Depois de cinco anos em que colaborou com grupos como Glockenwise e José Pinhal Post Mortem Experience, João Sarnadas, alter-ego de Coelho Radioactivo, voltou aos lançamentos com o seu mais recente disco, Coelho Radioactivo e Os Plutónios.
Ao contrário do que nos tem habituado, o músico natural de Aveiro em vez de se encarregar da maior parte do processo a solo, neste trabalho fez-se acompanhar pelos seus camaradas, Os Plutónios, que ajudaram a oferecer um som mais direto e energético a um trabalho onde Sarnadas expõe as suas frustrações de uma forma bastante crua.
Em entrevista ao i, o músico fala sobre as origens deste disco, as suas influências, mas também das dores de crescimento que o ajudaram a inspirar-se e a criar estas músicas.
Depois de um hiato de Coelho Radioactivo que durou cinco anos, o que o motivou a lançar, agora, este novo disco?
Não existiu propriamente uma motivação para lançar o álbum neste momento. A pausa de Coelho Radioactivo também não foi algo premeditado, aconteceu naturalmente porque estive envolvido noutros projetos. Este disco foi complicado de concluir porque, apesar de ser meu, existem mais pessoas envolvidas, nomeadamente Os Plutónios. Houve uma altura em que esteve bastante parado, apesar de já termos gravado algumas músicas, não sabia muito bem o que fazer com as músicas. Como é que as devia de misturar, como é que deviam soar…
O que aconteceu para finalmente este trabalho “sair da toca”?
Sabia que eventualmente teria que lançar este trabalho. Em 2019, voltei para Aveiro, depois de vários anos a morar no Porto – desde 2009 – e consegui ter mais tempo e encontrar a dedicação para acabar alguns projetos que tinha pendentes. Estava a trabalhar noutro projeto a solo, Sarnadas, com uma componente mais experimental, e este disco. No seu desenvolvimento fui encontrando mais dificuldades do que esperava, mas eventualmente acabei por concluir.
O regresso a Aveiro trouxe alguma inspiração que o tivesse ajudado a acabar o disco?
De certa maneira, sinto que pode ter-me oferecido mais tempo para pensar nas letras, porque estava longe do Porto, onde há sempre muita coisa a acontecer e muita noite para sair (risos). Mas não considero que tenha sido uma grande inspiração, este disco não se prende a nenhum espaço em particular. Nas canções falo sobre problemas mais urbanos que podem ser sentidos por pessoas em qualquer lado.
Houve algum fator que se tenha revelado decisivo para conseguir finalizar o disco?
O teclista dos Plutónio, Carlos Rosário, que esteve muito tempo emigrado, na Alemanha e na Holanda, a fazer um projeto de investigação, vai voltar para Portugal em Janeiro, o que são boas notícias porque assim ainda conseguiremos fazer concertos todos juntos.
Faz este regresso acompanhado, pela primeira vez, pelos Plutónios. Por que decidiu fazer este trabalho com banda em oposição ao que nos tem habituado, com os trabalhos a solo?
Este disco já estava a ser gravado na altura em que lancei o Canções Mortas (2015), mas teve de ficar em stand-by. Os Plutónios eram uma banda com quem costumava tocar, durante 2009 e 2013, apesar de não ser de uma forma muito regular, devido à saída do Carlos, mas estas canções foram criadas com eles. Não fazia sentido fazer um disco sozinho com estas músicas, este álbum tinha de dividir o protagonismo com Os Plutónios.
Que novos inputs trouxeram os Plutónios ao seu trabalho?
Normalmente, o processo de criação de Coelho Radioactivo é bastante solitário. Não tinha de responder a ninguém. Agora, a trabalhar com outras pessoas, aliado à vontade de não querer que o disco fosse apenas meu, existem logo grandes diferenças. Os Plutónios participaram no Canções Mortas, mas as dinâmicas eram bastantes diferentes, era um trabalho apenas meu. Tinha ideias um pouco mais definidas sobre as músicas e, quando começava a gravar já sabia exatamente como iam ser as letras e os arranjos. Fazia quase tudo sozinho e com muita calma. Com os Plutónios queria que fosse algo que partisse de um grupo de pessoas e que pudesse ser associada a um som feito por uma banda de rock numa sala de ensaios nos anos 1990, com músicas mais simples e imediatas.
