Helle Thorning-Schmidt. Gucci e política


Foi eleita primeira-ministra da Dinamarca há quatro anos. Ganhou a alcunha de Gucci-Helle pelo guarda-roupa e acessórios sofisticados. Thorning-Schmidt é uma política dura, fria, muito pouco consensual e com um estilo que choca sobretudo a sua área política. Vai a votos este ano num país que está em choque desde sábado Uma mala Gucci pode…


Foi eleita primeira-ministra da Dinamarca há quatro anos. Ganhou a alcunha de Gucci-Helle pelo guarda-roupa e acessórios sofisticados. Thorning-Schmidt é uma política dura, fria, muito pouco consensual e com um estilo que choca sobretudo a sua área política. Vai a votos este ano num país que está em choque desde sábado

Uma mala Gucci pode tornar-se material político? Bom, na verdade há pouca coisa que escape a este jogo; por isso, a resposta é, evidentemente, sim. O que pode surpreender, no caso, é que a questão surja no desenvolvido e habitualmente descomplexado norte da Europa, no núcleo da Escandinávia, onde o estilo (mala, sapatos, roupa) da primeira-ministra dinamarquesa tem colocado questões sobre a sua verdadeira social-democracia. Helle Thorning-Schmidt foi a primeira mulher a chegar à liderança social-democrata, em 2005, e quatro anos depois foi também a primeira a chefiar um governo, meses antes de completar 45 anos. Outra conquista: levou a esquerda de volta ao poder, depois de dez anos de governos de centro-direita em coligação com os conservadores. Tudo isto em cima de uns stilettos, mala (muitas vezes Gucci) pendurada, sofisticadamente vestida e intensamente loira.

Se juntarmos à descrição uma polémica selfie tirada em pleno funeral de Nelson Mandela (sim, é ela mesma a autora) – de cara colada, como uma boa selfie colectiva oblige – a Barack Obama e a David Cameron; se somarmos ainda uma sequência ardilosa de fotografias onde troca sorrisos mais ou menos contidos com o presidente norte-americano, perante o olhar de enfado de Michelle Obama; e se, por fim, polvilharmos tudo com uma boa dose dos habituais preconceitos, o retrato de Gucci-Helle (é a alcunha que circula) parece completo. O episódio selfie obrigou até a uma reacção da própria, no regresso à Dinamarca. “Não foi uma atitude deslocada. Foram tiradas inúmeras fotografias durante o dia e só pensei que podia ser divertido”, disse sem arrependimento ao jornal “Belingske”. “Mostra que, quando nos encontramos, chefes de Estado e de governo, também somos pessoas que se divertem juntas.”

Mas Thorning-Schmidt vai além deste quadro. É conhecida como uma política dura na Dinamarca, fria até. Liderou uma maioria no parlamento, numa coligação que juntou sociais--democratas, socialistas e sociais-liberais, e a que ainda se somava o fundamental apoio parlamentar da extrema-esquerda (Aliança Vermelha-Verde). Todos juntos, somavam 89 lugares no parlamento dinamarquês (Folketing), pelo que a líder social--democrata teve de conseguir mais um apoio nos mandatos destinados a representantes da Gronelândia e das ilhas Faroé.
Há um ano, a coligação sofreu um golpe com a saída dos socialistas, em protesto pela tão criticada venda de 19% do grupo estatal de energia da Dinamarca (Dong Energy) ao banco de investimento norte--americano Goldman Sachs. O sistema político dinamarquês aproxima-se do britânico e permite que, a qualquer momento, possam ser convocadas eleições pelo próprio governo mas, a um ano e nove meses do limite do seu mandato, Helle Thorning--Schmidt descartou essa hipótese, substituiu os seis ministros socialistas que deixaram o governo e resistiu ao abalo. Na altura, o director do think-tank de centro-esquerda Cevea, Kristian Weise, antevia em declarações ao “Financial Times” que a situação podia até “fortalecer o governo”, já que os socialistas tinham “sido sempre o partido difícil” do executivo dinamarquês. A situação política manteve-se, com os socialistas a conservarem o seu apoio ao governo de Helle, apesar de romperem na coligação. Passado um ano, Weise diz ao i que a primeira-ministra mantém hoje, nos estudos de opinião, bons níveis de apreciação de competência.

Mas a popularidade de Thorning-Schmidt fica mesmo por aqui. “Ela nunca foi muito popular. É vista como muito capaz e profissional, mas não é alguém com a capacidade de deslumbrar as pessoas”, diz Kristian Weise. Uma recente sondagem do Instituto Voxmeter mostrou que a popularidade da primeira-ministra subiu de 24,3% para 26,1%, bem acima dos 20% do seu rival directo, Lars Lokke Rasmussen, líder do Partido Liberal (o maior da oposição). Quando Helle venceu as eleições, a imprensa dinamarquesa vincava a sua juventude, a frieza no trato e a distância que mantinha do meio que representava, sobretudo pela forma como se vestia. “Existe alguma controvérsia sobre se ela é uma verdadeira social-democrata ou se o seu estilo de vida é um exemplo de como os sociais-democratas vivem as suas vidas”, acrescenta o presidente do Cevea, que diz que isso é uma “fraqueza” que se destaca ainda mais quando tem de “implementar medidas impopulares”. E lembra que assim que Helle chegou à liderança social--democrata “se levantaram algumas questões sobre se seria um símbolo da social-democracia que as pessoas apoiariam”. Na Dinamarca conta-se que, numa reunião interna do partido, Thorning-Schmidt foi confrontada com o assunto diz-me-o-que-vestes. A resposta terá saído sem rodeios, citada na imprensa britânica: “We can’t all look like shit.”

