Hoje, Monte Gordo é, não só uma povoação a que falta a mais elementar racionalidade urbanística e a que foram selvaticamente suprimidas – não sei se definitivamente – as potencialidades de uma reabilitação que a valorizasse, mas que, apesar disso, continua sendo uma praia acessível a todos e com algumas das melhores qualidades balneárias do país e, porventura, da Europa.
E, de repente, mesmo em contracorrente ao jet set mediático, como por magia, a praia de Monte Gordo, voltou a ser falada.
Nesta popularizada praia algarvia – porventura, em termos de areia, arrumação das concessões de sombrinhas, temperatura da água e perigosidade do mar, uma das melhores de Portugal – o Presidente Marcelo decidiu, para espanto de uns poucos, passar alguns dias das suas férias de verão.
Monte Gordo, praia onde, com a da Rocha, se iniciou o turismo do Algarve, há muito que não é, para a maioria das elites do regime democrático, uma praia frequentável.
Ela é, hoje, com efeito, uma praia demasiado popular e populosa.
De figuras do atual regime que a visitavam, sem preconceitos, recordo a presença descontraída de Almeida Santos e Veiga Simão e, menos visível, de Alvaro Cunhal e Carlos Brito.
A insólita escolha do Presidente parece, pois, ter sobressaltado jornalistas, comentadores, cronistas sociais e alguns políticos.
«Que quer isto dizer; ao que chegámos!» – exclamaram alguns que julgam poder expressar as idiossincrasias dos que consideram ser «a nata da sociedade portuguesa».
Entre algumas picadas ao alegado recente mau gosto do Presidente e ao suposto populismo que dizem tê-lo determinado, todos se puseram a tentar adivinhar as causas da opção presidencial.
De Monte Gordo e de tudo o que, propriamente, ali se foi e vai passando, ninguém falou; e foi pena.
Passo, desde os meus cinco anos de idade, parte significativa das férias grandes nesta praia.
Assisti, pois, a todas as mudanças que aí foram ocorrendo: mudanças de frequência social, de urbanismo, de comércio, de gosto, enfim.
E foram várias as vidas desta praia: fui do tempo da existência de apenas uma meia-dúzia de ruas alcatroadas ou empedradas e de os filhos dos pescadores andarem nelas descalços; da inauguração do Hotel Vasco da Gama – então um dos mais luxuosos do Algarve -; da edificação de um bairro de belas moradias na zona da mata para banhistas ricos e provindos, essencialmente, do Alentejo, de Faro, Tavira e Vila Real de St. António, mas, também, mais tarde, do norte do país.
Assisti, em seguida, à reabilitação entusiasmada, já depois do 25 de Abril, do bairro dos pescadores.
Presenciei, por fim, a desordenada e inqualificável construção dos mais aberrantes prédios de apartamentos para setores de uma classe média mais endinheirada, ocorrida alguns anos depois da revolução de setenta e quatro.
De um momento para o outro, já na fase final dos anos oitenta, até meados dos anos noventa do século passado, fruto da pressão dos empreiteiros, das necessidades económicas dos que possuíam casas tradicionais e da ganância dos que ainda aí mantinham moradias na marginal, iniciou-se um movimento de destruição do que havia de mais característico nesta povoação e, em sua substituição, do início, totalmente anárquico e incontrolado, da edificação massiva de novos e, em geral, horrorosos prédios de apartamentos.
Na falta de um verdadeiro plano de pormenor, tudo se precipitou e foi autorizado.
Hoje, Monte Gordo é uma povoação a que falta a mais elementar racionalidade urbanística e a que foram selvaticamente suprimidas – não sei se definitivamente – as potencialidades de uma reabilitação harmónica que a valorizasse.
Apesar disso, continua a ser, também, uma praia acessível a quase todos e com algumas das melhores qualidades balneárias do país e, porventura, da Europa.
O que mais revolta, porém, é o facto de tal destruição urbanística se ter iniciado quando eram já reconhecidos os erros e atentados que descaracterizaram, igualmente, outras conhecidas zonas balneares do Algarve.
Das lindas moradias da marginal, poucos exemplos restam hoje e as que subsistem estão, em geral, encaixadas entre prédios feios e ali plantados sem a mínima lógica estética e congruência urbanística.
Resta, de bom, um recém-melhorado jardim marginal, beneficiação que, ainda assim, só favoreceu apenas uma sua metade.
Adquiriu Monte Gordo, também, um passadiço novo, onde, finalmente, se disciplinou a implantação dos restaurantes e apoios de praia, o que, se não olharmos para o desordenamento que fica por detrás, até lhe dá uma ideia de qualidade e harmonia.
O pior, no entanto, é, sem dúvida, a anarquia do estacionamento.
Este fenómeno é o resultado do facto de, durante muito tempo, não se ter obrigado os empreendedores a construir garagens nos prédios que foram edificando.
Pior: de se ter permitido, depois, vender autonomamente as garagens dos prédios que, entretanto, as começaram a incluir.
E – mais importante ainda – de se cobrarem preços exorbitantes nos parques públicos de estacionamento na primeira linha de praia, que, assim, ficam quase vazios, sem que, verdadeiramente, se tenham construído, em alternativa, parques de estacionamento decentes, vigiados, seguros e baratos, situados à entrada desta localidade.
Nesta matéria, o resultado é o caos.
Além disso, e de muitos outros desleixos e abusos, as ruas destinadas especificamente aos peões encontram-se reduzidas a metade da sua largura, pois a outra metade é ocupada, ou por automóveis mal-estacionados e – não sei se legalmente ou não – por expositores exteriores das inúmeras lojas de roupas e brinquedos provindos, sobretudo, da Índia, Paquistão e China.
Por esta última razão, Monte Gordo tem, agora, a aparência de uma ininterrupta, enorme e incaracterística feira de fancarias.
Isto, apesar de, no passeio marítimo, existir, também, na época alta, em permanência e simultâneo, uma verdadeira e já mais organizada feira, que vende, precisamente, os mesmos produtos.
Tudo o que antes referi, dá – no período de verão – a esta localidade um aspeto desarrumado e pouco atraente, o que, por contraste, choca, no restante período do ano, com a sua amena serenidade e beleza natural.
As notícias da presença, nesta praia, do Presidente Marcelo poderiam, pois – mais do que «divertir» os cronistas sociais – ter servido para provocar nos poderes públicos um sobressalto cívico e uma discussão séria e aberta sobre os caminhos percorridos pelo turismo algarvio.
Isto, não apenas no plano do urbanismo, como, também, no da qualidade dos serviços públicos que permitem e apoiam, não só a população residente, como, não menos importante, tal atividade económica.
Mais ainda, importaria refletir na programação e realização de uma atividade cultural, recreativa e desportiva que assegurasse, principalmente nas temporadas baixas, a presença e o interesse de outro tipo de turistas.
Infelizmente, a «snobeira», o novo-riquismo e a crescente depreciação da cultura jornalística, não permitiram que se tivesse aproveitado esta ocasião –reconheçamos que invulgar – para fazer um mais do que necessário balanço do que, de bom e de mau, foi acontecendo e do que, ainda, é possível fazer, para emendar e salvar o que resta do Algarve de sempre e, em particular, desta praia, que continua, mesmo assim, a ter condições balneares naturais excecionais.
As fofoquices vendem, contudo, mais: todos sabemos!