Isso é algo que dá para sentir durante a audição do disco, essas músicas mais cruas e diretas.
Era importante existir a sensação que estas músicas podiam ser tocadas ao vivo só com os elementos da banda. Existem trabalhos que fiz antes que são muito difíceis de reproduzir ao vivo porque existem instrumentos diferentes em todas as faixas, é outro tipo de complexidade.
Estava a falar sobre estas músicas estarem construídas desde 2015. Com o passar do tempo e com o amadurecimento das ideias estas acabaram por ficar muito diferentes?
Aconteceram muitas mudanças, com exceção de duas músicas. Todas as outras faixas sofreram algumas alterações, nomeadamente na forma como eu canto, e existiam músicas que nem tinham letra. Viste o documentário dos Beatles, o Get Back?
Sim.
Havia músicas que pareciam os primórdios da Get Back, em que era só o Paul McCartney a trautear sons e melodias. Mas acabei por mudar a ideia de algumas canções e as suas letras porque já não me identificava tanto com os seus temas. A maior parte das músicas foram sendo feitas ao longo destes anos todos.
Pode falar sobre algum episódio em que desenvolveu estas ideias para uma canção completamente estruturada?
Por exemplo, o primeiro single, Perdidos, nasceu de uma sessão de improviso com a banda. Era um instrumental sem letra, até ao dia em que estava sozinho no estúdio a misturar as canções e, fruto de algumas inspirações do momento, como é o caso da Kali Malone, acrescentei alguns elementos, como uma linha de piano, e percebi que tinha aqui uma canção. Foi uma das músicas que teve uma transformação mais clara, porque ganhou uma estrutura bem definida quando não passava apenas de uma “jam” psicadélica entre amigos.
As bases do disco surgiram muito à base da improvisação?
Sim, a Mão Luminosa, que é uma das músicas que eu gosto mais também nasceu de uma “jam”. Quando foi gravada não tinha voz, foi algo que surgiu com o passar do tempo.
Essa é a minha faixa favorita do álbum, sinto que é a súmula de tudo aquilo que esteve a descrever: a vontade de fazer músicas mais diretas, mais agressivas e com a sensação de que é tocada por uma banda. De onde surgiu esta música e este som?
Todo este disco é muito claro em relação às suas influências. Quando pensas que reconheces algo que está a ser tocado é porque isso acontece mesmo. Não estaria a surpreender ninguém se dissesse que existem muitas influências de My Bloody Valentine. O som da guitarra foi inspirado pela fase em que ouvi o último disco deles, m b v (2013), e também pelo Connan Mockasin, que usa bastante a barra de tremolo da guitarra para produzir este som distinto. Este disco é muito fruto de tudo aquilo que ouvíamos na altura, era normal chegarmos à sala de ensaio e alguém começar a tocar Deerhunter e começarmos assim uma sessão de improviso.
Uma música que também achei bastante interessante foi a Fuckuldade, também muito direta e energética. Esta energia foi motivada por uma experiência mais negativa no ensino superior?
Não diria que a energia da música é motivada por um sentimento negativo ou de revolta, apesar da letra ter um pouco dessas emoções. Diria que a música fala um pouco mais de uma desilusão, não com o ensino superior, mas com a ideia de não cumprir os meus objetivos. Eu não terminei o curso de arquitetura. Sempre achei que teria uma licenciatura e que isso é o correto ou o que devia fazer.
Porque é que abandonou o curso?
Quando percebi que não estava assim tão interessado em acabar os estudos, ora porque estava no curso errado ou porque estava mais focado na minha carreira musical, percebi que não estava realizado. A ideia de falhanço é algo que existe ao longo do disco e na Fuckuldade é referente a este período em específico da minha vida. Se calhar até tens razão e a música até é mais efervescente porque estava frustrado, mas foi algo subconsciente.
Como é que alguém passa de arquitetura para a música?
