Roger Scruton. Uma profunda necessidade de beleza

Roger Scruton. Uma profunda necessidade de beleza


Uma antologia das melhores colunas, críticas e comentários do filósofo inglês Roger Scruton (1944-2020) é agora dada à estampa.


Contra a Corrente (Edições 70), que reúne o que de melhor Roger Scruton escreveu nos seus contributos dispersos pela imprensa, serve como um fértil ocasião para apreciar “um dos maiores polemistas” da sua época, um intelectual conservador “essencial no debate nacional”, mas igualmente influente fora da Grã-Bretanha, alguém capaz de ousar a “coragem na defesa de causas impopulares”. Na extensa diversidade temática nas dezenas de textos agora coligidos, três topos relevam e atravessam diferentes capítulos, e tempos, da sua escrita/vida: a defesa da alta cultura, de uma educação capaz de se ater ao melhor que o espírito humano alcançou; a defesa da religião cristã, suas verdades eternas e de uma sociedade que se reja pelos valores por aquela sustentados; o conservadorismo, como suporte de leitura do mundo e das políticas a defender – num registo não raro espirituoso, elegante, provocador, erudito, irónico, contundente. Numa palavra, uma “masterclass de precisão literária”.

Latim, Grego, História Antiga, Matemática Avançada, Filosofia e Crítica Literária – eis um currículo tradicional, recomendado por pensadores antigos. Tudo matérias deliberadamente “irrelevantes”, “inúteis”, por isso mesmo tendencialmente afastadas do – da centralidade do – ensino e, no entanto, essenciais se queremos adentrar-nos na condição humana e, brinde supremo, se realmente estamos interessados em condimentar o apetite pela vida: “Quanto mais irrelevante um assunto mais duradouro é o benefício que ele confere. Os assuntos irrelevantes produzem compreensão da condição humana, ao obrigar o aluno a afastar-se dela. Eles também aumentam o apetite pela vida, ao fornecer material para reflexão e conversa”. Inclusivamente, se ao poder e influência o glutão pós-moderno se quisesse ater, bem faria em atentar que “o segredo que a civilização guardou” é o de aqueles provirem da “aquisição do conhecimento inútil” (e não dos “assuntos relevantes”).

As alterações na área da Educação, promovidas desde há várias décadas – e o alvo primeiro de Scruton, neste contexto, são os governos ingleses, muito em particular os trabalhistas, mas em uma tendência que se estenderia internacionalmente -, redundaram num “ataque às Humanidades”. O “positivo”, porém, fica-se pelo “facto”, sem a luz da “interpretação” e, porventura, à (ultra) “especialidade” (técnica) falte capacidade de tradução (comunicação) para lá dos colegas de ofício, a que acresce um aquém da liberdade (em um sentido mais forte): “Uma pessoa que conhece apenas engenharia ou microbiologia vê-se prejudicada pelo seu conhecimento, que lança pouca luz sobre a sua experiência e não leva a nenhuma nova comunicação com os seus semelhantes. Porém, uma pessoa com educação clássica ou literária habita um mundo transformado e vê significado onde outros vêem factos. Ela está equipada não apenas para mudar o mundo, mas para o interpretar. Logo, interpretá-lo-á a seu favor e tornar-se-á senhora da sua condição.” Assim, a mudança na educação, em curso nos decénios mais recentes, destruíra (ou brevemente destruirá) “a irrelevância majestosa que esse poder confere”. A educação é um fim em si mesmo pelo que a relação daquela com a prosperidade, que tendemos a ver proclamada, de certo jeito, hegemónico, nas nossas sociedades, deva ser, claramente, invertida: “não devemos valorizar a educação como meio para a prosperidade, mas a prosperidade como meio para a educação. Só assim é que as nossas prioridades estarão correctas, pois a educação, ao contrário da prosperidade, é um fim em si mesmo (…). Os académicos valorizam a instrução não pelos seus resultados económicos, mas por si mesma; ensinam não para fornecer uma vantagem pecuniária, mas pelo ensino mesmo; investigam não para estimular a economia, mas pela investigação mesma. Obviamente, a educação também é lucrativa. Mas, se olharmos muito fixamente para o lucro, perderemos de vista a coisa em si”. 

