada, pois, de contrição, perdão, regeneração e reconciliação para os que decidirem, um dia, dedicar-se à coisa pública: o seu passado privado é e será sempre o seu inelutável presente e futuro, se isso convier ao poder do momento.

O totalitarismo é, na realidade e afinal, um bichinho que se infiltra e quer vingar em qualquer sistema.