Havia uma ronca


Há sons que se nos repetem pela vida e se transformam naquela espécie de colunas firmes sobre as quais a nossa velhice acabará por assentar.


De um lado e do outro da estrada estreita pinheiros mansos e eucaliptos nas suas alcofas de areia branca. Sem razão aparente, o céu zanga-se por cima da Comporta e do Carvalhal, sopra de norte um vento frio, um nevoeiro espesso tomba sobre a praia e sobre as pessoas que se mantêm corajosamente enfrentado os humores da natureza. Se houvesse por aqui um farol, como o da Barra da nossa adolescência, era a hora certa para que a ronca começasse a soar como fazia todas as noites, acompanhando o movimento do risco de luz no céu, de horizonte a horizonte. Há sons que se nos repetem pela vida e se transformam naquela espécie de colunas firmes sobre as quais a nossa velhice acabará por assentar. Mesmo que tenham desaparecido para sempre, com a naturalidade da morte dos avós. A ronca calou-se há muitos anos, lá na Barra que me espera daqui a uma semana. Substituíram-na por uma espécie de silvo irritante que talvez consiga ser escutado pelos navegantes mas não tem o mínimo de dignidade, sobretudo para aquele que é o segundo maior farol da Península Ibérica, com os seus 62 metros de altura. Houve tempos em que me ajudava a dormir no desconforto da tenda de campismo atafulhada de gente a cheirar a suor e a chulé e a camisolas de lã húmidas e ténis velhos. Um Verão qualquer tivemos um vizinho desagradável que, pelo raiar da aurora, punha a trabalhar o Cortina que deixava sempre estacionado frente à barraca, e saía para pescar por entre o metralhar da mecânica e o fumo infecto que brotava do tubo de escape. Amarrámos-lhe o para-choques às espias com um fio de sediela. Dessa vez, quando nos acordou por entre estampidos e o fedor da gasolina, levou a tenda com ele, de arrasto, e mais quem lá estava dentro, aos gritos. No dia seguinte deixou de ser nosso vizinho. Desapareceu. Pensava que nunca iria deixar saudades. Mas, subitamente, acreditem, deixou. Só não sei se dele se de nós…

 

Havia uma ronca


Há sons que se nos repetem pela vida e se transformam naquela espécie de colunas firmes sobre as quais a nossa velhice acabará por assentar.


De um lado e do outro da estrada estreita pinheiros mansos e eucaliptos nas suas alcofas de areia branca. Sem razão aparente, o céu zanga-se por cima da Comporta e do Carvalhal, sopra de norte um vento frio, um nevoeiro espesso tomba sobre a praia e sobre as pessoas que se mantêm corajosamente enfrentado os humores da natureza. Se houvesse por aqui um farol, como o da Barra da nossa adolescência, era a hora certa para que a ronca começasse a soar como fazia todas as noites, acompanhando o movimento do risco de luz no céu, de horizonte a horizonte. Há sons que se nos repetem pela vida e se transformam naquela espécie de colunas firmes sobre as quais a nossa velhice acabará por assentar. Mesmo que tenham desaparecido para sempre, com a naturalidade da morte dos avós. A ronca calou-se há muitos anos, lá na Barra que me espera daqui a uma semana. Substituíram-na por uma espécie de silvo irritante que talvez consiga ser escutado pelos navegantes mas não tem o mínimo de dignidade, sobretudo para aquele que é o segundo maior farol da Península Ibérica, com os seus 62 metros de altura. Houve tempos em que me ajudava a dormir no desconforto da tenda de campismo atafulhada de gente a cheirar a suor e a chulé e a camisolas de lã húmidas e ténis velhos. Um Verão qualquer tivemos um vizinho desagradável que, pelo raiar da aurora, punha a trabalhar o Cortina que deixava sempre estacionado frente à barraca, e saía para pescar por entre o metralhar da mecânica e o fumo infecto que brotava do tubo de escape. Amarrámos-lhe o para-choques às espias com um fio de sediela. Dessa vez, quando nos acordou por entre estampidos e o fedor da gasolina, levou a tenda com ele, de arrasto, e mais quem lá estava dentro, aos gritos. No dia seguinte deixou de ser nosso vizinho. Desapareceu. Pensava que nunca iria deixar saudades. Mas, subitamente, acreditem, deixou. Só não sei se dele se de nós…