A quantas voltas ao mundo de carro equivalem, em termos de emissões de gases com efeitos de estufa, as horas de anestesia num hospital? A pergunta fora da caixa foi colocada por uma equipa do Hospital de São João, no Porto, e a resposta é um dos gatilhos para a mudança no projeto “Bloco Verde”. E foi uma surpresa mesmo para quem trabalha diariamente com gases anestésicos. Perceberam que, com as práticas em vigor, as cerca de 20 mil anestesias por ano com recurso a gases inalatórios no hospital equivaliam, só ali, ao CO2 emitido por 24,4 milhões de quilómetros percorridos de carro. Ou a 612 voltas ao mundo, tomando por medida 40 mil quilómetros de passeio. A boa notícia? Podem ser reduzidas passando a controlar melhor a utilização dos fármacos e o fluxo dos gases com mais impacto ambiental, sem impacto na atividade clínica.
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Inês Araújo Correia, anestesiologista, é um dos rostos do projeto que, passe a expressão, ganhou gás nos últimos meses. E faz as contas. “ Passaremos de 612 voltas para 282 voltas só no nosso centro hospitalar”, diz ao i. “Quando apresentamos os resultados, muitas vezes as pessoas reagem com surpresa, sobretudo quando nos pomos a fazer estas comparações. Sabemos que tem impacto, mas não era algo de que se falasse nos hospitais ou quando eu era interna”.
Fechando a matemática, as emissões dos gases anestésicos usados num ano no hospital equivalem a uma produção de 2.639.722 Kg de CO2. Com a alteração da técnica anestésica para anestesia com baixos fluxos será de esperar uma diminuição da geração de CO2 (1.417.629 Kg) o que irá equivaler a 11.315.715 Km percorridos. São três os gases anestésicos usados nos hospitais: o protóxido de azoto, que destruía diretamente a camada de ozono, tem sido abandonado, explica Inês Araújo Correia. Há depois o sevoflurano e desflurano, tendo o segundo maior impacto, o que vão agora afinar._“Somos 100 anestesiologistas no hospital, pelo que é uma mudança que leva tempo e queremos avaliar os resultados ao fim de seis meses, percebendo qual foi o resultado desta maior consciencialização”.
A equipa da “Anestesia Sustentável” é um dos braços do projeto Bloco Verde, agora formalizado no São João, mas não se fica por aqui. São várias as vertentes e uma delas foi o pontapé de saída: em julho de 2020, em plena pandemia, houve luz verde do conselho de administração para começar a substituir as batas cirúrgicas descartáveis por batas reutilizáveis, pondo fim a anos de usar e deitar fora.
Susana Vargas, diretora do Bloco Operatório Central do CHUS, explica ao i que, além da poupança ambiental e económica, mesmo com o custo de terem de ser lavadas e esterilizadas, o feedback das equipas tem sido de que as novas batas são mais confortáveis. “Uma das coisas de que os profissionais se queixam é do calor das batas descartáveis durante a cirurgia. O papel é grosso, não é poroso, e com o stress do ambiente cirúrgico provocam imenso calor. Estas batas são de outro material e as pessoas sentem-se mais frescas. Podem ser reutilizadas 74 vezes. Temos dois tipos de batas, umas são reforçadas, e portanto em termos de proteção não há diferença”, assegura, sublinhando que os resultados mostraram que valia a pena investir.
Em abril do ano passado, a comparação de custos entre as batas reutilizáveis simples e as descartáveis demonstrou uma poupança de 34% nos custos no bloco central do hospital, que tem 12 salas de operação. “As batas reforçadas são mais caras e utilizadas em cirurgias específicas. Mesmo assim, a poupança ronda os 11%”, diz a responsável.
Já este ano, outra mudança começou a ganhar forma, primeiro com um projeto-piloto em duas salas de operação do Bloco Central e agora estendido a todas: lixo ‘comum’ das salas operatórias como papel e plástico das embalagens abertas nos blocos, que antes ia todo para incineração, passou a ser separado para reciclagem. Mesmo com o despacho de 1996 que classifica como resíduos de risco biológico todo o lixo proveniente de bloco operatórios, a responsável explica que tiveram luz verde para avançar pois estão essencialmente a falar de material de acondicionamento de embalagens, como caixas de cartão e têxtil sintético que não tem contacto com doentes.
E também aqui foi surpreendente a quantidade de lixo que produziam e que até aqui não era reciclado: “Numa semana, só em duas das nossas salas, conseguimos separar 20 quilos de plástico e papel. Estamos a falar de material que indo para reciclagem pode ser reaproveitado mas, além disso, reduz os custos do hospital, porque quando vai para incineração tem custos. Começámos em fevereiro e agora já o fazemos em todas as salas”.
Ainda não há um balanço, mas extrapolando os resultados do “teste” nas duas salas, rapidamente se chega a uma tonelada de papel e plástico reciclado. “É fazer as contas: se em duas salas numa semana tínhamos 20 quilos, é seis vezes mais, são 120 quilos por semana”, diz Susana Vargas. Ao fim de dois meses, podem chegar facilmente a uma tonelada de lixo que passa a ser reciclado e, a 80 cêntimos por quilo, uma poupança em incineração de várias centenas de euros.
Para diminuir o recurso a embalagens com invólucros têxteis, material que não é biodegradável, outro passo consiste por comprar caixas metálicas para acondicionar os materiais cirúrgicos, o que já estão a começar a fazer. A reciclagem de ampolas de vidro de medicamento é outra área em que pretendem intervir, bem como regressar ao reprocessamento de dispositivos de uso único para reutilização.
Susana Vargas nota que a atividade parou por falta de homologação superior mas também por, em termos de esterilização, não haver capacidade suficiente no hospital, aguardando-se uma clarificação a nível nacional de como e que materiais reaproveitar.
“Sempre fui muito atenta ao ambiente e ao dano provocado pelas coisas que fazemos no dia-a-dia. Quando entrei para a direção do bloco operatório, há dois anos, foi uma das minhas preocupações. Por exemplo no uso de batas reutilizáveis, o Hospital de Santo António foi pioneiro e em 2019 estive num hospital privado em Espanha onde tudo o que é usado no bloco operatório já é reutilizável. É um longo caminho e vamos dando um passo de cada vez”, diz a responsável.
Reduzir, Reutilizar, Repensar, Responsabilizar e Reciclar
É também essa a convicção de Inês Araújo Correia, que resume os 5 R’s do projeto: Reduzir, Reutilizar, Repensar, Responsabilizar e Reciclar. “Passa muito por todas estas valências. Sempre tive a preocupação em casa de fazer reciclagem, de tentar ter no dia-a-dia o menor impacto ambiental possível. Claro que os últimos anos de pandemia trouxeram uma maior sensibilização, com todos os materiais de proteção. A quantidade de lixo produzida num hospital é colossal”, resume. “Penso que a mudança passa muito por percebermos que podemos usar só o que é necessário. Os preços dos equipamentos de uso único tornaram a sua utilização massiva e temos de voltar um pouco atrás, em diálogo com a indústria, promovendo uma redução do plástico. Acredito que isto se pode fazer havendo dentro dos serviços grupos de pessoas que se preocupem com o impacto ambiental e canalizem as melhores práticas”, sublinha.