Quando pensamos na função de um sistema de ensino tendemos a considerar apenas a transmissão do conhecimento. É conhecida a caricatura de uma aula do Ensino Superior como um local onde os conceitos passam da apresentação do professor para os apontamentos de um aluno sem haver necessidade da intervenção do cérebro de nenhum deles. Felizmente, esta caricatura vai ficando afastada da realidade com o crescente foco no desenvolvimento das competências dos estudantes. Na área da engenharia, temos muitas evidências do reconhecimento da capacidade dos diplomados pelo nosso Ensino Superior, quando essas competências são destacadas por empresas que recrutam internacionalmente.
Já referi em crónicas anteriores um outro papel do ensino que é tão ou mais importante do que a transmissão do conhecimento e a criação de competências: um ensino eficaz deve também mudar as mentalidades dos estudantes. Uma mentalidade é um conjunto de crenças, assunções e conhecimentos que usamos para processar informação, tomar decisões e que, de uma forma geral, usamos para guiar o nosso comportamento. Na minha opinião, o maior impacto da educação é a transformação da mentalidade fixa numa mentalidade de crescimento. Muitas pessoas, principalmente as que nascem em ambientes desfavorecidos, acreditam que as suas capacidades e nível de inteligência são inatas. Estas pessoas passam a ter como objetivo mostrar-se como sendo espertas, rejeitando situações onde essa ideia é ameaçada como, por exemplo na escola. Pelo contrário, quem tem uma mentalidade de crescimento, acredita que pode desenvolver os seus talentos com trabalho, boas estratégias e colaborando com outros. Para estes indivíduos a ignorância ou a falta de uma competência é um estado temporário que não têm receio de mostrar.
A escola tem a oportunidade de mudar outras mentalidades. A mentalidade empreendedora está ligada à mentalidade de crescimento. Quem tem esta mentalidade tende a tomar o controlo da sua vida, a ter objetivos convincentes para o futuro e uma visão otimista dos eventos adversos, vendo os problemas como oportunidades. Na minha crónica Uma experiência em África (2020-12-08) referi um projeto de investigação do Banco Mundial que mediu um maior impacto na formação em empreendedorismo do que na formação em gestão de microempresários do Togo.
A recente leitura do livro Build, de Tony Fadell, chamou-me a atenção para uma outra necessidade de mudança de mentalidade que a escola e, em particular, o Ensino Superior deve promover. O livro é um misto de biografia, história de tecnologia e de aconselhamento para jovens profissionais, e para potenciais e atuais empreendedores. A biografia confunde-se com a história da tecnologia pois Tony Fadell entrou 1991 na General Magic onde trabalhou no comunicador pessoal Sony Magic Link, em 1997, criou o Philips Velo, em 2001, levou a sua equipa para a Apple para criar o primeiro iPod, em 2007, liderou a divisão que produziu o iPhone e em 2010 criou a Nest onde desenvolveu o conhecido termostato inteligente tendo vendido a empresa à Google em 2014. Desde então tem sido mentor e investidor em startups. Para além de contar as peripécias dos desenvolvimentos destes produtos, o autor aproveitou o livro para passar a escrito muitos dos conselhos que tem transmitido na sua atividade de mentor.
Baseado na sua experiência pessoal, Tony Fadell recomenda aos jovens engenheiros que iniciem a sua vida profissional numa empresa que trabalhe num produto inovador, que resolva um problema real, com um mercado potencialmente grande e com uma liderança capaz de adaptar o produto às necessidades dos clientes, onde possam aprender os desafios de desenvolver e comercializar um produto. Não acha que, por exemplo, o trabalho numa consultora de gestão seja tão valioso pois, apesar de frequentemente mais bem remunerado e de potenciar contactos com grandes empresas, dá uma visão muito limitada da empresa que é cliente do projeto de consultoria.
O que Tony Fadell recomenda, sem o dizer desta forma, é que o jovem engenheiro deve aproveitar o início da sua carreira para desenvolver uma mentalidade de produto que é muito diferente da mentalidade de projeto, habitual na formação universitária. Esta mentalidade baseia-se na ideia de que se deve definir previamente o resultado desejado e planear detalhadamente a sequência de atividades necessárias para o conseguir. Um projeto tem um caráter temporário, um resultado pretendido, uma calendarização e um orçamento. Definida a conclusão, há pouca necessidade de mais pensamento estratégico: o único objetivo é o de reduzir o tempo e o custo, mantendo o cumprimento do critério de aceitação do resultado final.
Pelo contrário, a mentalidade de produto baseia-se na ideia em que o mais importante são as pessoas que irão beneficiar do que se está a desenvolver. Para um produto ter realmente sucesso precisa de satisfazer um desejo ou uma necessidade e de ser adotado pelo cliente. A dificuldade é que não só é difícil identificar o que os clientes procuram, como essas necessidades evoluem com o tempo. Isto impõe iterações incrementais de ciclos de planeamento, execução e avaliação e o contacto permanente com os potenciais clientes.
A mentalidade de produto pode também ser promovida no âmbito da formação do engenheiro, desafiando os estudantes a encontrar soluções para problemas mal definidos, mas com beneficiários bem identificados. Dessa forma, o papel de avaliador da solução passa para quem tem o problema, ficando o professor responsável por avaliar a forma como o aluno usou os seus conhecimentos na procura da solução. É possível, tal como no caso do Magic Link, que o resultado não seja validado pelos clientes, mas o estudante ficará sempre com uma experiência valiosa, confirmando a frase de que “aos vinte anos o único fracasso é a inação, tudo o resto são tentativas e erros”.
Professor do Instituto Superior Técnico