António Simões. “Uma inesquecível viagem diretamente da Marinha Grande para Montevidéu!”

António Simões. “Uma inesquecível viagem diretamente da Marinha Grande para Montevidéu!”


Depois de uma vitória (1-0) em Lisboa e uma derrota no Uruguai (1-5), Guttmann decidiu que Eusébio e Simões eram imprescindíveis. E partiram de imediato para Montevidéu depois de um jogo de reservas.


Peñarol-Benfica: eis um jogo que vem do fundo dos tempos. Em 1961, os dois clubes disputaram a 2.ª edição da Taça Intercontinental. Ontem, os sub-20 de ambas as equipas disputaram a primeira Taça Intercontinental da sua categoria.

Há 61 anos, o Benfica começou por vencer em Lisboa a primeira mão por 1-0, golo de Coluna. Depois, em Montevidéu, a segunda mão, no dia 19 de setembro, foi um desastre (0-5). Os golos não contavam. Abriu-se lugar a uma finalíssima, novamente no Estádio Centenário. Béla Guttmann sentiu que a equipa precisava de ser injetada com sangue novo. Mandou vir de Lisboa dois jovens jogadores que não tinham participado da vitória de Berna sobre o Barcelona; Eusébio e António Simões. Eusébio tinha 20 anos; Simões 17. Vendo bem, poderiam jogar neste grupo de jovens que ontem também fez história.

“Ia fazer 18 anos em dezembro”, conta António Simões, que se viu envolvido num dos momentos mais extraordinários da sua carreira. “Imagina, só – tínhamos acabado de realizar um jogo na Marinha Grande, pelas reservas, e recebemos uma notícia mal o jogo acabou, um jogo que até nos tinha corrido bem e ganhámos por 5-2, com três golos do Eusébio e dois golos meus, Aliás, recordo-me muito bem dessa partida.

Ao contrário do que era habitual joguei pelo lado direito e não pela esquerda. Mas, bem, voltemos ao facto – ainda nos balneários, depois do duche, fomos informados, eu e o Eusébio, que estava um carro à nossa espera para voltarmos de imediato a Lisboa para apanhar um avião que ia para São Paulo e, daí, seguiríamos para Montevidéu. E quem é que se apresenta para nos transportar para Lisboa? O próprio presidente do Benfica: Vieira de Brito. Depois da derrota dura no segundo jogo, Guttmann pediu expressamente para que nos juntássemos à equipa para jogarmos o desempate”.

Simões vai desenrolando o curioso e inesperado episódio: “Passámos pelo Lar do Jogador para emalarmos a trouxa e seguimos para o aeroporto já que o voo, como é habitual nos voos para a América do Sul, era por volta da uma da manhã.

E assim foi, da Marinha Grande diretamente para Montevidéu, de um jogo de reservas para defrontar o Peñarol, uma das melhores equipas do mundo na altura e, ainda hoje, um clube mítico. Chegámos lá e Eusébio teimava que ainda não tínhamos chegado. ‘Mas já estamos em Montevidéu? Não pode ser. Passou muito pouco tempo!? E eu: ‘Deixa-te disso, vamos mas é embora, já somos as duas únicas pessoas dentro do avião!’ Estava o senhor Albino à nossa espera, o senhor que era responsável pela agência de viagens que acompanhava sempre as digressões do Benfica, e ele levou-nos para o hotel. Era segunda-feira e o terceiro jogo contra o Peñarol estava marcado para quarta. Acho que nunca passaram nas televisões portuguesas o golo que o Eusébio marcou nesse jogo. Recebeu a bola junto ao meio círculo, à entrada do meio campo do Peñarol e desferiu um pontapé tremendo. A bola voou Autenticamente! Voou. Entra na baliza com uma força terrível e foi o 1-1 para nós (Jose Sasia tinha marcado logo aos 5 minutos). Estávamos a jogar muito bem, Depois há uma grande penalidade contra nós (Sasia voltou a marcar) e criou-se uma confusão. O árbitro do jogo tinha sido fiscal de linha no jogo anterior”.

Impossível! António Simões faz uma reflexão na sua narrativa: “Sinceramente, agora, à distância destes anos todos, e encarando os factos com a frieza necessária, acho que aquele era um jogo impossível de ganhar. O ambiente tornou-se terrível, o José Augusto perdeu a cabeça e agrediu um dos fiscais de linha, os jogadores estavam todos aos montes a empurrarem-se uns aos outros.

O público estava de tal ordem furioso que, mesmo perdendo, estivemos cerca de duas horas fechados dentro do balneário e, quando saímos, o autocarro da equipa teve de ser escoltado por carrinhas da polícia. Inacreditável! Isto dá uma ideia do ambiente que, naquela altura, rodeava os jogos naquela zona do mundo. Nem imagino o que teria sido se tivéssemos ganho. E, atenção, não tenho a intenção de, com esta narrativa, beliscar o povo uruguaio. Só quero tentar dar uma imagem do ambiente pesadíssimo que rodeou esse jogo. Grande hostilidade e muita intimidação. Um fanatismo tremendo.

Perdemos o jogo, perdemos a possibilidade de conquistar a Taça Intercontinental, como tivemos depois a infelicidade de perder frente ao Santos, embora o Santos fosse muito superior ao Peñarol. É fantástico pensar que vencemos duas finais da Taça dos Campeões frente a equipas extraordinárias como o Barcelona e o Real Madrid, e depois fomos perder com outras duas equipas extraordinárias. Isto ilustra bem os momentos que vivemos nessa época. Não que andássemos nas nuvens, nada disso, mas vivíamos no centro do universo do grande futebol.

Para mim, esse momento de setembro de 1961 foi uma experiência incrível em todos os campos: contribuiu para o meu crescimento desportivo, social, cultural, político. Eu era um adolescente. E recordo para sempre aquele golo do Eusébio – que coisa absolutamente inesquecível. Eusébio e Simões: irmãos já nessa altura da Marinha Grande a Montevidéu. Sem estarmos à espera. Vivemos o momento da forma mais profunda”.