A utilidade útil dos idiotas


Quase 50 anos depois da consagração democrática, a utilidade útil dos idiotas deveria rarear e, no entanto, ela move-se e prolifera. Temos o que merecemos, com as escolhas que são feitas e o nível de exigência cívica e política que existe. É poucochinho, mas o Povo gosta.


A caminho do meio século de democracia persiste na sociedade portuguesa duas perspetivas de encarar as realidades, entre a dispersão de querer ir a todas, de agradar a todos e de consagrar alegados avanços civilizacionais para nichos ou o foco no essencial que perfaz a democratização de padrões essenciais de qualidade de vida da população e a geração de oportunidades de desenvolvimento individual e comunitário. Infelizmente, quando tantos estão alheados e afastados do acesso a bens e serviços fundamentais para o conforto e qualidade de vida, há sempre quem assuma o papel de idiota útil na desfocagem do permanente desafio cívico, político e social de construir respostas para as pessoas e para os territórios.

Podemos não gerar oportunidades de realização individual e profissional em Portugal para os jovens, depois de lhes incutir as qualificações disponíveis.

Podemos rebaixar a classe média até ao limiar da indigência, enquanto persiste a pobreza, a exclusão social e os fenómenos de disrupção do equilíbrio entre direitos e deveres.

Podemos não disponibilizar aos velhos a atenção, o conforto e a qualidade de vida merecidos pelo caminho percorrido ao longo dos anos, em compromisso com a família e com o país.

Podemos tudo isto e muito mais, na nobre arte de entreter o espaço público e mediático com o simbólico, com a polémica inconsequente e com tantas outras artes dos protagonistas políticos vigentes, entre o insensível e o insensato, sem rasgo nem visão, mas há sempre uma alma ou um conjunto de almas, mais ou menos gémeas, pelo menos na configuração e na orientação para a ação, dispostas a tirar da cartola uma revisão constitucional, um referendo, uma incoerência ou mais uma circunstância geradora de oportunidades para os populismos.

Ele é a inscrição na Constituição dos direitos dos animais, quando muitas consagrações dos humanos estão pela hora da morte, no acesso aos bens alimentares, à saúde, a habitação e a algum nível de previsibilidade para os seus quotidianos, além do dia em curso.

Ele é o referendo da eutanásia como se a insuficiência de respostas em tantas áreas da vida das pessoas, das comunidades e dos territórios não tivessem gerado diversas pequenas falências vitais, no diagnóstico de doenças, no tratamento e no acesso a bens fundamentais para uma vida saudável. Para quê um referendo quando se trata sobretudo de uma questão de consciência e de direito individual que, uma vez mais, pode ser sempre concretizado em função da existência de recursos financeiros noutro país onde a eutanásia é letra de lei. Porque se insistem em generalizadas manobras de dilação, da concretização de direitos básicos à consagração de margens de liberdade individual, quando o Estado e a sociedade se demitem de fazer tanta coisa.

Para quem invocou no passado, os preconceitos ideológicos para fustigar a solução governativa que vigorou à esquerda, não deixa de ser caricato que, a um espirro dogmático de Cavaco Silva e dos setores conservadores, a liderança do PSD acorra com a dilação que tinha mais à mão, depois de ser parte do processo parlamentar e presidencial arrastado.

É indubitável que existem outras prioridades para a generalidade da população, que o estado na Nação em áreas vitais é miserável, porque o foco das decisões de governação foi o popular, o agrado abrangente e a resposta aos nichos eleitorais partidários da anterior maioria de governo.

É confrangedor assistir ao bloqueio de uma maioria absoluta incapaz de afirmar uma visão para o país, concretizar as disponibilidades financeiras existentes, responder aos problemas estruturais e às perceções lesivas do compromisso social com a democracia.

O referendo de Montenegro é mais uma cortina para a desfocagem do essencial, pode mobilizar alguns setores da sociedade portuguesa, não contribui para resolver nada do essencial, do que vem de trás, do que emergiu das crises recentes ou vigentes e do que o país precisa. É folga para o enleio da governação, entrem os setores parlamentares das agendas alternativas e acrescenta descontentamento popular face às dificuldades do dia-a-dia imputadas à guerra, à pandemia e à inflação.

O referendo à eutanásia é a última das inutilidades úteis da política portuguesa, repristina o registo de Rui Rio na liderança do PSD, é bom para António Costa, mau para o país, que prossegue entretido com o que não interessa entre a bola no Qatar, os rabos de bacalhau, que os lombos estão caros, e a persistência de problemas estruturais graves de organização e resposta aos direitos consagrados na Constituição de 1976.

