LUSAIL – Nunca viajo sem livros. Fazem-me falta nos aviões, nos comboios, à noite nos quartos, carrego (mais ou menos) alegremente com uns quilos largos às costas, desta vez, a contar com um mês, trouxe uns doze títulos, chegarei ao fim de todos pelas minhas contas. Mas, a primeira vez que ouvi falar de Abou Kassem Ismael senti-me um papalvo. É que o bom Ismael, Grão-Vizir da Pérsia no século X, não ia para lado nenhum sem levar toda a sua biblioteca atrás e, apesar de considerar a minha biblioteca bastante completa, dentro do género, não posso compará-la com a do gajo: afinal ele tinha qualquer coisa como 117 mil volumes, para mais, não para menos.
Ainda há uns meses, eu e o meu mano Bernardo Trindade, fomos de abalada até Águeda para deixar lá, ainda por arrumar, uns 800 quilos de livros mas, em Alcácer do Sal, não terei mais de 3500 – não quilos mas livros. Como não tenho camelos, preciso de me desenrascar no transporte. Ismael era um indivíduo estiloso. Tinha uma frota de 400 camelos para andar de um lado para o outro com os seus cartapácios. Coca—bichinhos, fazia questão que a cáfila caminhasse por ordem alfabética de forma a facilitar qualquer consulta mais urgente. Mas a sua exigência não se ficava por aí. Todos os seus cameleiros eram ou haviam sido professores, tinham uma cultura acima da média e estavam sempre disponíveis para lhe porem na frente as páginas das quais quisesse sacar uma citação para exibir sabedoria perante os convidados.
Como era um viajante compulsivo, andou por toda a Pérsia e por toda a Arábia com aquela fileira de ungulados a reboque e, dizem aqueles que acreditam que Ismael existiu mesmo e não se limitou a ser um produto da imaginação da malta do seu tempo, a fileira estendia-se por cerca de quilómetro e meio. Pela mesma altura, à beira Bósforo, o poeta Nazim Hikmet recitava de supetão: “Ainda me restam coisas que fazer/Juntei-me às estrelas/Mas não consegui contá-las”. Também era um sábio como Kassem. Com a certeza de que pode ser romântico contar estrelas mas é bem mais fácil contar camelos. Que mesmo carregados de livros não chegam a doutores. Parece que são de vistas curtas.