Causaram polémica as declarações do Presidente da República que afirmou: “O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal…, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa”. Também o Primeiro-Ministro afirmou sobre a sua ida ao Qatar: “Não vamos apoiar o regime ou a violação dos direitos humanos mas a selecção nacional”. E assim teremos as principais figuras do Estado Português no Qatar, em apoio à nossa selecção de futebol, num país em que os direitos humanos são sistematicamente violados.
Qualquer governante que pretenda dissociar a realização do campeonato do mundo de futebol do país que está a organizar o mesmo comete um gravíssimo erro. Basta recordar o Mundial de Futebol de 1978, realizado na Argentina em plena ditadura militar, tendo o evento sido plenamente aproveitado pela Junta Militar, liderada por Jorge Rafael Videla, para fazer propaganda do seu regime sinistro, com o objectivo de transmitir ao mundo a falsa imagem de um país feliz e em paz.
Foi assim que nesse ano diversas personalidades internacionais foram convidadas a visitar o país e a apreciar a “paz argentina” que, no entanto, era completamente falsa. Na verdade, durante o Mundial, a comunicação social foi submetida a uma intensa censura, sendo que as televisões eram obrigadas a só passar programas do Governo ou os jogos de futebol. Os opositores políticos foram objecto de uma perseguição feroz, com detenções arbitrárias, assassinatos e desaparecimentos, o que foi facilitado pelo facto de a opinião pública estar concentrada nos jogos do Mundial. Na verdade, a apenas um quilómetro do Estádio Monumental de Buenos Aires ficava a sinistra ESMA, a Escola Mecânica da Armada, um centro clandestino de detenção onde os opositores políticos eram interrogados e torturados, sendo a grande maioria dos mesmos assassinados, e os seus restos mortais escondidos. Surgiu mesmo uma organização, as Mães da Praça de Maio, que se manifestava publicamente para saber o paradeiro dos seus filhos desaparecidos.
Tudo isto foi, no entanto, escondido em virtude do clima de euforia criado pelo Mundial. A Junta Militar, aproveitando o sentimento patriótico causado pelas vitórias da selecção argentina, que aliás acabaria por ganhar a taça, chegou ao ponto de qualificar como campanha anti-argentina as sistemáticas denúncias de violação de direitos humanos ocorridas no país. Nessa altura surgiu mesmo um slogan que respondia de forma irónica a essas denúncias: “Los argentinos somos derechos y humanos”. Como se pode ver, tinham manifestamente uma visão absurda do que é o direito e do que é a humanidade.
A experiência do Mundial de 1978 na Argentina deveria ter servido de lição para a FIFA não atribuir o Mundial de 2022 ao Qatar, onde infelizmente a situação de direitos humanos já era muito grave e se agravou com a atribuição do Mundial. Houve trabalhadores migrantes obrigados a trabalhar em condições extremas de calor e duração do trabalho, muitos dos quais morreram. No Qatar os direitos das mulheres não são respeitados e as pessoas LGBT são sujeitas a detenções arbitrárias e a terapias de conversão. Da mesma forma a liberdade de imprensa não é respeitada no país, chegando a haver detenções de jornalistas por realizarem reportagens.
É manifesto que nunca se deveria realizar um Mundial de Futebol num país destes, com um regime totalmente contrário aos princípios desportivos. Por isso não é aceitável que os mais altos representantes do Estado Português aceitem participar neste evento. Uma coisa são as relações entre Estados, que podem justificar deslocações bilaterais, caso haja assuntos de interesse comum a tratar. Outra coisa é a participação activa de altos responsáveis do Estado Português num evento que vai obviamente ser utilizado para a propaganda de um regime que não respeita os direitos humanos.
O que os responsáveis por regimes violadores dos direitos humanos desejam é precisamente que nos esqueçamos dos direitos humanos. E por isso é que a nossa mensagem tem que ser precisamente a contrária: a defesa dos direitos humanos nunca pode ser esquecida.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção
das regras do acordo ortográfico de 1990