Quase 50 anos depois da consagração democrática, a utilidade útil dos idiotas deveria rarear e, no entanto, ela move-se e prolifera.

Temos o que merecemos, com as escolhas que são feitas e o nível de exigência cívica e política que existe. É poucochinho, mas o Povo gosta.

 

NOTAS FINAIS

OS SINAIS SIMBÓLICOS DO MERCADO. A força com que os planos e seguros de saúde estão presentes no universo publicitário dos presentes de Natal é sintomático das fragilidades existentes no Serviço Nacional de Saúde. Despejar mais dinheiro não é só a solução, com os problemas estruturais, o perfil demográfico da população e as decisões políticas dos últimos anos. Reduzir o horário de trabalho para agradar aos parceiros de governação, significava querer fazer as mesmas omeletes com menos ovos disponíveis. O país dispensa lágrimas dos crocodilos que tiveram outras opções no passado, precisa de convergências e ação no presente, para que não mude quando mudam os governos e nunca falhe às pessoas e aos territórios.

 

FEDERAÇÃO DE FUTEBOL SEM REI NEM ROQUE. São muitos os sinais de deslaço e desmando na Federação Portuguesa de Futebol, depois da criatividade fiscal, falta seriedade, senso e rigor nas mensagens. O episódio desesperado de construção de narrativas sem nexo com a realidade atingiu o clímax no caso da substituição de Cristiano Ronaldo. Toda a gente viu. Toda a gente percebeu o que se passou. A Federação e o jogador desmentiram. O reconhecimento da verdade foi mais lento que William Carvalho, mas chegou.

 

IMPOTÊNCIA GLOBAL FACE À LOCURA. A guerra na Ucrânia é uma realidade que sublinha a insuficiência das organizações e das soluções internacionais para lidar com a loucura que conjuga a concretização de crimes contra a humanidade com crimes contra a normalidade a que todos os povos têm direito no patamar civilizacional que julgávamos ter atingido.

 

BANHO DE REALIDADE. A entrevista de Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, ao Expresso devia de ser de leitura obrigatória para muitos dos efabulados vigentes com responsabilidades na governação do país e nas opções políticas. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser. Não, não é”.

 

Escreve à quarta-feira

A utilidade útil dos idiotas


Quase 50 anos depois da consagração democrática, a utilidade útil dos idiotas deveria rarear e, no entanto, ela move-se e prolifera. Temos o que merecemos, com as escolhas que são feitas e o nível de exigência cívica e política que existe. É poucochinho, mas o Povo gosta.


A caminho do meio século de democracia persiste na sociedade portuguesa duas perspetivas de encarar as realidades, entre a dispersão de querer ir a todas, de agradar a todos e de consagrar alegados avanços civilizacionais para nichos ou o foco no essencial que perfaz a democratização de padrões essenciais de qualidade de vida da população e a geração de oportunidades de desenvolvimento individual e comunitário. Infelizmente, quando tantos estão alheados e afastados do acesso a bens e serviços fundamentais para o conforto e qualidade de vida, há sempre quem assuma o papel de idiota útil na desfocagem do permanente desafio cívico, político e social de construir respostas para as pessoas e para os territórios.

Podemos não gerar oportunidades de realização individual e profissional em Portugal para os jovens, depois de lhes incutir as qualificações disponíveis.

Podemos rebaixar a classe média até ao limiar da indigência, enquanto persiste a pobreza, a exclusão social e os fenómenos de disrupção do equilíbrio entre direitos e deveres.

Podemos não disponibilizar aos velhos a atenção, o conforto e a qualidade de vida merecidos pelo caminho percorrido ao longo dos anos, em compromisso com a família e com o país.

Podemos tudo isto e muito mais, na nobre arte de entreter o espaço público e mediático com o simbólico, com a polémica inconsequente e com tantas outras artes dos protagonistas políticos vigentes, entre o insensível e o insensato, sem rasgo nem visão, mas há sempre uma alma ou um conjunto de almas, mais ou menos gémeas, pelo menos na configuração e na orientação para a ação, dispostas a tirar da cartola uma revisão constitucional, um referendo, uma incoerência ou mais uma circunstância geradora de oportunidades para os populismos.

Ele é a inscrição na Constituição dos direitos dos animais, quando muitas consagrações dos humanos estão pela hora da morte, no acesso aos bens alimentares, à saúde, a habitação e a algum nível de previsibilidade para os seus quotidianos, além do dia em curso.

