Há cinco anos que a população da aldeia remota vive ensombrada por uma maleita misteriosa que põe as pessoas a dormir de súbito, durante vários dias. Enquanto cientistas e médicos tentam apurar as causas, a autarquia está a tentar realojar os habitantes, mas muitos recusam-se a abandonar o seu lar
Era um dia como os outros. Marina Felk levantou-se às primeiras horas da manhã para ordenhar as vacas. Depois disso nada. Durante vários dias de internamento num hospital de Astana, capital do Cazaquistão, a pastora de 50 anos foi (quase) acordada algumas vezes pela urgência de repetir a rotina, preocupada com o estado da sua manada. Mas nem disso se recorda. Foram as enfermeiras que lho contaram. “Bem-vinda de volta, princesa adormecida, finalmente acordou.”
Marina sempre viveu em Kalachi, uma aldeia a 230 quilómetros da fronteira russa. Alexey Gom, de 30 anos, não. Mas durante uma viagem recente à localidade sofreu do mesmo mal. “Vim com a minha mulher visitar a mãe dela. Na primeira manhã acordei para terminar um trabalho, liguei o portátil, abri o documento que precisava de ler e foi isso”, contou ao “The Siberian Times”. A última sensação de que se recorda é de ter sido desligado “como um computador, como se alguém tivesse carregado no meu botão on/off”. Acordou no hospital dois dias depois. “O médico não detectou nada de errado. Dormi mais de 30 horas seguidas. Em toda a minha vida nunca me tinha acontecido isto, nem sequer a alguém da minha família.” Mas em cinco anos já aconteceu a pelo menos 152 pessoas na aldeia longínqua do Norte do Cazaquistão.
A frequência com que o surto do sono profundo ataca tem sido tal que muitos habitantes já têm sacos prontos à entrada de casa para o caso de terem de ser transportados para o hospital após mais um sono súbito. A epidemia já afectou cerca de um quarto dos 600 habitantes de Kalachi e está, até hoje, envolta em mistério. Desde os primeiros casos, em 2010, médicos, cientistas e políticos estão a desdobrar-se em pedidos e análises, estudos e investigações. Em Janeiro passado, um porta-voz do governo de Nursultan Nazarbayev garantiu que a aldeia está “no radar pessoal” do presidente. Pouco depois o primeiro-ministro cazaque, Karim Masimov, criava oficialmente uma comissão para coordenar a investigação, já em marcha há dois anos. Até ao final de 2014, mais de 20 mil testes clínicos e de laboratório foram conduzidos na demanda de descobrir o que está por trás do surto inadvertido de sono, que este mês fez mais seis vítimas. Amostras de ar, solo, água, comida, de animais e materiais de construção foram recolhidas e analisadas sem resultados conclusivos. O mesmo se passou com amostras de sangue, pele e urina dos que já foram afectados pelo sono que chega sem aviso nem autorização.
As pessoas adormecem subitamente, nas situações mais inóspitas, e assim ficam, em sono profundo, entre dois e seis dias seguidos. Viktor Kazachenko já passou pelo pânico três vezes, a primeira a 28 de Agosto. Pegou na mota para ir tratar de assuntos pessoais à aldeia vizinha e adormeceu ao volante; quase morria. Acordou no hospital a 2 de Setembro. E o pior, diz, não é adormecer sem controlo, mas os efeitos colaterais da misteriosa doença do sono: alucinações, dores de cabeça insuportáveis, subidas da tensão arterial… “Dores de cabeça nem sequer são a melhor forma de definir isto”, explicou Kazachenko à enviada do “The Guardian” há um mês. “Durante seis semanas não sabia o que fazer. Isto afecta estrondosamente a nossa mente. Fica-se à beira do precipício.”
Há uma semana, a autarca de Kalachi, Asel Sadvokasova, garantiu que assim que as várias equipas de cientistas e médicos apresentarem descobertas conclusivas os habitantes serão os primeiros a ser informados. À falta delas, e depois de dois anos de pesquisas sem fim à vista, as pessoas continuam a tentar racionalizar o que lhes está a acontecer. “Achamos que tem a ver com a radiação”, referia Tatyana Shumilina, falando da mina de urânio às portas da aldeia que está abandonada desde a queda da União Soviética. A questão é que não só nenhum dos últimos habitantes dessa aldeia-fantasma sofreu do sono súbito até agora, como os testes científicos aos níveis de radiação no ar e no solo já excluíram a hipótese. Apesar de os sintomas coincidirem com a exposição ao radão – um gás inodoro, incolor e insípido produzido pela desintegração do urânio – e apesar de os níveis de radão estarem invulgarmente acima da média em algumas das habitações de Kalachi, os cientistas e as autoridades dizem que não é essa a explicação. Enquanto a raiz da maleita não é desvendada, “estamos todos com medo de adormecer”, dizia ao jornal britânico Tayana Pavlenko, a quem ainda não saiu a rifa do sono inadvertido. À autarca já saiu e, com o argumento de que “têm de ser tomadas medidas”, tem estado a coordenar-se com as autoridades e empresas locais para realojar todos os habitantes de Kalachi. Cem pessoas já foram embaladas pelo que Sadvokasova chama “realojamento voluntário”, mas 425 continuam na aldeia e muitos recusam-se a abandoná-la. Caso de Kazachenko. “Não vou a lado nenhum. Porque é que haveria de ir? Estou aqui há 40 anos e é aqui que vou morrer.”A mulher, Raisa, está do lado dele. “Estou nesta casa há 20 anos e vivo nesta rua há 60. Para onde é que me querem mandar? E oque é que me espera lá?” A presidente da câmara responde: empregos, casas novas e uma vida melhor. Mas Raisa não se deixa convencer. “Eles dizem que esta doença afecta o cérebro. Que dá dores de cabeça às pessoas. Mas a nossa dor de cabeça agora é a iminência de sermos realojados.”