É sempre inevitável uma tristeza em dia de adeus, assim são todas as despedidas, esta especial porque envolvia alguém inequivocamente especial, Henrique Ben David foi sempre um homem especial, um jogador de futebol especial, de repente uma doença pôs-lhe fim à carreira, as gentes do Atlético, o seu clube de quase sempre não perderam a oportunidade de lhe organizar uma homenagem a sério, tal e qual ele merecia, é bem verdade que veio do Mindelo para jogar primeiro na CUF, do outro lado do rio, no Barreiro, mas Alcântara foi a sua casa durante oito anos, Henrique de Sena Ben David, avançado-centro poderoso, natural de Cabo Verde, um dos primeiros jogadores das colónias a ter sucesso na Metrópole.
A festa da Tapadinha apresentava uma tarde de luxo para todos os que com o dinheiro dos seus bilhetes iriam ajudar Ben David a continuar a viver fora dos campos de futebol, nessa altura era mesmo assim, fazia-se uma grande festa de homenagem, ou de despedida, como quiserem, a verba obtida revertia para o jogador e era, geralmente, um excelente tónico para iniciar uma nova existência, o que os clubes pagavam era no geral muito poucochinho, abriam-se portas para assentar um negócio ou qualquer coisa do género, Ben David era especial mas não tão especial que pudesse dispensar tão útil ajuda, recorde-se que estava com apenas 28 anos, ainda parecia ter muito para dar, ele que com a camisola do Atlético marcara 98 golos em 119 jogos, um número sem dúvida impressionante.
Decidira-se que a tarde iria ter início com um encontro entre Atlético e Oriental e que, em seguida, tipo aquilo que os franceses gostam de chamar de “piéce de résistance”, viria um formidável desafio entre os melhores jogadores das colónias e os melhores jogadores argentinos que atuavam em equipas portuguesas, algo que se esperava ser verdadeiramente de arromba porque havia nomes muito sonantes de um lado e do outro. O povo, excitado, agradecido, comovido, disse um sim muito grande à festa de homenagem a Henrique Ben David, ele bem a merecia, sempre fora um cavalheiro, fulano educadíssimo, adversário elegante, homem com um agá grande, tão grande como o que lhe iniciava o nome: Henrique.
Cabo Verde Ninguém esqueceu as suas origens. E, por isso, a taça que foi disputada entre Atlético e Oriental levou o nome de Taça Cabo Verde em honra do Mindelo que o viu desembarcar no mundo no dia 5 de Dezembro de 1926, não podendo adivinhar ainda que a sua vida seria tão curta, morreu noutra ilha, nos Açores, na cidade de Ponta Delgada a 4 de Dezembro de 1978, ironicamente na véspera de cumprir 52 anos sobre este planeta que alguns afirmam ter sido feito por Deus, coisa que duvido e continuarei a duvidar até me encontrar com Ele frente a frente e receba da Sua parte muitas explicações sobre tanta asneira que por cá deixou.
O Atlético era, na altura, de I, o Oriental de II, não foi de estranhar que ganhassem os de Alcântara, até com certa facilidade, para alegria do povo que enchera a Tapadinha, ainda tiveram tempo de aplaudir longamente o seu herói quando, a cinco minutos do final, ele entrou para o lugar de Quaresma de maneira a cumprir uma derradeira corridinha com a camisola da sua eleição.
Depois anunciava-se o tal Ultramarinos contra Argentinos, nos Ultramarinos alinharam gente como Costa Pereiraa, Mário Wilson, Vicente, Juca, Matateu, Peyroteo, Coluna, Fernando Mendonça e José Águas, um luxo sibarítico, não há como negá-lo, enquanto pelos sul-americanos das margens de La Plata havia gente com o prestígio de Ramín, Belén, Porcel, Imbeloni, Perez e Di Pace. Ora tubérculos! Também não ficavam atrás! A malta fixou os olhos no relvado e não mais dele os tirou se não no final de hora e meia movimentada e na qual de um lado e do outro todos fizeram para demonstrar as qualidades técnicas que possuíam, terminando a contenda com 4-2 a favor da rapaziada das colónias, algo que não terá deixado de fazer de Ben David um sujeito satisfeito, ele que foi ao centro do relvado para ser cumprimentado por todos os jogadores que lhe tinham entregue essa tarde de despedida e recebeu um sem número de galhardetes, medalhas e troféus e ficou ali, rodeado deles, enquanto, em pé, os adeptos que ele alegrara com os seus golos e o seu futebol ágil e elegante não paravam de bater palmas em uníssono a ponto de lhe fazerem as lágrimas acorrerem aos olhos.
Raios de um sol benfazejo brilhavam sobre Lisboa e soltavam espelhos nas águas do Tejo enquanto na Europa se sofria um das maiores vagas de frio dos últimos cem anos, a neve tombando inclemente sobre Londres e Paris de onde chegavam notícias lamentáveis. Ben David aproveitava o ambiento morno da Tapadinha para desabafar sobre o seu precoce adeus, depois de ter sido sujeito a várias cirurgias: “Não dava mais. Já não era capaz”. Todos o perceberam. Responderam-lhe: “Obrigado!”