Nos últimos dias os meios de comunicação têm-nos mostrado sem cessar as virtudes da democracia inglesa e da organização do Estado britânico. Em poucos dias um primeiro-ministro foi substituído, mudou o Governo, morreu a amada rainha Isabel II e foi substituída pelo filho rei Carlos III. Tudo em sequência, tudo de acordo com a tradição e com enormes manifestações populares de apoio a um reinado que durou setenta anos, tempo em que o Mundo e o Reino Unido não cessaram de mudar. Curvemo-nos pois perante a memória de Isabel II, mas também perante a perenidade civilizacional do Estado Britânico.
Em Portugal vivemos hoje tempos difíceis de incerteza, apesar da estabilidade política provocada por uma maioria governamental resultante de eleições recentes. Uma estabilidade fracamente democrática e, principalmente, sem os valores da tradição e da organização do Estado e da sociedade de que o exemplo inglês é um padrão profundamente pedagógico. Talvez seja pois o tempo certo para reavaliar a democracia portuguesa no sentido do seu aprofundamento e de encontrar a forma de melhorar a participação democrática dos portugueses, na convicção de que os problemas nacionais se podem resolver com mais democracia e não com tentativas autoritárias destinadas a iludir os portugueses sobre as verdadeiras causas do nosso atraso.
Sempre fomos um país pobre e com elevados níveis de ignorância, por isso talvez seja tempo de fazermos um debate sério sobre as causas da pobreza extrema de milhões de portugueses e das razões da nossa economia estar a ficar para trás dos outros países da União Europeia e, em particular, daqueles que rotulamos como sendo do nosso campeonato, aqueles que apenas há alguns poucos anos estavam muito atrás de nós e que agora nos passam à frente. Não vale a pena iludir esta realidade desagradável ou tentar enganar os portugueses com sucessivas promessas de ausência de austeridade, promessas cujo objectivo é apenas a manutenção do poder e os benefícios que esse poder trás à grande família socialista.
Depois do desastre político, económico, social e, principalmente, financeiro dos seis anos de governação socialista de José Sócrates e da recuperação musculada do PSD, estamos a viver desde 2015 uma fase dita de estabilidade, agora reforçada com uma maioria absoluta, mas a questão é a de saber se Portugal precisa mais de estabilidade ou de mudança, ou de mudança em estabilidade, que é a essência dos regimes democráticos, seja através de reformas realizadas pela via do debate parlamentar, seja pela mudança de liderança do partido no poder, seja através da alternativa provocada em eleições.
Por exemplo, o Partido Conservador inglês acaba de ganhar uma nova legitimidade através de uma eleição interna que conduziu a uma nova liderança e a um novo Governo. Renovação praticamente impossível em Portugal, porque os deputados são escolhidos pelos líderes partidários e transformam-se em correias de transmissão da vontade do líder, como é o caso presente do PS, não refletindo a vontade do povo que se limita a escolher o partido da sua preferência, numa certa semelhança com o futebol. Ou seja, se acontecer que o líder seja avesso a mudanças, mesmo quando as condições em que se desenvolve a governação mudam, como é o caso de António Costa, o regime político fica bloqueado. Ou seja, o regime político deixa de responder às mudanças que o tempo ou a situação internacional provocam. Ou pior, o que acontece na presente situação portuguesa, porque permite que o Governo assuma medidas crescentemente desajustadas da realidade nacional e internacional, ou mesmo medidas de crescente negacionismo autoritário.
Acresce que nestas circunstâncias o Parlamento transforma-se numa instituição amplamente inútil, em que o debate é dominado pelas ideias e pela vontade do chefe e a vocação tradicional do Parlamento de encontrar novas soluções através do debate de diferentes propostas, deixa de funcionar. E isso não acontece por haver uma maioria, mas porque os deputados dessa maioria estão dependentes da vontade do líder que os escolheu e de quem depende a sua reeleição, deixando de pensarem pela suas cabeças. Em que as ideias e as propostas das oposições, por mais ajustadas que sejam, deixam de ter qualquer utilidade prática, para além, naturalmente, do seu impacto na opinião pública e, mesmo nesse caso, isso depende da liberdade e do rigor de funcionamento dos meios de comunicação.
Veja-se, por exemplo, o que está a acontecer com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) onde os graves problemas existentes são reconhecidos por quase toda a gente, incluindo alguns socialistas, mas em que o primeiro-ministro se limita a impor a sua vontade, seja na manutenção do rumo anterior, seja na escolha do ministro que vai cumprir essa vontade.
Recordo um outro caso também recente em que um ministro anunciou uma decisão sobre a localização de dois novos aeroportos, logo desmentido por António Costa e obrigado em vinte e quatro horas a meter a viola no saco. Neste caso, não é relevante se a solução proposta seria boa ou má, mas apenas que o ministro não manda grande coisa e se limita a obedecer. Quando mesmo Salazar ouvia os ministros.
Nestas condições não vejo grande surpresa que Portugal não esteja a responder às oportunidades de desenvolvimento económico e que a estagnação económica já leve mais de vinte anos, ou que os erros na TAP, na ferrovia, na Justiça, nos fogos, ou no SNS se acumulem e que tudo isso aconteça com a mais completa unanimidade no poder socialista. Até porque qualquer desalinhamento, mesmo momentâneo, é tratado com extrema dureza.
Esta é também uma explicação para o número crescente de declarações mais ou menos tolas feitas por membros do Governo e que são ridicularizadas no espaço público, como foram os casos do celebre algoritmo dos fogos ou o milagroso renascimento da Serra da Estrela. Outras declarações mais sérias, mas igualmente tolas, fizeram vencimento, como seja a poupança do País na importação de carvão através do fecho de duas centrais elétricas, ou que se pode chegar à Europa com os comboios de bitola ibérica, com a vantagem de isso eliminar a concorrência. Pessoalmente, não acredito que nestes casos os governantes acreditem no que dizem e penso sinceramente que apenas procuram agradar ao chefe e às suas ideias, que é a sua forma preferida de subir na vida.
Infelizmente, o caso fica ainda mais desolador quando o primeiro-ministro aparenta ser o mata borrão do Presidente da República, ou o inverso já não sei bem, mas em qualquer caso temos a estabilidade que elimina toda a mudança.
Empresário
Subscritor do manifesto Por Uma Democracia de Qualidade