Este será possivelmente o piorzinho da colheita de maus artigos sobre o 25 de Abril… o aviso está feito.
Tenho lido alguns bons e alguns artigos interessantes sobre o tema. Um que faz reflectir sobre a forma como os nossos filhos e netos vêem a data e o seu significado, eles que nasceram muito depois de 1974, nunca conheceram o antigo regime e não têm qualquer marco de referência para comparar. Um outro, delicioso, sobre as prisões de grandes empresários, a seguir ao 11 de Março de 1975: presos em Caxias, alguns mandavam vir as refeições do Gambrinus e do Tavares, restaurantes de luxo que tinham parte da clientela na cadeia…
Li também o mais franco e honesto artigo escrito por alguém da extrema esquerda que me foi dado ler até hoje. A tese central é simples: o 25 de Abril é da esquerda, foi uma revolução à qual a direita se opôs e por via de consequência é antagónico da “direita”. É só “deles”. Assim as coisas são simples…
Ao contrário do que a nossa esquerda pensa, os espanhóis, por exemplo, que tinham uma ditadura muito mais dura que a nossa, não tiveram revolução nenhuma, tiveram uma transição democrática e, que me conste, são tão democráticos como nós. Idem para os gregos.
Infelizmente, os golpes com que os comunistas sequestraram em seu proveito uma mudança de regime que era de todos, em 28 de Setembro de 1974 e no 11 de Março de 1975, na sequência do que impuseram um “pacto” MFA (movimento das forças armadas) / Partidos, desvirtuaram o espírito democrático do novo regime, impondo-lhe soluções pré-fabricadas em Moscovo, de cujo resíduo ainda sobra o espírito que anima o preambulo da nossa Constituição:
“(…) A Assembleia Constituinte afirma a decisão (…) de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.”
Se este é o sumo em que a esquerda se revê e acha que se trata do verdadeiro espírito do 25 de Abril, então, realmente, não posso dizer que me reveja nisto.
Falhei por 4 ou 5 anos uma participação mais activa na época: tinha 16 anos, acabei o sétimo ano do Liceu em 1975, a seguir consegui um papel da Embaixada de França a certificar o termo do meu curso do Liceu e em Julho de 1975, em pleno Verão quente, estava em Paris a inscrever-me na Sorbonne, em direito. Estivesse eu já inscrito em direito cá e teria cá ficado. Assim como foi, e por várias vicissitudes da vida que não vêm a propósito, acabei na Universidade de Strasbourg a cursar o meu direito na esperança que fosse apenas o ano correspondente ao serviço cívico… Acabei por lá ficar seis anos em que obtive a minha licenciatura e uma pós-graduação em estudos europeus.
Quando voltei em 1981 era, apesar das férias numerosas que cá tinha passado, um estrangeirado que pensava e lia em francês. Comecei a trabalhar e a ler em português nesse Outono e aproveitei para ler tudo o que era essencial no direito pátrio e na literatura. Fez-me o maior bem.
Vem isto a propósito de que nessa época era necessário, para me poder inscrever na Ordem dos Advogados, passar um exame de equivalência ao curso francês numa universidade portuguesa, que calhava ser a de Coimbra.
O exame, de um dia inteiro, perante quatro ilustres lentes dessa ilustre universidade, teve lugar em Março de 1983. Já tinha tido alguns choques culturais, mas esperava-me o maior. Calhou-me a direito administrativo um Catedrático que, numa vida preenchida e dedicada ao direito, ao saber e ao ensino, tinha feito uma sebenta com a súmula do seu precioso ensinamento. Tal preciosidade só podia ser consultada na biblioteca da Faculdade de Direito de Coimbra, não havia em mais lado nenhum.
Nessa ocasião eu trabalhava já há ano e meio, sobretudo no direito administrativo e lia e relia diariamente o Manual do Professor Marcello Caetano. Começado o exame, as perguntas incidiram sobretudo sobre a teoria do acto administrativo e eu ia respondendo muito à vontade, porque era matéria que dominava mais do que bem.
Para meu espanto, o Catedrático ia ficando com um cenho cada vez mais carregado, até que explodiu: “O senhor só diz asneiras!”. Parei perplexo e nesse instante ocorreu-me dizer uma coisa inteligente: “Senhor Professor, percebo a sua discordância; de facto tenho estado a repetir a lição do Professor Marcello Caetano e sei que neste ponto discorda dele”. Tinha lido isso numa nota de rodapé de um artigo sobre a matéria que Marcello tinha escrito para a revista O Direito. O que fui dizer eu, meu Deus! O homem explodiu, ficou apopléctico de tal forma que o Professor Mota Pinto, de quem eu tinha lido tudo, teve de o acalmar – “oh fulano, acalma-te que ainda tens um ataque cardíaco!”.
Na minha universidade francesa, se eu tivesse dito o que disse, o Professor ter-me-ia instado a explicar melhor qual era a discordância que eu tinha descortinado na lição dele e na do outro. Aqui não: o que o Professor esperava era que eu repetisse, e apenas isso, o precioso saber que tinha dispensado na sua sebentinha. E por isso, eriçou-se todo comigo.
Isto foi antes de eu ter ido para a London School of Economics, onde não se esperava, mas se exigia, que os alunos participassem activamente nas aulas, comentassem o ensinamento que acabavam de receber à luz das leituras que supostamente deveriam ter feito, com espírito crítico.
Ali, o nosso douto catedrático de Coimbra não teria durado um semestre, até porque no fim de cada semestre, os alunos davam nota aos professores, ao curso, à universidade.
Mas enfim, percebi que podíamos ter feito uma revolução, ter acabado com um império colonial, ter roubado o país e o tecto a meio milhão de “retornados” de África, mas que na essência somos os mesmos que viveram felizes durante 48 anos de Estado Novo. E isso é preocupante.
O mais importante do 25 de Abril foi ter aberto o caminho – lamentavelmente com a necessidade de um golpe militar – à eclosão da democracia. Meio século depois temos uma democracia amadurecida que como todas as democracias tem os seus altos e baixos, os seus milagres do quotidiano e os seus becos sem saída, e que pode e deve evoluir e muito.
Aquilo que agora verdadeiramente necessitamos é de mais exigência e participação cívica, mais espírito crítico, mais vontade e coragem para pôr em causa quem governa e manda, sem essa atitude atenta, veneranda e obrigada de que os nossos conterrâneos são adeptos perante o poder instituído.
Não quero fazer, bem entendido, a apologia da subversão, mas se alguma coisa sobra da lição de Abril é que foi aberta uma página em branco, na qual nos cabe a todos escrever um país novo, limpo e sério. E um país desses, na verdade, não se escreve com as ideias do passado, mas com as ideias do futuro.
Se for para isso, o 25 de Abril também é meu.
Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do Manifesto por uma Democracia de Qualidade.