Um Natal parcial


Depois das limitações da presença física das pessoas, o Natal de 2022 é marcado pelas dificuldades financeiras de muitos devido à escalada dos preços das matérias-primas, dos bens e serviços essenciais que pontuam o quotidiano dos portugueses.


Vivemos tempos intensos, por vezes, superficiais, incertos e com abrangências de perspetivas que poderiam resultar na consagração plena de momentos cheios, noites inteiras de afetos e de tudo o que não está ao nosso alcance em boa parte do ano, muito além das tradições e dos sentidos da efeméride católica. Mas, não. Há muito que o Natal deixou de ser um tempo pleno, porque tem estado desfocado, condicionado ou sem a soma de todas as partes. Para os crentes, tem toda a carga simbólica do nascimento de Cristo e de tradições que antecederam a comercialização dos afetos e dos momentos de partilha. Para os não crentes, o Natal pode ser a euforia consumista, uma época como tantas outras ou um momento de outras convergências familiares, com os amigos ou com as circunstâncias de vidas cada vez menos convencionais, mas tende a ser palco de um esforço acrescido de positividade.

Depois das limitações da presença física das pessoas, o Natal de 2022 é marcado pelas dificuldades financeiras de muitos devido à escalada dos preços das matérias-primas, dos bens e serviços essenciais que pontuam o quotidiano dos portugueses. E os excessos de aproveitamento das circunstâncias continuam a prevalecer sem mácula. Como dizia um amigo, o governo não taxa as rendas excessivas das grandes empresas energéticas, dos combustíveis ou da distribuição porque um dos maiores beneficiários da conjuntura é o próprio Estado pelo que arrecada de receita fiscal de forma diferenciada e indiferenciada no consumo.

O Natal pleno, sem constrangimentos alheios, ainda não vai ser desta, apesar do regresso ao país dos filhos que estudam ou trabalham lá fora, do esforço de convergência das famílias e do espírito de soma que se sobrepõe à subtração de muitas das dinâmicas normais da sociedade portuguesa.

Por mim, sem crenças no simbólico, constato a crescente falência da resposta ao real, às necessidades e ao que verdadeiramente importa, com total impotência perante as disfunções de serviços públicos essenciais, desfocados das pessoas, dos seus estados de alma, das suas maleitas, do que deram ao país e do direito que têm a ser considerados com mínimos de dignidade humana.

Como é possível, que, sem recursos financeiros para alternativas, sem seguro e sem médico de família, com uma doença respiratória crónica, não exista capacidade de gerar tratamento para uma neoplasia do cólon ascendente para uma pessoa como tantas outras com 77 anos, com dificuldades em se mover no enleado de obstáculos em que se constituiu o acesso à saúde? Como é possível com um problema de saúde grave identificado, os meios complementares de diagnóstico no público estarem sujeitos a ausência de datas previsíveis ou serem remetidos para as calendas? Como é possível não haver previsibilidade mínima para tantas necessidades e, ainda assim, a governação se permitir destruir o que funcionava bem, na ótica do utente, como acontecia com a PPP do Hospital de Vila Franca de Xira? Como é possível, destapar ainda mais a resposta, sem cuidar de ter mais manta como aconteceu com o pecado inicial, ideológico e irresponsável da redução do horário de trabalho sem compensar os serviços com mais admissões de recursos humanos e melhor organização? Como se pode sistematicamente ignorar os sinais e as tendências, que apontam à rutura da capacidade de resposta de diversos serviços públicos, pela reforma dos profissionais, pela ausência de condições e fuga das gerações mais qualificadas, em demanda de previsibilidade, organização, reconhecimento e remuneração.

Chego ao Natal sem fantasmas de natais passados, com a expectativa de uma ausência relevante por hospitalização tardia, que poderia ter sido evitada se houvesse resposta ao longo de três meses, depois do diagnóstico de cancro. Chego devastado com o país que temos e com o que legaremos aos existentes mais jovens e aos vindouros, se não atalharmos caminho.

Em rota para a festividade, chego com aquela mágoa impotente de ter a sensação de não ter feito tudo e de o país não ter feito o que devia para evitar que um como tantos Natais fossem parciais quando poderiam ser completos.

Não é fácil sentir que, com mais de duas décadas de participação cívica e política, muito do que se fez falhou, porque persistem ausências graves de respostas humanizadas, eficazes e sustentadas em pilares vitais do conforto e qualidade de vida.

Que falhe para mim, como dizia alguém é da vida, que falhe para os outros, para os que mais queremos é um estado de alma insuperável. Finalmente, mais de três meses depois pode haver a resposta gerada, é ter esperança e superar o persistente pedido de desculpas mental que me interpelou ao longo do tempo perante a incapacidade em gerar soluções. Quantas vezes, em função dos acontecimentos, do desconforto e do sofrimento fui impelido a um “desculpa mãe”.