Não diria que passei da arquitetura para a música, já tinha começado este projeto antes de ir para a faculdade. Algumas pessoas até me reconheciam quando entrei no meu curso. Na altura em que escolhi o curso gostava bastante de arquitetura, mas não sabia bem o que queria e não tinha bem noção como era a realidade desta área. Era algo que requeria muito de mim e não estava a conseguir lidar com esta situação. Ainda por cima estava a começar a fazer dinheiro com a minha música e isso fez-me questionar se efetivamente queria mesmo continuar nesta área. Acabei por abandonar, algo que, talvez, até devia ter feito mais cedo.
Existe alguma ponte entre estas duas disciplinas?
A arquitetura é uma área que se quer relacionar com muitas artes, como a música ou o cinema. E existe muito ritmo neste tipo de trabalhos, como as fachadas dos edifícios. O som também é algo muito importante na arquitetura: quando estamos numa sala, o som afeta tudo. Por exemplo, se estamos a falar com alguém e a reverberação desse sítio é muito intensa torna-se mais cansativo para quem estiver a dialogar.
Regressando agora um pouco ao hiato de Coelho Radioactivo. Apesar deste projeto ter estado parado durante algum tempo, o João nunca parou e continuou a trabalhar noutros projetos musicais, como é que se sente por voltar a assumir este protagonismo?
É estranho. Ainda não tive oportunidade de apresentar o meu novo disco ao vivo, por isso tenho a sensação que não voltei a 100% ao ativo. Com os meus lançamentos anteriores consegui sempre apresentar as minhas músicas novas em concertos, agora, parece que está tudo a acontecer num plano virtual. A exposição não é algo que adore, mas também não tenho aversão, sinto apenas que é algo necessário nesta fase de lançamento de um novo disco.
Destes projetos, o que é que sente que trouxe para Coelho Radioactivo?
Trazes sempre um pouco mais de experiência ao tocar ao vivo, seja porque conheces outros músicos ou novos sítios. Gosto de todos os tipos de músicas, tanto de música de cantautor como de música de baile. Tudo isto são formas de expressão importantes para mim e que preciso de fazer e deitar cá para fora. A possibilidade de ter todas estas experiências, tão diferentes umas das outras, é que consigo ganhar mais espaço para fazer o que me apetecer. Cada projeto tem o seu espaço e permite-me exprimir criativamente de uma forma mais saudável. Se não tivesse toda esta liberdade para fazer tantas coisas diferentes ia tentar misturar tudo um pouco ou sentir que estava a faltar fazer-me algo. Com todas estas possibilidades sinto-me mais à vontade com aquilo que faço porque consigo definir melhor como é que cada projeto deve soar.
Por exemplo, em José Pinhal Post Mortem Experience, um dos projetos mais acarinhados que esteve envolvido, tem uma energia muito diferente do disco que acabou de lançar. Existe alguma inspiração que trouxe desta colaboração?
No caso desta banda é um projeto muito bem definido. Não posso dizer que tenha ido buscar grandes inspirações para Coelho Radioactivo, a nível musical, mas deixa-me mais à vontade para fazer música mais séria e pessoal porque sei que tenho este outro espaço onde posso ser mais divertido e energético.
O registo destas duas bandas é muito diferente, como é que faz para tocar em dois estados de espíritos tão diferentes?
Às vezes pode ser difícil entrar num estado de espírito para tocar em José Pinhal Post Mortem Experience, especialmente se me estiver a sentir um bocado mais deprimido. Mas é normal, uma pessoa não está sempre ou a ouvir música triste ou a ouvir apenas música para dançar. Mas novamente, tenho a sorte de estar envolvido nestes projetos diferentes que me permitem armazenar a minha energia e emoções para locais mais específicos. O Coelho Radioactivo oferece-me um espaço onde posso ser mais sincero. O Sarnadas permite-me explorar sons mais experimentais. E no tributo a José Pinhal existe uma maior comunhão nos concertos com muita alegria e energia. São espaços diferentes e estados de espírito diferentes. Às vezes até me faz bem, quando estou mal disposto e vou fazer concertos com os José Pinhal Post Mortem Experience sinto que é um remédio santo. É muito fácil ficar feliz quando estás rodeado por pessoas que se estão a divertir com o que estás a tocar. Não acho que seja um problema, é uma bênção.