Por Rui Costa Neto, Investigador do Instituto Superior Técnico e do Centro de Estudos em Inovação Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento (IN+)
Dispondo de água doce, salgada ou residual, necessito apenas de um eletrolisador PEM e painéis fotovoltaicos para criar o meu próprio ecossistema energético sustentável para produzir toda a minha energia, e até vender a que sobrar aos meus vizinhos, alcançando independência e segurança energética. Através da eletrólise da água (decomposição da água através de corrente elétrica contínua), obtenho o meu próprio combustível que, tal como o oxigénio (O2), queima de forma ultra eficiente. O calor gerado da combustão vai permitir-me aquecer as águas quentes sanitárias e aquecer a minha casa no inverno. Adicionalmente, se tiver uma pilha de combustível em casa, posso fornecer-lhe o hidrogénio (H2) e fazer cogeração, obtendo eletricidade com metade da energia contida no H2, e gerando calor com a restante para climatizar o meu lar no inverno. Com o O2 proveniente do eletrolisador posso tratar os meus efluentes no local. O oxigénio proveniente do eletrolisador é praticamente 100% puro, cinco vezes mais concentrado que o oxigénio do ar. E se borbulhar O2 na minha fossa asséptica, consigo oxidar os resíduos orgânicos diluídos nas minhas águas residuais quatro vezes mais rapidamente, poupando energia à ETAR que recebe o meu efluente. Na prática, eu consigo ser autossuficiente em termos energéticos e ainda tratar grande parte dos meus efluentes, tudo localmente, de forma autónoma e dependendo apenas de mim e dos meus recursos locais. Investi os meus recursos financeiros em painéis solares e eletrolisador e fiquei praticamente autónomo e quase autossuficiente da rede elétrica.
Extrapolando esta realidade doméstica para uma indústria de cerâmica ou vidro, que necessita sujeitar os seus produtos a tratamentos térmicos com temperaturas entre os 1000°C e os 1600°C, é possível fazer exatamente o mesmo: depender energeticamente mais de si mesma. É neste contexto que surgem as virtudes da oxi-combustão, ou a chamada combustão assistida com O2 puro. Mas porquê, se existe tanto O2 no ar? O O2 no ar não é assim tão abundante, pois é cinco vezes mais diluído em azoto. Quando temos a combustão de qualquer gás, seja metano ou H2, o azoto é um gás “espectador” que dilui o calor gerado por qualquer chama, levando o calor dos gases de escape e tornando o processo de combustão menos eficiente. O calor de combustão de qualquer chama num forno de cerâmica vai para três locais do forno: cerca de 50% vai para a carga (o produto a cozer e suporte cerâmico), 15% para as paredes do forno, e 35% perde-se para a atmosfera. Como normalmente a temperatura dos gases de escape é superior a 180°C, não é possível condensar o vapor da água para água líquida e recuperar parte do calor. A oxi-combustão com o O2 proveniente da eletrólise vai permitir ter muito menos gases de exaustão e por isso minimizar as perdas em calor dos gases à saída do forno. O calor proveniente da chama vai, preferencialmente para o produto cozer no forno e suporte, ou para as paredes do forno que vão garantir a manutenção de uma boa inércia térmica no processo, reduzindo assim o consumo (quantidade de energia despendida por kg de produto) até 40%, dependendo da geometria e do tipo de forno. Em todas as reações químicas, e em particular as de combustão, temos de considerar sempre a parte termodinâmica do processo (baseada em reações de combustão obtidas sob condições padrão) e a parte cinética (que diz a que velocidade uma reação ocorre). Uma reação de combustão de qualquer gás com O2 é tudo menos uma reação que ocorre sob condições padrão devido à sua rápida cinética, porque não temos lá o azoto a atrapalhar, a diluir os gases e a ocupar espaço dentro do forno, traduzindo-se no final em ineficiência energética. A título de exemplo, os técnicos de oxi-corte queimam acetileno, propano ou butano, com O2 puro. Quando acendem o maçarico com O2 do ar, a chama de difusão tem uma temperatura de 500°C, quando abrem a válvula de O2 puro, a temperatura da chama de difusão sobe quase para 2100°C. Na prática, o que as indústrias necessitam fazer é utilizar o O2 proveniente da eletrólise para ter uma combustão mais eficiente, consumindo menos gás natural (redução até 40%), e obter uma temperatura de chama semelhante à que tinham com queimadores de ar. Com a combustão assistida com O2, estão a trocar gás natural que tem preços atuais elevadíssimos (175€/MWh, 8,5x mais altos do que há 2 anos), por O2 puro que vem da água e da energia solar, via eletrólise. Adicionalmente vão passar a emitir menos dióxido de carbono, porque consomem menos metano, e consequentemente vão pagar menos taxas carbónicas. Vão emitir também menos NOx (gás da combustão que promove as chuvas ácidas e desencadeia problemas respiratórios) porque também tem menos azoto na zona de combustão. Adicionalmente, as chamas de difusão enriquecidas com O2 puro apresentam mais componente radiativa e menos convectiva, o que garante que o calor é mais facilmente transferível para a carga nos fornos, garantindo uma melhor uniformidade e controle de temperatura.
Todas estas consequências positivas da combustão assistida com oxigénio só serão possíveis devido à instalação massiva e descentralizada que vamos ter de eletrolisadores, onde vamos ter a produção local de um combustível e de um oxidante a partir de água e, graças ao desenvolvimento da economia do hidrogénio a nível local e global, permitirá que as economias sejam mais descarbonizadas e seguras energeticamente.