Deixem-se de conversa, foquem-se nas pessoas. O resto é espuma e as vagas que resultam da demografia e da pandemia estão aí para nos fustigar, em impotência, se não se atalhar caminho. E não nos queremos habituar a não conseguir responder aos desafios do respeito pela dignidade humana e por padrões mínimos de qualidade de vida, sujeitos a espaços ou migalhas dos poderes.

Parcial ou completo, com muito ou pouco, tenham um Feliz Natal.

NOTAS FINAIS

VÃO-SE CATAR. O ridículo mata e mói a saúde democrática. A Assembleia da República com o Presidente a liderar os trabalhos, depois de ter estado no Catar a ver a bola, aprovou uma resolução a condenar o Mundial, depois da eliminação de Portugal, da presença das três principais figuras do Estado e no limiar do final da prova.

 

HABITUASSOM. A arrogância mata e mói a saúde democrática. Num tempo de dificuldades e incertezas, em que alguns se contentam com os paliativos vigentes, os jogos florais presentes na entrevista do primeiro-ministro à revista Visão são uma prepotência face às realidades e às oportunidades existentes. Menos verve e mais concretização.

 

DESDENHAR. Desdenhámos quando lá estávamos, desdenhámos quando saímos. Por muito que custe, o património das conquistas é um valor em si. Fomos campeões da Europa com Fernando Santos, mérito ao selecionador. Cristiano Ronaldo é um desportista sublime, mérito pelos resultados conquistados a pulso. A Argentina é campeã do mundo, com mérito, com um menino Enzo Fernandez que se projetou no Benfica e um Otamendi que superou os preconceitos com a sua solidez de saber feito. As maiorias absolutas têm mérito, é preciso saber usá-las a favor do interesse geral. É sempre preciso não ficar sentado em cima dos êxitos.

 

VERBORREIAS E SILÊNCIOS PRESIDENCIAIS. Enquanto temos um Presidente da República que fala demais, até anuncia a saída do selecionador nacional, temos um ensurdecedor silêncio de uma Federação Portuguesa de Futebol que permitiu um deslaço comunicacional como já não havia memória desde o México.

 

Escreve às quarta-feiras

Um Natal parcial


Depois das limitações da presença física das pessoas, o Natal de 2022 é marcado pelas dificuldades financeiras de muitos devido à escalada dos preços das matérias-primas, dos bens e serviços essenciais que pontuam o quotidiano dos portugueses.


Vivemos tempos intensos, por vezes, superficiais, incertos e com abrangências de perspetivas que poderiam resultar na consagração plena de momentos cheios, noites inteiras de afetos e de tudo o que não está ao nosso alcance em boa parte do ano, muito além das tradições e dos sentidos da efeméride católica. Mas, não. Há muito que o Natal deixou de ser um tempo pleno, porque tem estado desfocado, condicionado ou sem a soma de todas as partes. Para os crentes, tem toda a carga simbólica do nascimento de Cristo e de tradições que antecederam a comercialização dos afetos e dos momentos de partilha. Para os não crentes, o Natal pode ser a euforia consumista, uma época como tantas outras ou um momento de outras convergências familiares, com os amigos ou com as circunstâncias de vidas cada vez menos convencionais, mas tende a ser palco de um esforço acrescido de positividade.

Depois das limitações da presença física das pessoas, o Natal de 2022 é marcado pelas dificuldades financeiras de muitos devido à escalada dos preços das matérias-primas, dos bens e serviços essenciais que pontuam o quotidiano dos portugueses. E os excessos de aproveitamento das circunstâncias continuam a prevalecer sem mácula. Como dizia um amigo, o governo não taxa as rendas excessivas das grandes empresas energéticas, dos combustíveis ou da distribuição porque um dos maiores beneficiários da conjuntura é o próprio Estado pelo que arrecada de receita fiscal de forma diferenciada e indiferenciada no consumo.

O Natal pleno, sem constrangimentos alheios, ainda não vai ser desta, apesar do regresso ao país dos filhos que estudam ou trabalham lá fora, do esforço de convergência das famílias e do espírito de soma que se sobrepõe à subtração de muitas das dinâmicas normais da sociedade portuguesa.

Por mim, sem crenças no simbólico, constato a crescente falência da resposta ao real, às necessidades e ao que verdadeiramente importa, com total impotência perante as disfunções de serviços públicos essenciais, desfocados das pessoas, dos seus estados de alma, das suas maleitas, do que deram ao país e do direito que têm a ser considerados com mínimos de dignidade humana.