 

A vida da mente

O ensino não deveria resignar-se ao “discurso desleixado” que o aluno possa, inconsciente ou displicentemente, apresentar, nem, tão pouco, deve a escola limitar-se a ir de encontro ao que os discentes já conhecem e/ou com o qual se sentem confortáveis, não cumprindo, então, o papel de contribuir para alargar horizontes e mundos e, bem assim, possibilitar, ultima ratio, no plano social, qualquer mobilidade ascendente: “Todas as formas de saber que exigem aptidão ou trabalho, ou que aspiram a uma cultura superior à da rua, são rejeitadas como «elitistas» e encaixadas na margem do sistema. A professora de música que desejar ajudar a sua turma a entender a forma da sonata e o seu papel na sinfonia clássica será criticada pela «irrelevância» das suas aulas, que deveriam concentrar-se no tipo de música que os jovens preferem – os Oasis, por exemplo. A sugestão de que devemos ensinar os jovens a preferir algo melhor será rejeitada como arrogante e opressiva. Esse anti-elitismo tem o efeito inverso do pretendido, pois confina os jovens à posição social de que partem”. Nesta defesa do elitismo – entendido, aqui, como inserção, em profundidade e com proficiência, no melhor que o espírito humano, nas suas diferentes áreas (de conhecimento e expressão), atingiu – e de uma “alta cultura” podemos ver um Scruton irmanado com um George Steiner. Mas, o que se entende por “alta cultura” e, sobretudo, em que medida é ela indispensável? A alta cultura é “a auto-consciência de uma sociedade. Ela contém as obras de arte, literatura, erudição e filosofia que estabelecem um quadro de referência comum entre as pessoas educadas”; interessamo-nos, pois, por ela, na medida em que “estamos interessados na vida da mente, e confiamos a vida da mente a instituições, porque isso é um benefício social. Mesmo que só poucas pessoas sejam capazes de viver plenamente essa vida, todos nós beneficiamos dos seus resultados, na forma de conhecimento, tecnologia, entendimento legal e político, obras de arte, literatura e música.

A importância da vida do espírito pôde ser experimentada, de maneira radical, por Roger Scruton aquando dos seus encontros secretos, em catacumbas, em países de Leste, para continuar a transmitir a cultura, sendo professor de muitos que dissidiam dos regimes ditatoriais e totalitários em que viviam (ele que ajudou, pois, a estabelecer redes universitárias clandestinas na Europa Central): “Como visitante oriundo do mundo do divertimento, da pop e das histórias aos quadradinhos, espantou-me descobrir estudantes para quem palavras dedicadas a tais coisas eram palavras desperdiçadas, e que se sentavam naquelas pequenas bolsas de ar clandestinas a estudar literatura grega, filosofia alemã, teologia medieval e as óperas de Verdi e Wagner”. 

Há sede de beleza no humano e, atira o filósofo conservador, cada vez menos preocupação com esta, do político ao arquiteto, perpassando as artes, com a sociedade enredada, por consequência, em fealdade: “A verdade é que há uma profunda necessidade humana de beleza, e, se ignorarmos essa necessidade na arquitectura, os seus edifícios não durarão, pois as pessoas nunca se sentirão em casa neles (…) O que vemos, ouvimos e lemos afeta-nos no mais fundo do nosso ser. A partir do momento em que começarmos a celebrar a fealdade, tornamo-nos feios também. Assim como a arte e a arquitectura se degradaram, as nossas maneiras, os nossos relacionamentos e a nossa linguagem tornaram-se grosseiros. Sem a orientação oferecida pela beleza e pelo bom gosto, dificilmente nos relacionamos de maneira natural ou graciosa. A própria sociedade torna-se fraturada e atomizada (…). Quando uma bela melodia, uma paisagem sublime ou uma passagem de poesia requintada nos surge diante dos sentidos e da mente, sabemos que estamos em casa no mundo. A beleza é a voz que nos apazigua, a certeza de pertencermos a outros, a um lugar de partilha e consolação”.

 

