É considerado o pai da cozinha a baixa temperatura em Portugal, mas gosta pouco de se mostrar. Formou vários chefes que actualmente se destacam no panorama nacional, mas não os enuncia. No início do próximo mês, Miguel Castro e Silva é um dos nomes – juntamente com Fausto Airoldi e Vítor Sobral – a quem o Congresso dos Cozinheiros presta homenagem. O B.I. foi falar com o cozinheiro que podia ter sido músico e que não conseguiu fazer a passagem para a fotografia digital.Uma saborosa conversa sobre os sabores portugueses.
Largou o Bull and Bear, no Porto e veio abrir o restaurante Largo, em Lisboa. Foi um desafio?
No Bull and Bear às vezes mudava a ementa do almoço para o jantar porque não me apeteciam aqueles pratos. O arranque do Largo foi um desafio enorme, porque é um restaurante grande, eu tinha deixado o Porto e andava tudo a perguntar por mim. A expectativa era maior. O Largo, pela dimensão, pelo tipo de restaurante que é, tem uma componente bastante trendy, e a abordagem tinha de ser diferente da do Bull and Bear, que tinha 40 e poucos lugares, e onde fui o primeiro a fazer menus de degustação. Era uma realidade que não encaixava no Largo.
Mas agora sabemos onde anda o Miguel Castro e Silva.
Nestas últimas semanas consegui redescobrir um bocadinho o gozo que me dá brincar com a comida. Por exemplo, fiz um jantar no Hotel do Martinhal, em Sagres, que dizem que foi muito bom. Este último lá em cima, no Porto, integrado no Experiencing Port Wine, em parceria com o chefe José Guedes, deu-me muito gozo. E deu-me muito gozo desafiar o José Guedes. O tema de que ele se lembrou foi fazer o percurso do rio Douro e ir buscar coisas de cada zona. Ele conhece bem a minha cozinha e portanto tentou, nas ideias dele, ir ao meu encontro. No início até estava bastante despreocupado, mas entretanto a bitola começou a subir por causa dos jantares anteriores e pelas pessoas que estavam presentes [risos]. Foi um jantar muito giro.
É preciso ter sempre uma espécie de entusiasmo infantil?
Com a vida que levo, há alturas em que sou mais chefe que cozinheiro. As pessoas hoje confundem um pouco isso. Há dez anos a profissão de cozinheiro não era propriamente bem vista. Fomos nós, uma meia dúzia – eu, o Vítor Sobral, o Fausto, o Joaquim Figueiredo – que demos outra visibilidade, outra dignidade à profissão de cozinheiro. Agora acho que se tornou moda e peca pelo excesso. As pessoas esquecem-se que somos cozinheiros. O chefe é mais uma função inerente a um cargo que se ocupa, de chefiar. É como o director-geral de uma empresa. Antes de mais devemos ser cozinheiros, e é enquanto cozinheiro que a parte criativa e o desenvolvimento surge. Chefiar é o lado de ser responsável por vários espaços, organizar, disciplinar. Por exemplo, este programa que fiz da recriação da Última Ceia [para o canal História]: na quarta--feira estava totalmente a zero porque ainda não tinha nenhuma informação-base para orientar a minha linha de pensamento. Tinha de entregar o programa na terça-feira seguinte. As coisas fluíram muito bem e as ideias apareceram, porque na segunda-feira estive aqui sozinho – o restaurante fecha à segunda-feira – a fazer as preparações. E aí vem o tal bichinho de estar na cozinha a experimentar, a testar, a preparar. Estava mesmo desligado da minha função de chefe. Estar, experimentar, criar…
Tem passatempos?
Acho que a cozinha era um dos meus passatemos. Os outros dois ou três eram a música, que sempre foi muito importante para mim. Até costumo dizer que tento ser na cozinha o que não consegui ser na música.
Gostava de ter sido músico?
