Portugal e o país dos sovietes…

Portugal e o país dos sovietes…


Quase 40 anos se passaram sobre a vitória de Portugal perante a Rússia e o nosso primeiro Europeu


O Estádio da Luz rebentou pelas costuras nessa tarde chuvosa de Novembro. Pendurado no ‘Terceiro Anel’, um cartaz exibia cinicamente: ‘South Korea Airlines: Bum!’, relembrando o abate de um Jumbo das linhas aéreas coreanas pela força aérea soviética dois meses antes. 

Quando as equipas subiram ao relvado, uma explosão enorme de entusiasmo e crença afirmou a presença de um público que iria levar a sua seleção ao colo até ao apuramento. Procurando reforçar a juventude e a criatividade do meio-campo, a equipa técnica trocou Costa por Chalana; no ataque, é Jordão, que só por lesão não fora titular em Wroclaw, a tomar o lugar de Nené. Portugal renovava-se agora claramente, e o quarteto de médios – Chalana, 24 anos; Carlos Manuel, Jaime Pacheco e José Luís, todos com 25 – estava aí para o provar. Cumprem-se em breve quarenta anos, assim mesmo, por extenso. Portugal, pobre parceiro dos confins da Europa, só atingira uma fase de um mundial, em 1966, e arrastava-se n tal apagada e vil tristeza que é uma parte tão grande da idiossincrasia deste povo bisonho e anémico.

Depois da vitória na Polónia, uma brisa de otimismo tomou conta daquela tarde anémica de Lisboa. Dezassete anos depois da grande saga dos Magriços em Inglaterra, uma nova gesta de jogadores portugueses abriria o seu caminho para a fase final de uma grande competição mundial. Com dois extremos – José Luís e Chalana – torturando continuamente os laterais soviéticos, Portugal rapidamente tomou conta dos acontecimentos. Foram suas as grandes oportunidades de golo, eram seus os movimentos mais brilhantes desenhados sobre um relvado enlameado. A três minutos do intervalo, Chalana arranca com a bola controlada e vai passando por adversários; quando se preparava para entrar na área, é rasteirado por Borowski. Mais tarde, ninguém ficaria com dúvidas de que a falta foi cometida fora da grande-área e que não havia, por isso, lugar a ‘penalty’; o próprio árbitro, o francês George Konrath, tão perentório a apontar para a marca do castigo máximo, reconheceria depois, numa entrevista concedida a Victor Sinet, no L’Équipe, que a televisão lhe dissipara as dúvidas, mostrando que não era, de facto, ‘penalty’. 

 

Mas, se a vitória portuguesa ficava escrita a linhas tortas, a sua justiça não deixava de ser clara e límpida como a água de uma nascente, tal fora a superioridade evidenciada durante todos os 90 minutos. Jordão encaminhou-se tranquilamente para a bola, tomando pouco balanço. De olhos presos no avançado português, Rinat Dassaev, para muitos o melhor guarda-redes do mundo, deixa-se enganar pela ‘paradinha’; cai sobre o seu lado esquerdo, enquanto Jordão coloca a bola mansamente na sua direita. Havia gente que chorava nas bancadas da Luz; homens incrédulos abraçavam-se uns aos outros. A festa prolongar-se-ia pela madrugada.

Meses antes, o brasileiro Otto Glória, mago de 1966, preparava a sua equipa técnica: dela fariam parte o jugoslavo Radisic, preparador físico do Sporting, e os técnicos Fernando Cabrita e José Augusto, este com a responsabilidade das seleções jovens, Toni e António Morais, como colaboradores em ‘part-time’, e Eusébio como técnico auxiliar, também em ‘part-time’. Consciente da sua desatualização sobre o futebol português, após doze anos de ausência, ‘seu’ Otto definia prioridades: «É preciso reorganizar de alto a baixo a equipa de Portugal e é para isso que eu estou cá!». Seu Otto não duraria muito tempo. A goleada sofrida no país dos sovietes (0-5) e aquela trabalhada de levar uma espécie de seleção nacional C u D a fazer jogos na África do Sul, país excluído da comunidade internacional por causa do apartheid conduziram ao seus despedimento e poriam Portugal na fase final de França com o pormenor indescritível de ter no banco quatro treinadores: Toni, José Morais, Fernando Cabrita e José Augusto.

Já tinha sido um conjunto em autogestão a vencer a URSS. Continuou assim em França. Portugal, a despeito de ter atingido as meias-finais da prova, foi sempre uma seleção timorata e improfícua, desperdiçando a veia goleadora de jogadores como Nené e Fernando Gomes, que praticamente nunca saíram do banco de suplentes, deixando a Jordão a tarefa solitária de tentar concluir a infinidade de lances ofensivos que o talento de Chalana era capaz de inventar. Além disso, a decisão de prescindir de um médio direito, como José Luís ou Jaime Magalhães, fez com que a equipa fosse sempre ‘coxa’. 

Não restarão dúvidas de que o jogo de preparação contra a Jugoslávia, disputado no Estádio Nacional, consolidou as opiniões de António Morais e da restante equipa técnica que terá, aí, decidido seguir a filosofia de que Portugal não podia jogar com mais do que um ponta-de-lança. E esta decisão foi tão importante para o futuro da seleção nacional que serviu para romper de vez com o estilo de jogo aplicado até então pela equipa das quinas. O sinal tinha sido dado. Toda a vida da seleção nacional no Campeonato da Europa seria minada por questiúnculas menores de gente perfeitamente impreparada para uma grande competição como esta. Dia a dia, os interesses pessoais de alguns jogadores e técnicos – José Augusto e Morais incompatibilizaram-se por completo – teriam eco nos jornais portugueses, desestabilizando o já de si frágil equilíbrio de um grupo dividido por fortíssimas rivalidades regionais e clubistas. l