E, de repente, todos parecem concordar que a maioria esmagadora dos salários dos portugueses são baixíssimos e não chegam para quem os aufere possa – ele e a família – viver decentemente.
Hoje, assim concluem aqueles que, ainda ontem, se indignavam com a subida do salário mínimo por decisão governamental.
Afirmam-no, também, os mesmos que antes repisavam, à exaustão, que, sem aumento da produtividade, não podia haver aumento de salários, pois, pretendiam não haver excedente para repartir, mesmo quando tal requisito não se aplicava aos proventos obtidos pelo empregador.
Dizem-no, ainda, aqueles que, justificando-se com a condição das finanças públicas e a iniludível necessidade do seu equilíbrio, consideravam imperioso manter, a título de exemplo, os salários baixos da função pública.
Indignam-se, agora, os que, sem outra razão, sempre defenderam, por preconceito político e ideológico, que salários decentes constituem uma espécie de roubo a quem os paga: é a teoria de que a propriedade é um roubo, mas ao contrário da pretendida por Proudhon.
Repetem-no os que, antes, por se acomodarem ao pensamento dos que, por várias razões, negavam a possibilidade de aumentar salários, acreditavam que, sendo submissos, poderiam partilhar, ainda assim, algumas das migalhas do que restava no fim do banquete.
O que ocorreu então para que, de repente, todos esses negacionistas do aumento dos salários tivessem começado a achar que é preciso melhorá-los e redistribuir melhor, e desde já, os resultados da economia, que, afinal, segundo todos os indicadores, segue crescendo?
Terão chegado, por fim, à conclusão de que se aproxima um assustador ponto de rutura social?
Terão começado a pensar que pode suceder no nosso país algo semelhante ao que ocorre já em França?
Quase de certeza que não é porque tivessem mudado de opinião económica e política, ou de vida e campo social.
Ou, ainda, porque de repente se impressionaram com o número crescente de greves que ocorrem em várias áreas do trabalho público ou privado.
Será, porventura, por causa das eleições europeias que, todavia, ainda não estão suficientemente próximas?
Porque será, então?
Razões boas e sólidas para que, assim, todos – mesmo os que antes repudiavam tal medida – comecem a pedir aumentos de salários existem realmente.
Por exemplo, a grave, mas realista, visão que têm da vida futura dos seus filhos.
A visão diária dos filhos que hoje permanecem na casa familiar, pois os salários que auferem como profissionais mais bem preparados do que os pais, não lhes chegam, todavia, para ter uma vida própria e autónoma da economia familiar.
Tal constatação faz-nos regressar a muitos anos e mesmo alguns séculos atrás, quando uma grande prole e vários empregos – e logo mais rendimentos na família – era fundamental para evitar a miséria de todos.
Porventura aí, a razão pela qual certos políticos, coadjuvados pelos seus inspiradores economistas, falem hoje mais das condições de vida das famílias e muito pouco da justiça e dignidade da vida dos que, individualmente, auferem um salário pelo trabalho que pessoalmente prestam.
Mas, recapitulemos: não é só porque a desigualdade cresce a ritmo chocante, sendo socialmente, cada vez mais evidente, inexplicável e moralmente inadmissível, que parece assistir-se a tal inaudita unanimidade.
Com efeito, há muito, que os princípios morais e religiosos deixaram de influir no pensamento e, menos ainda, na ação, dos responsáveis políticos e económicos que, só agora, se dizem escandalizados com tal realidade.
Hoje, por exemplo, bem pode o Papa falar, insistentemente, sobre os perigos e malefícios do crescimento das desigualdades sociais e na injustiça que elas geram que, nem os padres, nem os fiéis, se inspiram nas suas palavras.
A verdade é que a célebre TINA – «there is no alternative» – hegemonizou, progressivamente, a cultura política e económica da sociedade global atual.
Todos, ou quase – mesmo os que a sofrem mais impiedosamente – emparelham, agora, por tal ideia: deveria referir, antes, com maior correção, tal axioma.
Mesmo os que agora contestam os efeitos dessa política inumana – e muitos são, como já vimos – não arriscam, contudo, pôr em causa a arquitetura social atual que a origina.
É por essa razão que, mesmo os mais violentos protestos, se esgotam na violência e destruição gratuitas que geram, e acabam, as mais das vezes, por criar uma ainda maior frustração.
Na verdade, os princípios morais que se inspiraram na caridade cristã ou, mais tarde e mais vivamente, no humanismo socialista pouco parecem contribuir, nestes tempos, para alimentar o projeto e o desenho de uma nova sociedade, mais justa e mais fraterna.
Não falo já de uma ideia de mudança de paradigma social como a que inspirou, desde meados do século XIX e durante largos anos do século XX, muitos movimentos humanistas e revolucionários.
E, todavia, em muitos aspetos, mesmo sem concretização plena, eles foram indispensáveis para que, pelo menos, a ideia de Estado Social florescesse em alguns países, por via do calor e da luz que o ativismo daqueles lhe emprestaram.
Falo, apenas, dos ajustamentos que, em consequência da presença e da ação politicamente orientada daqueles movimentos mais radicalmente humanistas, a social-democracia do pós-guerra aproveitou e conseguiu impor em alguns países europeus.
Pesem embora a erosão e os retrocessos que, depois, se foram verificando um pouco por toda a Europa, a verdade é que, nos países onde tais ajustamentos se sedimentaram como moralmente justos na consciência social – mesmo que geridos, depois, por governos conservadores – parece mais difícil transformar os efetivos direitos por eles gerados, e já constitucional e juridicamente assegurados, em simples e aleatórias benesses.
Benesses temporárias, oferecidas e retiradas, quando convém, aos que, na política ou na economia, governam hoje o sistema numa perspetiva que gostam de apresentar como sendo apenas uma imposição de pura natureza tecnocrática.
Tais países são, todavia, poucos e, mesmo neles, assiste-se, mais recentemente, a uma erosão gradual, e muitas vezes impercetível, dos referidos direitos.
Redirecionar a discussão social no sentido iniludível dos propósitos humanistas, que devem, antes do mais, inspirar e orientar toda a ação política, torna-se, neste contexto, vital.
Lembremos que está uma vez mais à porta uma revisão constitucional.
Se isso não acontecer – se os propósitos humanistas forem secundarizados -, corremos o risco de uma revolta brutal que, desta vez, só aparentemente, se irá esgotar em si própria.
Na verdade, pode dar-se o caso de tal revolta vir a ser aproveitada politicamente por uma militância antidemocrática, que, circunstancial e oportunisticamente, sugere, apoia e até organiza algumas de tais reações violentas e catárticas, mas cujo objetivo, bem definido, é, afinal, o do regresso a um Estado mais autoritário, paternalista e sem direitos cívicos e sociais para os cidadãos.