Como é possível, que, sem recursos financeiros para alternativas, sem seguro e sem médico de família, com uma doença respiratória crónica, não exista capacidade de gerar tratamento para uma neoplasia do cólon ascendente para uma pessoa como tantas outras com 77 anos, com dificuldades em se mover no enleado de obstáculos em que se constituiu o acesso à saúde? Como é possível com um problema de saúde grave identificado, os meios complementares de diagnóstico no público estarem sujeitos a ausência de datas previsíveis ou serem remetidos para as calendas? Como é possível não haver previsibilidade mínima para tantas necessidades e, ainda assim, a governação se permitir destruir o que funcionava bem, na ótica do utente, como acontecia com a PPP do Hospital de Vila Franca de Xira? Como é possível, destapar ainda mais a resposta, sem cuidar de ter mais manta como aconteceu com o pecado inicial, ideológico e irresponsável da redução do horário de trabalho sem compensar os serviços com mais admissões de recursos humanos e melhor organização? Como se pode sistematicamente ignorar os sinais e as tendências, que apontam à rutura da capacidade de resposta de diversos serviços públicos, pela reforma dos profissionais, pela ausência de condições e fuga das gerações mais qualificadas, em demanda de previsibilidade, organização, reconhecimento e remuneração.

Chego ao Natal sem fantasmas de natais passados, com a expectativa de uma ausência relevante por hospitalização tardia, que poderia ter sido evitada se houvesse resposta ao longo de três meses, depois do diagnóstico de cancro. Chego devastado com o país que temos e com o que legaremos aos existentes mais jovens e aos vindouros, se não atalharmos caminho.

Em rota para a festividade, chego com aquela mágoa impotente de ter a sensação de não ter feito tudo e de o país não ter feito o que devia para evitar que um como tantos Natais fossem parciais quando poderiam ser completos.

Não é fácil sentir que, com mais de duas décadas de participação cívica e política, muito do que se fez falhou, porque persistem ausências graves de respostas humanizadas, eficazes e sustentadas em pilares vitais do conforto e qualidade de vida.

Que falhe para mim, como dizia alguém é da vida, que falhe para os outros, para os que mais queremos é um estado de alma insuperável. Finalmente, mais de três meses depois pode haver a resposta gerada, é ter esperança e superar o persistente pedido de desculpas mental que me interpelou ao longo do tempo perante a incapacidade em gerar soluções. Quantas vezes, em função dos acontecimentos, do desconforto e do sofrimento fui impelido a um “desculpa mãe”.

Deixem-se de conversa, foquem-se nas pessoas. O resto é espuma e as vagas que resultam da demografia e da pandemia estão aí para nos fustigar, em impotência, se não se atalhar caminho. E não nos queremos habituar a não conseguir responder aos desafios do respeito pela dignidade humana e por padrões mínimos de qualidade de vida, sujeitos a espaços ou migalhas dos poderes.

Parcial ou completo, com muito ou pouco, tenham um Feliz Natal.

NOTAS FINAIS

VÃO-SE CATAR. O ridículo mata e mói a saúde democrática. A Assembleia da República com o Presidente a liderar os trabalhos, depois de ter estado no Catar a ver a bola, aprovou uma resolução a condenar o Mundial, depois da eliminação de Portugal, da presença das três principais figuras do Estado e no limiar do final da prova.

 

HABITUASSOM. A arrogância mata e mói a saúde democrática. Num tempo de dificuldades e incertezas, em que alguns se contentam com os paliativos vigentes, os jogos florais presentes na entrevista do primeiro-ministro à revista Visão são uma prepotência face às realidades e às oportunidades existentes. Menos verve e mais concretização.

 

DESDENHAR. Desdenhámos quando lá estávamos, desdenhámos quando saímos. Por muito que custe, o património das conquistas é um valor em si. Fomos campeões da Europa com Fernando Santos, mérito ao selecionador. Cristiano Ronaldo é um desportista sublime, mérito pelos resultados conquistados a pulso. A Argentina é campeã do mundo, com mérito, com um menino Enzo Fernandez que se projetou no Benfica e um Otamendi que superou os preconceitos com a sua solidez de saber feito. As maiorias absolutas têm mérito, é preciso saber usá-las a favor do interesse geral. É sempre preciso não ficar sentado em cima dos êxitos.

 

VERBORREIAS E SILÊNCIOS PRESIDENCIAIS. Enquanto temos um Presidente da República que fala demais, até anuncia a saída do selecionador nacional, temos um ensurdecedor silêncio de uma Federação Portuguesa de Futebol que permitiu um deslaço comunicacional como já não havia memória desde o México.

 

Escreve às quarta-feiras