A vitória da extrema direita em Itália aconteceu, como estava previsto.
Até ela acontecer, os media diabolizavam tal solução política e as forças que a compunham.
Hoje, perante a realidade dos factos, os mesmos media encarregam-se, não se sabe em nome de quê e de quem, de a tornar aceitável e toleráveis – espirituosos, até – alguns dos seus protagonistas.
Em nome e defesa dos valores democráticos, tudo parece hoje possível, à exceção desses mesmos valores que, afinal, já poucos parecem recordar.
Lembremos, a propósito, que eles também permitiram integrar regimes ditatoriais – como o que tivemos em Portugal – em organizações alegadamente guardiãs desses mesmos valores.
Não nos espantemos, por isso, com a provável campanha que irá seguir-se, tendo em vista tornar admissíveis, e honradas mesmo, as soluções políticas que, quando absolutamente minoritárias, pareciam abomináveis a todos os democratas, mesmo aos mais conservadores.
A partir de então, parecerá imprescindível conviver com a extrema direita no poder, sobretudo se ela tiver a inteligência de ir namorando ao centro e prometer viabilizar soluções políticas que a direita conservadora, por si, já não está em condições de sustentar sozinha nos parlamentos.
O problema destes namoros é que eles, para resultarem bem e durarem o tempo necessário, necessitam de compromissos.
Um empresta respeitabilidade e o outro faz o marketing da nova relação.
Por causa de tais compromissos, um dos namorados tende, porém, quase sempre, a integrar a idiossincrasia do outro.
Ora, num namoro, predomina, em geral, a maneira de ser, ou de estar, do namorado mais bizarro e histriónico: é na verdade ela que caracteriza, sobressai e identifica publicamente o casal.
Num tal processo, aquilo que eram os valores que justificaram, inicialmente, tais enlaces vão-se transformando, entretanto, e perdendo o seu significado original.
Muitos deles passarão, pois, a ser vistos, agora, por ambos os namorados, como a causa dos problemas existentes na sociedade.
Vendo melhor – pensarão os dois namorados -, era óbvio que tais valores haviam sido já antes adulterados e, por isso, irá ser necessário, substituí-los por outros mais sólidos, mesmo que, em absoluto, contrários aquilo que justificou a relutante aliança amorosa inicial.
Em pouco tempo, as referências que justificaram o que um julgou ser uma união passageira e o outro um trampolim para uma nova vida, desparecerão de cena.
Os antigos parceiros do namorado mais respeitável, passarão, então, a ser apontados pelo namorado mais insubmisso e aventureiro como perigosos propiciadores dos vícios antigos: aqueles de que é preciso salvar o mundo.
Tudo o que a esses parceiros antigos disser respeito passará a ser indicado pelo namorado mais agitado como contrário à nova ordem de coisas: a ordem nova, que os namorados – ou pelo menos um deles – estão agora a edificar.
Por isso, antigas parcerias à parte, é essencial neutralizá-los ou eliminá-los mesmo, se necessário.
O namorado mais respeitável começará então por repudiar as velhas parcerias, que, reconhece só agora, sempre terem contribuído para a degradação dos valores que a ordem nova quer substituir.
A vida nova deve começar desde aí, e se o namorado mais respeitável começar a parecer algo reticente, não importa: terá – tanto pior para ele – o destino dos seus antigos pares na edificação dos ditos valores democráticos, vistos, agora, em privado, como deletérios.
Parece contraditório, mas não é.
De resto, este processo não é novo e convém, por isso, rememorar a História e os seus ensinamentos.
Cuidado, pois, com a invocação em vão, dos valores que, no princípio, todos dizem defender, mas que ganham significados diferentes nas bocas dos que neles, verdadeiramente, não acreditam.
Ao longo da vida da humanidade, a invocação de muitos desses valores tem servido para tudo: para os maiores avanços, para os maiores horrores, para uma coisa e para o seu contrário.
É, assim, importante que os media – os seus donos e os que neles trabalham – que levianamente os invocam e, assim, com isso, justificam o injustificável, se acautelem: se o não fizerem, contribuem para o apadrinhamento e a sedimentação dos enlaces mais espúrios e de tudo o que eles, de facto, representam.
Se não querem ser coniventes com elas, convém, portanto, que, antes de invocarem ritualmente tais valores, recuperem e ilustrem publicamente a sua história, meditem e ajudem a meditar no seu real significado social e nos que se sacrificaram verdadeiramente para que eles pudessem moldar e melhorar a vida de muitos homens e mulheres, sobretudo a daqueles a quem a sua afirmação mais ajudou a sair da miséria material e cultural em que viviam.