Fome de beleza e de sagrado

Se, como Stephen Hawking argumenta, “as leis da física implicam que existem condições limitadoras nas quais os universos nascem pelo funcionamento dessas mesmas leis”, então a resposta para a pergunta “que[m] criou o Universo?” será “as leis da física”. Tal, todavia, leva o amante da sabedoria a uma nova e imediata questão: “mas que[m] criou as leis da física? Como é que essas leis estranhas e poderosas, e apenas essas leis, se aplicam ao mundo?”. Em realidade, acrescenta Scruton, “o que quase ninguém acredita é que exista uma única teoria científica racional que nos diga como o Universo emergiu do nada primitivo. Como pode haver tal coisa? Quando Isaac Newton propôs as suas leis da gravidade, fê-lo com um espírito de admiração e reverência diante da simplicidade e beleza do mundo físico. Ele não tinha dúvidas de que uma criação tão perfeita implicava um criador ainda mais perfeito”. Kant, por sua vez, referiria que “o nosso pensamento pode levar-nos de um ponto a outro ao longo da cadeia de acontecimentos, mas não nos pode levar até um ponto fora da cadeia, a partir do qual possamos pôr o problema de uma causa original. (…) O conceito de causa aplica-se aos objectos da experiência, ligando o passado ao futuro por meio de leis universais (…) Alguns dirão que a pergunta não tem resposta – que está nos limites ou para lá dos limites do pensamento humano. E outros dirão que a pergunta tem resposta, porém, não é respondida pela razão, mas sim pela fé – eu digo que talvez, no final, ambas as posições sejam a mesma. Era nisso que Kant acreditava. Acabamos por descobrir os limites da compreensão científica, disse ele. E além desses limites fica o reino da moralidade, do compromisso e da confiança”. 

Se o cientista Richard Dawkins vê na religião uma inimiga da humanidade, Scruton vê a religião como “mais apropriada para moderar os nossos instintos beligerantes” e “ao fazê-lo, nos pede que perdoemos àqueles que nos ofendem e que humildemente expiemos as nossas faltas”. “Tire-se a religião, como fizeram os nazis e os comunistas, e nada faremos para suprimir a busca do Lebensraum. Removemos simplesmente a principal fonte de misericórdia no coração humano comum e assim tornaremos a guerra impiedosa; o ateísmo encontrou a sua prova em Estalinegrado”.

Fome de beleza, mas também do sagrado: sem o sentido do sagrado – “lugar onde se fazem e renovam votos, onde o sofrimento é abraçado e aceite, e onde a vida da tribo é dotada de significado eterno” – é possível que os humanos há muito se tivessem extinguido – e “uma pessoa com sentido do sagrado pode levar uma vida consagrada, isto é, uma vida recebida e oferecida como dom”. Mas o benefício não é dado, pelo filósofo, também neste âmbito, propriamente à evolução, antes à poesia – “há uma quantidade preciosa de poesia dedicada à palavra «tu», e ela regista a necessidade humana de se ser absorvido por outro, de o ver como se nos chamasse além do horizonte sensorial. Esta experiência não é acessível à investigação científica. Depende de conceitos, como a liberdade, a responsabilidade e o eu, que não têm lugar na linguagem da ciência. A própria ideia de «tu» foge à rede das explicações”. (…) É tão absurdo dizer que o mundo não passa de ordem natural, como a física o descreve, quanto o dizer que a Mona Lisa não passa de um borrão de pigmentos. Tirar essa conclusão é o primeiro passo para compreender porquê e como vivemos num mundo de coisas sagradas”. A Roger Scruton nada como a sua inserção, mesmo que às escondidas, no mundo comunista, para uma percepção aguda desta realidade: “O comunismo tornou a mundividência científica no fundamento da ordem social: as pessoas eram consideradas «nada mais» do que a massa reunida dos seus instintos e necessidades. O seu objectivo era substituir a vida social por um cálculo frio de sobrevivência, para que as pessoas vivessem como átomos em competição, numa condição de absoluta inimizade e desconfiança. Tudo o mais poria em risco o controlo do partido. Em tais circunstâncias, as pessoas viviam num mundo de segredos, onde era perigoso revelar coisas (…) Não obstante, as vítimas do comunismo tentavam conservar as coisas que lhes eram sagradas e que lhes evocavam uma vida livre e responsável. A família era sagrada; era-o também a religião, fosse esta cristã ou judaica. E também o era o armazenamento clandestino de conhecimento – o conhecimento proibido da história da nação e a sua reivindicação de lealdade. Essas eram as coisas que as pessoas não trocavam e de que não prescindiam, mesmo quando o partido exigia que fossem traídas. Eram os tesouros consagrados, escondidos sob as cidades profanadas, onde brilhavam mais luminosamente no escuro. Assim nasceu um mundo clandestino de liberdade e verdade, onde já não era necessário, como descreveu Havel, «viver dentro da mentira»”. 

Ao longo de vários textos, alguns deles inéditos, quase todos inseridos nos melhores periódicos (The New York Times, The Spectator, The New Statesman, The Times, The Wall Street Journal, The Guardian, The Salisbury Review, Los Angeles Times, Forbes, The Daily Telegraph, etc.) e agora reunidos nesta coletânea, Contra a Corrente, Scruton faz a defesa da religião e civilização cristãs, lamenta a perda de hábitos e intensidade de vivência da mesma na sua Inglaterra natal, professa a fé nas suas verdades eternas – ainda que com uma visão muito particular do significado de ressurreição -, sem embargo de o seu conservadorismo, liberal na economia, reagir à defesa da justiça social no púlpito. 

