Qatar 2022. “Os futebolistas não aguentam tantos jogos”

Qatar 2022. “Os futebolistas não aguentam tantos jogos”


O Mundial do Qatar começa dentro de dez dias e os avisos sucedem-se. A intensidade de jogos pode causar lesões, penalizar a performance dos atletas e a qualidade do espetáculo. As redes sociais também são um problema e vão ser controladas.


O programa para os próximos dois meses não deixa ninguém tranquilo. Jogadores profissionais, técnicos e equipas médicas consideram que a realização de um campeonato do mundo a meio de uma temporada que, já de si, era extremamente preenchida é um risco para os atletas. Vários especialistas avisaram que os jogadores não deviam ter níveis de intensidade tão altos, nem cargas físicas elevadas, e alertam para as consequências no final.  

A gestão dos calendários tem pouca consideração pelo bem-estar dos jogadores, e requer uma mudança urgente, como diz ao i Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF). “Os quadros competitivos devem ser reformulados. Os futebolistas não têm capacidade para aguentar tantos jogos em tão pouco tempo, têm tido problemas e deve haver um equilíbrio que garanta a sua saúde”, fez questão de frisar. O que está em jogo é muito simples: “Estamos a falar de quadros competitivos menos pesados, maior descanso entre jogos e direito a férias, há muitos jogadores que não chegam a gozar férias. Entre campeonatos nacionais, competições europeias e jogos de seleções, há jogadores que praticamente não descansaram”, alerta. Há casos bem identificados dos excessos que estão a ser cometidos, caso de Ruben Dias e Bruno Fernandes que, entre jogos de clubes e da seleção, fazem um número de quilómetros por ano inaceitável. Os jogadores profissionais são os principais interessados, e querem alterações ao atual quadro competitivo, no que são acompanhados por alguns treinadores que têm vindo a criticar a agenda do futebol internacional, como aconteceu com Fernando Santos, Jurgen Klopp e Pep Guardiola. Apesar da constante chamada de atenção, a pressão sobre os jogadores pode aumentar com o novo figurino de Liga dos Campeões, previsto para 2024. Já se percebeu que há, claramente, um conflito de interesses.

Jogadores monitorizados A Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPRO) tem vindo a alertar para as consequências que calendários desequilibrados podem ter na saúde e na carreira dos futebolistas, fazendo baixar o rendimento desportivo e, dessa forma, a qualidade dos jogos. A FIFPRO criou a plataforma Player Workload Monitoring (PWM) para monitorizar a carga de trabalho dos jogadores e os resultados são impressionantes. O inquérito realizado a 1 055 jogadores das ligas inglesa, italiana, francesa e espanhola, mostra claramente (74 %) que os futebolistas querem uma regulamentação que lhes permita descansar mais e viajar menos, e apenas 26% dos jogadores querem manter o quadro atual. 

Há exemplos elucidativos daquilo que os jogadores passam; em 2020, Luka Modric (Real Madrid e Croácia) disputou 24 jogos seguidos com menos de cinco dias de descanso entre cada jogo, e Harry Maguire (Manchester United e Inglaterra) realizou 19 partidas com menos de cinco dias de intervalo. Um em cada três jogadores disputou 55 partidas na época anterior à pandemia; 55% dos jogadores tiveram lesões devido ao excesso de jogos; 40% garantiu que o calendário sobrecarregado afetou a sua saúde mental e 72% considera que a quantidade de jogos consecutivos devia limitar-se a quatro. A situação agrava-se esta época com a realização do Mundial, entre 20 de novembro e 18 de dezembro. Além do esforço físico, as viagens intercontinentais ao serviço das seleções são outro problema. “As viagens de longa duração causam muita pressão e o rendimento nos jogos é inferior devido às diferenças horárias e de clima, que por vezes são muito acentuadas”, defendeu Arturo Vidal, internacional do Chile. 

No que se refere aos 92 médicos e especialistas em rendimento desportivo, muitos deles a trabalhar em seleções nacionais, a esmagadora maioria (92%) concorda com os jogadores e apenas 8% disse que não tem problemas com a sobrecarga de jogos e o estilo de vida quase nómada que pode causar também problemas de saúde mental. A FIFPRO entende que a defesa dos jogadores deve incluir o descanso obrigatório de quatro semanas antes do início da temporada; pré-temporada no mínimo com quatro semanas; períodos de descanso flexíveis de duas em duas semanas ao longo da época; protocolos de gestão da carga física e apoio à saúde mental.

O disparate Qatar Joaquim Evangelista é voz ativa contra o atual estado do futebol, já que “o jogador tem de ser visto como um ser humano, com as fragilidades que os seres humanos têm. Estamos a tentar estabelecer protocolos com a FIFA e UEFA para garantir a saúde dos atletas, mas estamos longe de o conseguir porque os interesses financeiros falam mais alto como é o exemplo do Campeonato do Mundo no Qatar”. Sobre o evento que começa para a semana, foi perentório, “é um disparate”, acrescentando que “é uma competição atípica que não devia realizar-se. A carga de jogos é muito grande e há riscos para os atletas”. Apontou em seguida as razões pelas quais não concorda com este mundial: “A parte comercial não devia ser mais importante que a saúde do atleta, e é disso que estamos a falar”. O presidente do sindicato alertou ainda para outro aspeto. “É uma competição integrada a meio da época e com condições climatéricas diferentes e muito exigentes, e pode ter consequências na saúde dos atletas”. A forma como a temporada foi planeada é muito penalizadora pois “cada vez há mais jogadores com lesões, outros com dificuldade em recuperar, além de afetar a performance desportiva. Eles têm que ter descanso, e isso não está a acontecer. É impossível os atletas acompanharem as exigências dos jogos sem se ressentirem. O corpo humano tem características específicas que devem ser respeitadas sob pena de não aguentar o esforço e entrar em burnout”.

Controlar as redes sociais Tema a ser tratado com especial atenção no decorrer do Campeonato do Mundo são as redes sociais, muitas vezes verdadeiros atentados à inteligência humana. “A FIFA quer evitar o ódio, a agressividade e a pressão sobre os jogadores. Nesse sentido, foi criada uma plataforma para monitorizar e controlar os jogadores que têm redes sociais, e sempre que haja uma abordagem menos correta o sistema apaga as mensagens, evitando que os jogadores sejam pressionados pelo que se escreve no mundo digital”. Há uma radicalização no discurso à volta do futebol e têm de ser as organizações e os poderes a combater esses desvios já que “há uma cidadania que tem de ser respeitada, as pessoas têm de perceber que no desporto não vale tudo”.