A vida moderna desenleia-se a toque de velocidade, acelerada, superficial, nervosa e com cada vez menos âncoras de referência positivas, mas, perante impactos relevantes da conjuntura na vida das pessoas, das empresas e da comunidade em geral, os decisores políticos chutaram respostas para um tempo posterior e António Costa verbalizou mesmo uma doutrina que contrasta com as suas atitudes partidárias passadas, “a força vem da calma”. Já Abrunhosa tinha ido ao tema ao invocar o “é preciso ter calma, não dar o corpo pela alma”, mais recentemente, a criação musical “sal grosso” do Tio Gel voltou à doutrina da calma e agora o primeiro-ministro refreou as ânsias mediáticas em relação às medidas para mitigar a relevância da inflação e os preços energéticos nas vivências individuais e comunitárias.
O dia do anúncio do pacote é uma espécie de tempo do bodo, de reafirmação da máquina que liga os portugueses à expetativa de umas migalhas do Estado que ajudem ao quotidiano, fugindo da categoria de obrigação de ação da governação face às realidades e dos direitos dos cidadãos e da sociedade em geral. O pacote está alojado, provavelmente em alojamento local, na porta ao lado das benesses, a que devemos dar graças e corresponder com a devida fidelidade eleitoral.
O dia do pacote foi antecedido por meses de dificuldades das pessoas, das famílias e das empresas face ao aumento dos custos de produção, dos combustíveis, dos preços de bens essenciais e de uma inflação que reconfortou os cofres do Estado com milhões de receitas extraordinárias, muito além do previsto no orçamento de Estado. O Estado aproveitou a ânsia de regresso às dinâmicas interrompidas pela pandemia, o verão e as férias para engordar os cofres à conta dos contribuintes, mas com calma.
A calma que já tinha contagiado muitos serviços públicos, amplos setores da sociedade e inquinado a nossa capacidade de concretização de ideias, projetos e iniciativas, é agora sinalizado pelo governo como uma virtude, ao nível da paciência de chinês. A calma na substituição da ministra da Saúde quando o SNS gangrena só pode significar a compra de tempo para uma remodelação maior, que se impõem em diversas áreas por incapacidade dos protagonistas políticos na resposta às necessidades presentes e programáticas, algumas já evidentes aquando da formação do governo. A alegada sublime habilidade política é um cobertor em relação a muitas variantes da ação política, a começar pelos valores e pelo interesse geral.
Hoje é dia do pacote, de confrontar as necessidades e as expectativas com a realidade do bodo, já pontuado pelo verborreico presidencial. É certo que os tempos são de incertezas, mas depois de 1.113 milhões de euros de receita excedente no 1º semestre, espera-se que a resposta vá além do universo eleitoral fidelizado, sem colocar em causa o esforço de senso e procura de pontos de equilíbrio nas contas que permitem o estatuto de bom aluno em Bruxelas e a sustentação de ambições europeias.
O anúncio do pacote poderá enfermar da mesma patologia inicial da maioria absoluta na abordagem ao poder conferido pelo voto popular, o problema do critério. O critério é decisivo para o futuro, a par da explicação pedagógica das opções, da promoção do compromisso e da perceção da finitude dos recursos. Bem sei, que, depois da promoção da bazuca e dos milhões de encaixe excedentário das finanças, é difícil contrariar as ideias que se promovem desde a anterior solução governativa. É que, para além disso, há uma grande diferença entre despejar dinheiro sobre os problemas e concretizar soluções que contribuam para os problemas estruturais, as circunstâncias e uma visão estratégica integrada para o país, além dos corredores do poder e dos grandes centros urbanos, a começar pela capital.
“Pacotar” é fácil, concretizar iniciativas e projetos é que é o cabo dos trabalhos, desde logo, pelas burocracias, pelas efervescências cívicas e mediáticas da problematização e pelas dificuldades operacionais na concretização. Enleados na incapacidade em concretizar não espantaria que mesmo os mais arreigados aos preconceitos ideológicos se rendam ao virtuosismo da execução através das parcerias público-privadas, quando ainda há pouco destruíram algumas que funcionavam bem na saúde como a de Vila Franca de Xira.
Hoje é dia de pacote. Ou o governo apresenta um conjunto de propostas substanciais, com real impacto na vida das pessoas e das comunidades, a que se deverão seguir medidas para a economia, com clareza, explicação e eficácia no enunciar dos critérios para as opções e soluções ou o momento apenas adensa a crescente berraria social de reivindicações, algumas sem nexo com as disponibilidades e a sustentabilidade, como acontece com reivindicação de aumentos de pelo menos 10% para os professores, pelo inefável Nogueira.
Critério, mas também compromisso. Com uma série de frentes de trabalho e alguns recursos financeiros, do PRR, dos restos do Portugal 2020 e do Portugal 2030, e estabilidade política conferida por uma maioria absoluta, é impensável não haver trabalho visível de compromisso em relação aos principais problemas do país, com os principais protagonistas, da Saúde à Justiça. Nunca haverá dinheiro para tudo, mas tem de haver um caminho a percorrer em conjunto para corrigir erros que vêm de trás e o que ainda não foi feito em quase 50 anos de Democracia.
Sem critério, compromisso e capacidade de concretização além do quotidiano e dos círculos de influência e interesse, conjugação uma trágica trilogia da falta de vontade política para transformação de acordo com uma visão estratégica sensata, integrada e ambiciosa no ir além da gestão de turno e da sobrevivência política.
O bodo do pacote acalma e fideliza, mas não resolve nenhum problema de posicionamento dos cidadãos, do Estado e da sociedade. Só não é como o “melhoral”, que dizem não fazer bem nem mal, porque responde ao imediato das dificuldades e constrangimentos sentidos por muitos portugueses, instituições e empresas, mas não resolve nenhum dos problemas estruturais. E como está, está bem que baste, afinal como afirmou o primeiro-ministro “a força vem da calma”. O problema é quando a calma e a tolerância se esvaem e surgem os desesperos, as intolerâncias e os extremismos. Até lá, haja pacote!
NOTA FINAL
Ó MEDIÁTICOS INDIGNADOS DO CONSELHO DE DISCIPLINA DA FEDERAÇÃO. A comoção da classe jornalística com a ameaça de sanção de um par pelo órgão da Federação que aplica a disciplina nas competições do futebol profissional revelou o costume. Corporativismo, defesa dos mais fortes e falta de rigor, ao fustigarem o Presidente da Liga em vez de colocarem a cara do Presidente da Federação Portuguesa de Futebol que escolheu uma deputada para presidir ao Conselho de Disciplina que tomou a iniciativa de abrir o processo, quando arquiva tantos outros e marina castigos durante semanas e meses. As virgens ofendidas serão as mesmas que participam e compactuam com as declarações públicas de políticos e partidos sem direito a perguntas ou combinam os temas de entrevistas?
Escreve à segunda-feira