Cheguei a ser, mas depois não dei continuidade. Tinha uma ligação muito forte ao piano, mas deixei-o por várias razões. Depois toquei baixo e guitarra, mas nunca me reencontrei nesses instrumentos. Cheguei a ter duas bandas. Sou amigo de infância do Rui Veloso e lembro-me de estar na cave dele enquanto ele experimentava, ensaiava… A minha primeira banda foi com o Toli César Machado, dos GNR. Foram uma brincadeiras, umas loucuras. Estive também ligado à música como técnico de som, nos estúdios da Valentim de Carvalho. Outra coisa que me acompanha desde miúdo é a vela, que comecei aos oito anos. E a fotografia também, de uma forma talvez menos séria, mas sempre gostei muito de fotografia, sobretudo preto-e-branco, e a cores gosto de naturezas mortas e assim.
Continua a fotografar?
Pouco. Deixei de ter tempo para esses outros passatempos… A vela, pontualmente. Quanto à fotografia, roubaram-me a câmara que eu tinha, que era analógica, e a passagem para o digital nunca foi por mim muito bem apreendida.
É considerado o pai da cozinha a baixa temperatura, que agora está na moda. Isso desvirtua a cozinha na sua essência?
A cozinha a baixa temperatura é uma coisa que tem um contexto científico. Não é uma brincadeira. A razão pela qual eu comecei pela baixa temperatura foi ter começado a procurar soluções: a cozinha portuguesa é uma cozinha lenta, mas que tem de ser consumida assim que está pronta, porque aquecido já não tem piada. A baixa temperatura foi a forma que encontrei de recuperar técnicas de cozinha portuguesa, uma cozinha lenta, mas que me permitisse fazer um serviço à carta. Tem uma componente científica e técnica elevada. De facto, se me dizem que há alguém que cozinha a 42 graus, essa pessoa não sabe sequer o que é cozinha a baixa temperatura. A 42 graus não acontece nada. O processo físico-químico começa nos 54-56 graus. Abaixo disso só crescem bactérias, não estamos a cozinhar nada. Claramente, as coisas são desvirtuadas por pessoas que não têm as bases necessárias e que querem pura e simplesmente ser diferentes, radicais…
O que gosta mais de fazer na cozinha?
A minha grande paixão é o peixe, e gostava de o trabalhar mais. Acho o peixe interessante pela versatilidade. Imagine um robalo: posso fazer um robalo com berbigão, porque vou chamar o sabor iodado, a intensidade do mar. Mas posso também fazer um robalo com laranja e funcho. Ou com azeite, com elementos transmontanos. Com o mesmo robalo, posso fazer um creme de cogumelos shitake e tenho uma componente terra no peixe.
O que acho giro no peixe é esta versatilidade. Como se pode ligar, como se podem fazer marinagens, ligações diversas. Na minha cozinha, normalmente gosto de trabalhar no máximo três vertentes: um produto-base, um produto que associo e o terceiro será o elemento de ligação. Gosto muito, e também sou conhecido por isso, de fazer uma cozinha de produto. Ao longo dos anos uma coisa que fui sempre fazendo foi recuperar produtos portugueses, procurar carnes, o bísaro, a vitela maronesa, e depois os vários tipos de cordeiros e cabritos e borregos.
Nunca se afastou dos produtos portugueses.
É uma parte da minha cozinha. Tenho incursões noutros lados. Por exemplo, na cozinha asiática acho que um dos meus ex-líbris é um robalo marinado, que é uma espécie de sashimi, mas temperado na nossa linha: com azeite, limão, ervas, flor de sal. Vou buscar essas ideias mas depois a interpretação que faço vai buscar sabores portugueses. Esse robalo é um prato muito simples mas que demorei muitos anos a fazer. Porque é de uma delicadeza e de um equilíbrio incríveis. Gosto muito da cozinha italiana, também. Não só as pizzas e as massas, mas os risotos, e muitas outras coisas. É uma cozinha muito limpa, não é confusa. Trabalha os produtos de uma forma em que os evidencia.
