A hiena e o coração


 O meu amigo José Anjos, escreveu um dia: “há quem veja uma hiena a comer/o coração de um homem/e a isso chame transplante”.


Só alguns quilómetros a sul da ponte é que o calor começa a morder-me como chacais insaciáveis. Fechado no meu casulo ambulante de ar condicionado, repito o gesto mecânico de conduzir de Lisboa a casa, surpreendendo-me sempre com qualquer coisa, seja com a cegonha que pousa no alto do poste da electricidade, aprumando o smoking de laço branco com o bico, ou com o espanto de nunca ter posto os pés na Batalha, não a de Leiria, Aljubarrota e tudo, mas a de aqui mesmo, antes de Montevil, a terriola que obriga a recordar as lutas entre miguelistas e absolutistas, embora já tenha sido tentado a espreitar o obelisco de Algalé, no Torrão, que homenageia os 26 presos aí executados numa das cenas mais bárbaras da nossa Guerra Civil. Parece que está fechado e é preciso pedir a alguém para abrir um portão.

E, de repente, ainda mal passei para lá de Alcochete e já tenho 26 cadáveres sentados no banco de trás. O meu amigo José Anjos, escreveu um dia: “há quem veja uma hiena a comer/o coração de um homem/e a isso chame transplante”. Acho que é mesmo do que preciso: um transplante. Por um lado, sinto-me, como direi?, gravemente saudável.

Por outro, começam a pesar-me as matilhas de chacais e de hienas que rodeiam os meus mortos, aqueles que já morreram mesmo e os que ainda estão para morrer. De tempos a tempo, digo para comigo mesmo: “Deixa-os! Deixa os teus mortos irem à sua vida!” Mas estou tão fechado na reinvenção da sua existência que é como uma hiena viesse comer-me o coração. No Ngorongoro, esse lugar incrível onde tudo se passa entre as paredes em círculo de um vulcão extinto, os chacais eram piores do que as hienas, mas na altura eu estava demasiado ocupado a perceber o mundo que nem dava pelas batidas do coração. O Anjos diz: “o gato comeu o pardal/para querer voar”. Na planície da noite de África, só voavam morcegos, e os chacais uivavam à lua e aos crescentes fantasmas invisíveis da minha infância.

A hiena e o coração


 O meu amigo José Anjos, escreveu um dia: “há quem veja uma hiena a comer/o coração de um homem/e a isso chame transplante”.


Só alguns quilómetros a sul da ponte é que o calor começa a morder-me como chacais insaciáveis. Fechado no meu casulo ambulante de ar condicionado, repito o gesto mecânico de conduzir de Lisboa a casa, surpreendendo-me sempre com qualquer coisa, seja com a cegonha que pousa no alto do poste da electricidade, aprumando o smoking de laço branco com o bico, ou com o espanto de nunca ter posto os pés na Batalha, não a de Leiria, Aljubarrota e tudo, mas a de aqui mesmo, antes de Montevil, a terriola que obriga a recordar as lutas entre miguelistas e absolutistas, embora já tenha sido tentado a espreitar o obelisco de Algalé, no Torrão, que homenageia os 26 presos aí executados numa das cenas mais bárbaras da nossa Guerra Civil. Parece que está fechado e é preciso pedir a alguém para abrir um portão.

E, de repente, ainda mal passei para lá de Alcochete e já tenho 26 cadáveres sentados no banco de trás. O meu amigo José Anjos, escreveu um dia: “há quem veja uma hiena a comer/o coração de um homem/e a isso chame transplante”. Acho que é mesmo do que preciso: um transplante. Por um lado, sinto-me, como direi?, gravemente saudável.

Por outro, começam a pesar-me as matilhas de chacais e de hienas que rodeiam os meus mortos, aqueles que já morreram mesmo e os que ainda estão para morrer. De tempos a tempo, digo para comigo mesmo: “Deixa-os! Deixa os teus mortos irem à sua vida!” Mas estou tão fechado na reinvenção da sua existência que é como uma hiena viesse comer-me o coração. No Ngorongoro, esse lugar incrível onde tudo se passa entre as paredes em círculo de um vulcão extinto, os chacais eram piores do que as hienas, mas na altura eu estava demasiado ocupado a perceber o mundo que nem dava pelas batidas do coração. O Anjos diz: “o gato comeu o pardal/para querer voar”. Na planície da noite de África, só voavam morcegos, e os chacais uivavam à lua e aos crescentes fantasmas invisíveis da minha infância.