Sisa Abu Daooh. Fingir ser homem para se tornar uma grande mãe


Sisa Abu Daooh cresceu na década de 50 com um destino difícil de evitar. Em Luxor, cidade do Egipto nas margens do Nilo situada a 640 quilómetros do Cairo, imperava o pensamento conservador e a família não dava grande margem para combater essa postura. Nunca estudou e até hoje não sabe ler nem escrever. Por…


Sisa Abu Daooh cresceu na década de 50 com um destino difícil de evitar. Em Luxor, cidade do Egipto nas margens do Nilo situada a 640 quilómetros do Cairo, imperava o pensamento conservador e a família não dava grande margem para combater essa postura. Nunca estudou e até hoje não sabe ler nem escrever. Por isso o mundo pareceu-lhe ter desabado aos 21 anos, quando estava grávida de seis meses e o marido morreu. Era preciso encontrar uma forma de sustentar a filha, Hoda.
 
O peso da família fez-se sentir, mas a vontade de Sisa falou mais alto. “Os meus irmãos queriam que eu casasse outra vez. Estavam sempre a arranjar--me noivos”, contou agora, depois de receber a distinção da cidade de “mãe mais dedicada”, numa cerimónia que envolveu também o presidente doEgipto, AbdelFatah al-Sisi. A solução encontrada foi outra: a sociedade não estava preparada para uma mulher que quisesse trabalhar, por isso Sisa decidiu dar-lhes o que queriam – um homem. Rapou o cabelo, começou a vestir roupa larga e quebrou barreiras. Os trabalhos no campo estavam vedados a mulheres e a falta de estudos não lhe permitia trabalhar num escritório, mas força não lhe faltava. Durante os últimos 43 anos, dividiu-se entre os trabalhos de construção civil, as plantações de trigo e, mais recentemente, por ter ficado sem força, rendeu-se ao papel de engraxadora de sapatos. “Preferia ter trabalhos duros, a levantar tijolos e sacos de cimento ou a engraxar sapatos, a pedir esmolas na rua para me sustentar”, justificou.
 
A escolha de vida foi a alternativa mais natural. E manteve o disfarce para se proteger dos homens e da postura agressiva que pudessem ter devido às tradições enraizadas no Egipto. “Decidi ser um homem, vestir-me com as roupas deles e trabalhar entre eles nas vilas onde ninguém me conhecesse”, contou, sem nunca mostrar um pingo de arrependimento. “É duro para uma mulher perder o seu lado feminino, mas pela minha filha faria tudo. Esta era a minha única forma de ganhar dinheiro. Que mais poderia fazer? Não sei ler nem escrever, a minha família não me deixou ir para a escola. Por isso esta era a única forma.”
 
O êxito de Sisa nunca esteve em causa. Tinha a força “de dez homens” enquanto trabalhava e ser uma mulher nunca a impediu de fazer o que lhe era pedido e somar novas oportunidades de garantir que nada faltava à filha. Mena Melad, editor do “Luxor Times”, escreve que a mulher entrava nos cafés com os outros homens e ninguém notava: “Era um deles.” E era feliz, garante Sisa. “Era capaz de fazer os trabalhos tão bem como eles e as pessoas à minha volta ficavam satisfeitas. Os homens olhavam para mim como um homem”, continua. E faziam-no apesar de a certa altura o disfarce ter deixado de ser absoluto.
 
Era impossível continuar a fazer toda a gente acreditar que era uma mulher. Com o passar do tempo foram sendo cada vez mais os que sabiam do segredo, mas a revelação não trouxe problemas. “Nunca o escondi. Não estava a tentar que fosse um segredo”, explica a egípcia de 65 anos. Por isso não foi por desleixo mas sim por evolução natural que agora já não há vivalma em Luxor que não saiba que aquele engraxador de sapatos é na verdade uma mulher. “A cidade inteira sabe, do rapaz mais pequeno ao homem mais alto.”
 
A filha cresceu, casou e teve também ela filhos, mas o fardo de Sisa não se aliviou. O genro adoeceu e não pode trabalhar, pelo que cabe à agora avó continuar a trabalhar para ser o sustento de uma família cada vez maior, até porque não quer queHoda siga pelo mesmo caminho: “Claro que não. Ela tem um marido, tem filhos.” Mas pelo menos sempre há uma pequena ajuda: “Ainda é a minha mãe que sustenta a família”, aponta Hoda. “Acorda todos os dias às seis da manhã para começar a engraxar sapatos na estação de Luxor. Eu carrego o material porque ela já está numa idade avançada.” E o brilho dos sapatos é também o reflexo do orgulho de uma mãe que conseguiu ter sucesso quando tudo parecia indicar o caminho contrário.
 
O reconhecimento da dedicação como mãe surge quando o pior já ficou para trás mas nem assim parece pronta para recuperar o que perdeu há tantos anos, pelo que vai continuar a vestir-se de homem, aconteça o que acontecer. “Decidi morrer com estas roupas. Habituei-me a elas. É a minha vida inteira e não a posso abandonar agora.”