Como é um dia na vida do chefe? Acorda e…
Se não tenho compromissos logo cedo gosto de tomar um chá, sento-me em frente ao computador e, na parte da manhã, gosto de passar umas duas horas a tratar de coisas, ou emails, de trabalhar ideias. Também trabalho bastante com indústria, e a parte industrial tem uma grande componente de trabalho ao computador. Imagino os pratos e faço a formulação das fichas técnicas. Depois normalmente vou para um dos restaurantes, estou lá, acompanho. E a seguir depende dos dias. Hoje tenho uma entrevista [risos], no outro dia estive a filmar, mas isso também já faz parte do meu dia-a-dia há uns anos.
Continua a entrar na cozinha todos os dias?
Sim, sim. É isso que faz sentido, não é?
Reinventa-se sempre?
Acho que é do meu feitio. Estou sempre a questionar. Nem que seja para chegar à conclusão de que estava tudo bem. Os carneiros são um bocado teimosos e irrequietos. Se calhar é por isso [risos]. Isto é uma forma mais difícil de estar na profissão. Há restaurantes que têm a mesma ementa há anos. Aquilo funciona e não trocam. É muito mais confortável, não é? Isto de estar constantemente a reinventar as coisas… É para isso que sou cozinheiro e não sou gestor de uma empresa [risos].
Têm surgido imensos programas sobre cozinha. As pessoas estão mais informadas?
Os programas de cozinha tornaram-se uma moda. Mas não tenho a certeza que as pessoas estejam
mais esclarecidas. Infelizmente acho que são um bocadinho como treinadores de bancada. Pessoas como as que lêem um livro de vinhos e acham que têm um mestrado na área. Creio que muitas vezes nem é cozinha, é mais show-off.
É fácil ser cozinheiro?
Não, é uma vida terrível. São muitas horas em ambientes adversos. É uma profissão de um stresse elevadíssimo. Chefiar um restaurante implica uma máquina muito bem oleada para funcionar. Falha uma peça e aquilo desmonta-se. Recebi muitas pessoas que vieram ter comigo porque queriam ser cozinheiros. Uns vingaram de facto – lembro--me de dois nomes que hoje em dia são bastante falados e que começaram comigo –, mas também tenho o caso oposto, de pessoas iludidas e que passadas duas semanas ou três ou quatro perceberam que estavam na profissão errada. Porque não há horários, trabalhamos quando as outras pessoas estão de folga. No meu caso, mesmo durante o dia, não há pausas. É mesmo uma profissão muito exigente.
Mas não a trocava?
[Risos] Acho que já vou tarde para trocar. Eu comecei relativamente tarde, com 31 anos. Na altura foi um bocado um choque porque não era uma profissão bem vista, bem pelo contrário.
Tem uma comfort food?
Uma coisa de que gosto são os pastéis de massa tenra com arroz de espinafres. Às vezes sabe-me bem um bife. Outras chego a casa às 22h30 ou 23h, não jantei, quase não almocei, e faço umas tostas com mozarela e tomate. É aquilo que me sabe bem nessa altura, com um copo de vinho para relaxar.
Há algo que lhe tire a vontade de cozinhar?
Não me lembro de nada [risos]. Para mim a cozinha sempre foi uma terapia de relaxamento. Em casa bebo um copo de vinho e ponho um jazz a tocar, por exemplo. Numa cozinha profissional não gosto de música, porque já há barulho que chegue e a comunicação passa por falarmos.
Se eu lhe desse cenoura, tomate, pimentos, ervas aromáticas e um naco de carne de vaca, o que fazia?
Um guisado ou um estufado. Por exemplo, gosto muito de trabalhar chambão, que é uma peça menor, mas que quando cozinhada lentamente – duas, três horas, ou em baixa temperatura, doze horas – e com as cenouras e os pimentos, fazia-se um guisado bem simpático.