14 de junho de 1948. Os meninos à volta da fogueira e uma vaca a arder lá dentro

14 de junho de 1948. Os meninos à volta da fogueira e uma vaca a arder lá dentro


No Casal do Vareijão, na estrada para Queluz, um grupo de fedelhos resolveu brincar como fogo e causou uma desgraça.


Maganos, um grupo de fedelhos juntou-se logo pela manhã. Já se sabe, quando um bando de fedelhos se junta para macaquear asneirolas, as coisas não correm geralmente bem. É da natureza dos petizes. Um larga uma proposta, logo outro atira uma pior. Eram seis, no total. Iam a caminho da escola quando, de repente, a escola começou a tornar-se muito pouco interessante, quase repelente. Não se sabe ao certo qual dos meliantes decidiu que o melhor era ir brincar para um campo de palha seca, na quintarola de um vizinho, junto a uma barraca de madeira onde este deixava as vacas à noite para dormirem. Não se sabe, e também pouco importa, convenhamos. Não andamos aqui a encontrar um culpado concreto. Funcionaram em grupo, em grupo haveriam de ser castigados pela patifaria estúpida e coletiva.

E é assim mesmo que deve ser.

A notícia não trazia nomes. Para evitar represálias maiores porque, a verdade, é que a parvoeira tornou-se criminosa e deixou a população do Casal do Vareijão, uma terriola à beira da estrada para Queluz, furibunda e pronta a dar-lhes uma daquelas cargas de porradas da qual não viessem a esquecer-se até ao fim dos seus dias. Um deles (dos vizinhos, claro) apareceu armado de um varapau e jurou que lhes ia chegar a roupa ao pelo até que ficassem com o traseiro em carne viva de forma a que não pudessem sentar-se durante uma semana. Tiveram de acalmar o bicho e desarmá-lo do varapau não fosse ele dar largas ao seu instinto assassino.

Mas, bastante antes disso, pelas 11h30, já um dos pequenotes exibia orgulhoso uma caixa de fósforos e um maço de tabaco pilhado ao pai. Uma festa! Cigarros a sério em vez de barbas de milho. Um fartote. Cada um tratou de deitar mão ao seu cigarrinho e chupá-lo até ao filtro, tossindo convulsamente e ficando com os olhos vermelhos e fora das órbitas. Houve quem perguntasse a si próprio que diabo de prazer encontravam os adultos em tal vício de consequências tão desagradáveis. Os cigarros acabaram-se num abrir e fechar de olhos. Os fósforos é que não. Seriam eles a arma da desgraça subsequente.

Fogo! Um dos malandretes teve a ideia pouco esperta de fazer fogo de artifício com os amorfos. Isto é, pegava num, riscava-o na lista, e atirava-o já aceso para cima do companheiro mais próximo que tinha de se desviar para não ficar com uma marca qualquer de queimadura num braço ou numa perna.

O sol subiu no céu até que a sombra ficasse mais curta. Um calor de fazer estalar fachadas de igrejas e derreter alcatrão tomou conta do fim da manhã daquele quase, quase Verão. O simples pensamento de saber os seus colegas na sala de aula, a decorar as bases da aritmética e os verbos irregulares, dava ao nosso grupo de capitães da erva-seca uma sensação de liberdade que se aproximava velozmente da total inconsciência. Um deles teve a ideia tão brilhante como tola de acenderem uma fogueira para poder saltarem sobre as chamas como se estivessem no dia de São João. Mal o idealizaram, mal o fizeram. Juntaram ramos das árvores à volta, misturaram-nos com palha, e tascaram-lhes fogo. Mal as chamas brotaram, perceberam que estavam metidos num sarilho e dos grandes. O fogo não tardou a declarar a sua independência e a tornar-se incontrolável.

Uma súbita rajada de vento atirou as labaredas para o chão de erva seca. Em poucos segundos, a inocente fogueira transformou-se num incêndio. E o medo tomou conta do coração dos infelizes idiotas.

O fogo não costuma ter contemplações quando se encontra à solta. Percorreu em segundos o caminho do barracão vizinho e começou a trepar pelas paredes até ao teto. Os miúdos, perdidos, não sabiam o que fazer. Um correu tão depressa como pôde em direção ao Casal do Vareijão. Já era caso para bombeiros. Fizeram telefonemas ansiosos. Contactou-se Algés, que tinha material mais eficiente, e os voluntários chegaram ao local do acidente o mais depressa possível ao som das sirenes e dos gritos da populaça. Os sapadores da 2.ª Companhia deitaram mãos à obra na tentativa de dominarem o fogo. O caos instalara-se. Os miúdos desapareceram da vista dos adultos como se, numa terra tão pequena como aquela, tivessem alguma possibilidade de não virem a ser apanhados mais cedo ao mais tarde.

O homenzinho a quem o barracão pertencia, arrancava cabelos desesperado. Não era apenas o lugar onde guardava o feno e dava dormida às vacas. No primeiro andar montara os seus tarecos e vivia ali como podia já que os proventos eram escassos.

O vento tornou-se cada vez mais forte e as rajadas tornaram baldados os esforços dos soldados da paz. Por volta das quatro da tarde, o incêndio foi finalmente considerado extinto. Imagem triste por entre uma paisagem plácida. A brincadeira infantil e degradante dos fósforos atirara o infeliz camponês para a indigência. Por entre a montanha de cinzas, os sapadores encontraram o bisonho cadáver totalmente esturricado de uma vaca cujos mugidos de pavor tinham sido absorvidos pelos gritos histéricos da populaça

A carcaça carbonizada dava ao triste espetáculo um aspeto ainda mais deprimente. 

A polícia chegou ao local para tomar conta da ocorrência. A casa pertencia ao sr. Joaquim Sabino que a tinha arrendado, bem como ao terreno em redor, ao sr. Bartolomeu Luís Lopes, o indivíduo que estava decididamente metido em sarilhos. Ele e a miudagem atoleimada que, a essa hora, se arrependia amargamente de ter decidido fazer gazeta. Mas, enfim, eram petizes, ninguém os ia atirar para o fundo de um cárcere. Os paizinhos que fossem preparando os bolsos e as cadernetas da Caixa Geral de Depósitos. A brincadeira iria sair cara.