Ele é o referendo da eutanásia como se a insuficiência de respostas em tantas áreas da vida das pessoas, das comunidades e dos territórios não tivessem gerado diversas pequenas falências vitais, no diagnóstico de doenças, no tratamento e no acesso a bens fundamentais para uma vida saudável. Para quê um referendo quando se trata sobretudo de uma questão de consciência e de direito individual que, uma vez mais, pode ser sempre concretizado em função da existência de recursos financeiros noutro país onde a eutanásia é letra de lei. Porque se insistem em generalizadas manobras de dilação, da concretização de direitos básicos à consagração de margens de liberdade individual, quando o Estado e a sociedade se demitem de fazer tanta coisa.

Para quem invocou no passado, os preconceitos ideológicos para fustigar a solução governativa que vigorou à esquerda, não deixa de ser caricato que, a um espirro dogmático de Cavaco Silva e dos setores conservadores, a liderança do PSD acorra com a dilação que tinha mais à mão, depois de ser parte do processo parlamentar e presidencial arrastado.

É indubitável que existem outras prioridades para a generalidade da população, que o estado na Nação em áreas vitais é miserável, porque o foco das decisões de governação foi o popular, o agrado abrangente e a resposta aos nichos eleitorais partidários da anterior maioria de governo.

É confrangedor assistir ao bloqueio de uma maioria absoluta incapaz de afirmar uma visão para o país, concretizar as disponibilidades financeiras existentes, responder aos problemas estruturais e às perceções lesivas do compromisso social com a democracia.

O referendo de Montenegro é mais uma cortina para a desfocagem do essencial, pode mobilizar alguns setores da sociedade portuguesa, não contribui para resolver nada do essencial, do que vem de trás, do que emergiu das crises recentes ou vigentes e do que o país precisa. É folga para o enleio da governação, entrem os setores parlamentares das agendas alternativas e acrescenta descontentamento popular face às dificuldades do dia-a-dia imputadas à guerra, à pandemia e à inflação.

O referendo à eutanásia é a última das inutilidades úteis da política portuguesa, repristina o registo de Rui Rio na liderança do PSD, é bom para António Costa, mau para o país, que prossegue entretido com o que não interessa entre a bola no Qatar, os rabos de bacalhau, que os lombos estão caros, e a persistência de problemas estruturais graves de organização e resposta aos direitos consagrados na Constituição de 1976.

Quase 50 anos depois da consagração democrática, a utilidade útil dos idiotas deveria rarear e, no entanto, ela move-se e prolifera.

Temos o que merecemos, com as escolhas que são feitas e o nível de exigência cívica e política que existe. É poucochinho, mas o Povo gosta.

 

NOTAS FINAIS

OS SINAIS SIMBÓLICOS DO MERCADO. A força com que os planos e seguros de saúde estão presentes no universo publicitário dos presentes de Natal é sintomático das fragilidades existentes no Serviço Nacional de Saúde. Despejar mais dinheiro não é só a solução, com os problemas estruturais, o perfil demográfico da população e as decisões políticas dos últimos anos. Reduzir o horário de trabalho para agradar aos parceiros de governação, significava querer fazer as mesmas omeletes com menos ovos disponíveis. O país dispensa lágrimas dos crocodilos que tiveram outras opções no passado, precisa de convergências e ação no presente, para que não mude quando mudam os governos e nunca falhe às pessoas e aos territórios.

 

FEDERAÇÃO DE FUTEBOL SEM REI NEM ROQUE. São muitos os sinais de deslaço e desmando na Federação Portuguesa de Futebol, depois da criatividade fiscal, falta seriedade, senso e rigor nas mensagens. O episódio desesperado de construção de narrativas sem nexo com a realidade atingiu o clímax no caso da substituição de Cristiano Ronaldo. Toda a gente viu. Toda a gente percebeu o que se passou. A Federação e o jogador desmentiram. O reconhecimento da verdade foi mais lento que William Carvalho, mas chegou.

 

IMPOTÊNCIA GLOBAL FACE À LOCURA. A guerra na Ucrânia é uma realidade que sublinha a insuficiência das organizações e das soluções internacionais para lidar com a loucura que conjuga a concretização de crimes contra a humanidade com crimes contra a normalidade a que todos os povos têm direito no patamar civilizacional que julgávamos ter atingido.

 

BANHO DE REALIDADE. A entrevista de Fernanda Rodrigues, da Comissão Coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza e da Cruz Vermelha Portuguesa no Porto, ao Expresso devia de ser de leitura obrigatória para muitos dos efabulados vigentes com responsabilidades na governação do país e nas opções políticas. “Fomos educados a achar que é tão natural ser pobre como não ser. Não, não é”.

 

Escreve à quarta-feira