 

“Reformar para conservar”

O que vem a ser o conservadorismo, na acepção pela qual se bate Roger Scruton? Que é, afinal, um conservador? “É uma tautologia dizer que um conservador é uma pessoa que quer conservar coisas. A pergunta é: que coisas? (…) Nós. No coração de toda a diligência conservadora, está o esforço para conservar uma determinada comunidade histórica. Em qualquer conflito, o conservador é aquele que toma partido por “nós” contra “eles” – não sabendo, mas confiando. É ele que procura o bem nas instituições, costumes e hábitos que herdou. É ele quem procura defender e perpetuar um sentimento instintivo de lealdade e, portanto, desconfia de experiências e inovações que põem em risco a lealdade”. Isto significa, igualmente que, visto por este prisma, “o conservadorismo não é tanto uma filosofia como um temperamento”. Definido, desta sorte, pela “positiva”, o conservadorismo pode, igualmente, ser interpretado a contrario, dizendo aquilo que ele não é: “Há também os rebeldes instintivos (…) que em todos os conflitos ficam do lado «deles» contra «nós», que troçam das lealdades comuns das pessoas comuns e que procuram principalmente o que há de mau nas instituições, costumes e hábitos que definem a sua comunidade histórica”. Chomsky encarna aqui a figura oposta à do conservador. Entre os fundadores do conservadorismo, Scruton sublinha, naturalmente, Reflexões sobre a Revolução Francesa, de Edmund Burke e a ideia de que “devemos «reformar para conservar»”. 

Embora Roger Scruton, e o conservadorismo pelo qual se bate, seja(m) acérrimo(s) defensor(es) do livre mercado não o faz(em) motivado(s) ou estribado(s) em “teorias económicas”, mas pretende(s) conferir-lhe um substracto moral, a saber, o de as pessoas, sem uma presença do Estado mais acentuada (como aquela proposta por “teorias económicas” não liberais), arcarem “com os custos das suas acções e a tornarem-se cidadãos responsáveis”, sem dependências. O problema, aqui, é, em nome da liberdade e responsabilidade, não se responder sobre o grau que estas, liberdade e responsabilidade, adquirem – em uma pessoa e em uma sociedade – sem que exista uma (minimamente densa) rede de protecção/segurança social que permita o seu exercício (bastante) – e um módico de igualdade de oportunidades entre os cidadãos. Ademais de o self made man ser o mito que ignora genes, cultura, herança, escolas e professores á disposição, entre tanto mais, nem cultiva uma ética, muito cristã, de resto, de gratidão, humildade, dom, prece. 

Indicando A riqueza das nações, de Adam Smith, como outro dos documentos fundadores do conservadorismo. Scruton rejeita, entretanto, aquilo a que Michael Sandel chamou (e que rejeitou também) “sociedade de mercado” (não confundir com “economia de mercado”), isto é, a extensão dos valores de mercado a todas as esferas da vida: “Os pensadores conservadores, geralmente, louvaram o mercado livre, mas não acham que os valores de mercado sejam os únicos valores existentes. A sua principal preocupação é com as características da sociedade em que os mercados têm pouco ou nenhum papel a desempenhar: educação, cultura, religião, casamento e família. Essas esferas de empreendimento social surgem não através da compra e venda, mas da apreciação do que não pode ser comprado e vendido: coisas como amor, lealdade, arte e saber, que não são meios para um fim, mas fins em si mesmos”. E sobre assuntos e personalidades que acompanhou, e acompanhámos ao longo dos anos, vê em Trump alguém sem as credenciais conservadoras, mas, sobretudo, como “um produto do declínio cultural que vai relegando rapidamente ao esquecimento a nossa herança artística e filosófica”. 

A finalizar, diga-se, o conservadorismo de Scruton nunca foi ensejo para qualquer menor carga inventiva, criatividade posta à prova quando o escritor decide criar, com a mulher, a sua própria empresa, cujo objecto é assim descrito em folheto:

“A principal consultoria rural pós-moderna da Grã-Bretanha, especialistas em manutenção paisagística, crítica literária, equitação, colocação de sebes, musicologia, composição tipográfica, publicação, muros de pedra solta, escrita, jornalismo, restauração dos campos, museus, composição, gestão de lagos, assuntos públicos, abate de árvores, debates pedantes, variedades raras de galinhas, ovelhas, sonhos; também tratamos de feno e palha.”