No início de 2013, a Dinamarca assistia à terceira temporada da conceituada série “Borgen” [se ainda não viu estes episódios da série recentemente exibida em Portugal, este é um parágrafo para passar à frente] e a ex-primeira-ministra dinamarquesa Birgitte Nyborg aparecia apostada no regresso à vida política, ?mais sofisticada do que quando saíra. Surge num estúdio televisivo para uma curta entrevista de apelo aos eleitores do centro-esquerda (os Moderados) quando a sua spin doctor, a ex-jornalista Katrine Fonsmark, lhe retira do pulso um relógio caro, muito mais caro do que o dinamarquês médio conseguiria pagar, mesmo antes de entrar no ar. Helle não se deixou impressionar pela mensagem da ficção e mantém a postura de sempre, independentemente dos reparos.

Aliás, a statsminister da realidade evitou sempre comparações (ainda que sejam muitas as inevitáveis) com a statsminister da série. Em entrevista à BBC há mais de um ano, Thorning-Schmidt admitiu que “’Borgen’ é uma excelente série de televisão, mas é isso mesmo: ficção. Tem muito pouco a ver com a minha realidade ou com a realidade de um político”. Ficção pode ser ficção, pero que las hay, las hay. A começar pela premonição de, um ano antes de Helle ser eleita, a série colocar como primeira--ministra dinamarquesa uma mulher, pela primeira vez. Seguiu-se o dramatismo de toda a negociação para a formação de um governo que terminou num executivo de centro-esquerda. Na série, sim, mas também na realidade de Helle que, tal como Birgitte, está também menos à esquerda do que os seus aliados no executivo.

É casada há 18 anos com Stephen Kinnock. Conheceram-se em Bruges, quando ambos estudavam no College of Europe. Têm duas filhas. O casamento fez de Thorning-Schmidt nora do histórico líder trabalhista britânico, Neil Kinnock, e de Glenys Kinnock (também trabalhista). Tem, portanto, grande proximidade com o meio político do Reino Unido, estudou na Bélgica, trabalhou em Bruxelas (como eurodeputada entre 1999 e 2004). Stephen vive em Davos, dirige o Fórum Económico Mundial e vai ser candidato, pelo Partido Trabalhista, nas eleições deste ano no Reino Unido – um contexto que aproxima mais a primeira-ministra dinamarquesa de uma carreira internacional na política. Kristian Weise nota mesmo que “o seu estilo de vida é mais parecido com o de alguém que vive em Bruxelas, de uma política internacional”. Não foi por acaso que Helle chegou a aparecer colocada na lista de hipóteses para a presidência da Comissão Europeia.

A escalada política teve os seus percalços, sobretudo durante a campanha de 2011, altura em que surgiu um boato propagado pelos tablóides dinamarqueses e britânicos sobre a suposta homossexualidade de Stephen Kinnock. A então candidata a primeira--ministra veio defender o marido, em declarações ao tablóide dinamarquês “Ekstra Bladet”: “Só posso dizer que não é verdade. É muito desagradável que os jornais escrevam tais rumores e lamento que a generalidade desses rumores sejam sobre políticos.” Mas, antes disso, Stephen já tinha estado envolvido num escândalo fiscal, em 2010, com suspeitas de fuga ao fisco. A residir a maior parte do ano fora da Dinamarca, Kinnock considerava não estar sujeito aos impostos do país. Mas o casal acabou por vir a público assumir que a fuga tinha, afinal, sido um “erro grande e desleixado”, e as acusações de que Stephen era alvo caíram.

A exposição familiar faz-se sobretudo pelo lado Kinnock (a que Helle chama “a minha família britânica”), onde a multiplicação de figuras políticas torna tudo apetecível aos olhos do público. Fora isso, a primeira-ministra dinamarquesa mantém reserva na sua vida. As duas filhas estão fora dos holofotes mas, ainda assim, a social-democrata defensora da escola pública não escapou às críticas quando se soube que uma delas frequentava o ensino privado (é verdade, mais uma semelhança com um episódio de “Borgen” onde Birgitte criava incentivos ao uso do sistema público de saúde, mas internava a filha numa instituição privada).

A afirmação política dos sociais-democratas na Dinamarca fez-se muito colada à crise económica que se abateu sobre a Europa. Os últimos actos eleitorais tinham sido “dominados por temas como a integração e a imigração”, explica Kristian Weise, que é também um ex-dirigente social-democrata, acrescentando que “a crise económica e o desemprego tomaram a agenda”, o que foi aproveitado pela esquerda, que apoiou na condução das finanças públicas e das apostas económicas grande parte das críticas ao Venstre (o Partido Liberal, que ocupa o espaço do centro-direita). Helle apostou sobretudo na defesa do Estado social e na recuperação económica, defendendo mesmo o aumento de impostos sobre a riqueza, e também num discurso mais brando relativamente à imigração.

A divisão de forças no Folketing é tão brutal que o resultado das próximas eleições (que têm de ser marcadas até 15 de Setembro) é imprevisível. Nas sondagens de Janeiro do Instituto Voxmeter, o partido de Rasmussen está à frente dos sociais-democratas, mas com pouco mais de um ponto percentual de vantagem. Mas isto foi tudo antes do atentado terrorista de há uma semana, cujo impacto político é ainda difícil de determinar. De qualquer forma, será sempre nas restantes sete forças partidárias que se jogará a formação do próximo governo. Na ficção, as manobras políticas no Christianborg (palácio que alberga os poderes executivo, legislativo e judicial da Dinamarca) podem não ter regresso, mas a realidade está aí para durar.