Poesia italiana. “Todos nós vivemos de estrelas extintas”

Poesia italiana. “Todos nós vivemos de estrelas extintas”


Rejeitada a sinalização “poesia feminina”, uma antologia de 13 autoras italianas consegue ser precisamente isso: uma selecção de alguma da melhor poesia italiana do século XX.


“Estou sozinha/ e revirei os espelhos”, escreve a poeta italiana Goliarda Sapienza. Eis a condição permanente desse ser que faz da sua própria invenção o regime do mais honesto confronto com o mundo. Se é tão comum, hoje, dar pelo discurso poético entre formas mais ou menos delirantes e de conteúdo mistificador, um bom princípio de actuação crítica passa por reaver uma certa clareza despindo a poesia das ideias que sobre ela se fazem, de uma certa coerção que a obriga a funcionar de acordo com os modos excessivos de um grande dispêndio de artifícios metaliterários, “um caos onírico-enciclopédico que se torna obsessão e incrustação rococó” (Berardinelli), aquilo que o crítico italiano Giovanni Giudici definiu como uma crise da comunicação usual forçada pelas vanguardas, impondo significantes que não veiculam significados. Em defesa dos poetas que, no século XX, se agarraram à instituição-tradição, este autor inscreveu-se numa polémica anti-maneirista e anti-vanguardista a favor de um “grande estilo”, capaz de manter relações com a tradição, com a língua comum e, portanto, com um público de leitores diverso da seita dos iniciados. E é um bom mote para mergulhar numa extraordinária antologia que nos chega pela mão de João Coles, com selo da Sr Teste, e que, estando muito provavelmente a leste das disputas que se deram há décadas e foram animando o ambiente bastante tenso e profícuo da cena literária italiana, não deixa de nos oferecer uma perspectiva bastante forte de uma poesia que se sustenta não da força de um artesanato estilístico, mas se serve da língua comum e humilhada, levando-a a modulações de canto, num discurso quotidiano vestido de discurso poético, alheio a qualquer garantia estética a priori. Vejamos um outro poema, bastante conciso, e desinteressado do teor esotérico que se manifesta em tanta da poesia contemporânea. “Não sabia que a escuridão/ não é negra/ que o dia/ não é branco/ que a luz/ cega/ e que parar é correr/ ainda/ mais”. Esta é uma poesia no limite do silêncio, dispensando a massa de armamentos sofisticados com que se reforça as poéticas no regime maneirista, o recurso ao mosaico e pastiche, inserções-citação e colagens, sintaxe alógica, astúcias gráfico-visuais, etc etc. “É isso que a vanguarda, em parte por vezo provocatório, queria, porque, como se sabe, a exacerbação da técnica leva sempre à dissolução da forma”, vinca Giudici. Aqui, pelo contrário, somos confrontados com uma poesia sucinta, directa, firme, tantas vezes crua, cortante. Perante uma obra como esta “Antologia de Poesia Italiana”, a qual, estranhamente, dispensa qualquer prefácio ou apresentação, e que se basta com as notas redigidas pelo tradutor para cada uma das 13 poetas, as quais se cingem praticamente à recolha de alguns dados biográficos, sem o menor apontamento de ordem crítica, nos força, apesar de tudo, e pela coerência dos poemas escolhidos, a reconhecer um certo programa. Apetece lembrar as palavras do escritor e editor de livros muito raros Pierre Bettencourt, que iniciava um texto a propósito de Michaux deste modo: “Ninguém se pode gabar de ser artista; é muito fácil e é muito pouco. Muito aquém do que deveria ser-se.” Em seu entender, tanto vale o risco como vale o homem, “porque os riscos que uma pessoa corre com a moral, o ridículo ou o tédio são menores que os incorridos com a própria vida”.

Entre mulher e amante, deparamo-nos nestas páginas com um vigor bem mais próximo de uma atitude clássica, ou de um modernismo dolorido, num estilo despojado e que é o avesso da audácia exibicionista, do arbítrio gramatical e de experimentalismos. Veja-se este outro poema de Sapienza: “Está previsto./ A tua vida/ à beira-mar/ a minha morte/ no fundo do poço./ Está previsto,/ a mesa posta/ com copos e com facas./ Está previsto/ há muito tempo/ o teu regresso ao meu/ poço de águas pluviais.” E se estamos sempre a ser remetidos para esse debate entre a consciência de si, um ressentimento que sinaliza uma necessidade de ajustar contas com a vida, há outra frase de Bettencourt que se impõe face ao quadro que aqui se vai desvelando: “Ah! Dêem-me uma prisão, e nela, bem isolado dos outros, perigoso só para mim, à rédea solta me hei-de dedicar à raiva de ser eu mesmo.” Este autor também nos alerta contra esses outros artistas em que tropeçamos tanto: “são aos montes os farsantes e negociantes que têm montado as suas barracas no Templo, e a distância entre o homem e a obra, mesmo no tocante aos mais ousados, depressa reduziu esta última à condição de jogo gratuito”. É curioso que uma antologia com este carácter surja no catálogo de uma editora que tem inscrito nos seus livros, na sua fisionomia, todo um entendimento do novo regime mediático, com os seus ciclos de repetição, com o seu apelo a um design em que a arte deve corresponder aos imperativos do decorativo, dos objectos de eleição como adereços e suplementos de um certo regime cultural para se exibir. Se há editora instagramável é esta, onde todos os cuidados vão para o grafismo, e em que os textos funcionam mais enquanto resquícios, surgem como se entre aspas, e intervencionados por artistas (o que sempre permite sacar mais algum em tiragens especiais que aguçam aquele fetichismo da mercadoria produzindo itens coleccionáveis), como ruínas em homenagem às antigas aspirações, miragens, precipitações. É uma editora afeita a um certo langor de um mundo perdido. E segunda essa disposição, assentam-lhe bem estes versos de Cristina Campo: “Devota como um ramo/ curvado por muitas neves/ alegre como uma fogueira/ em colinas de esquecimento,/ sobre afiadíssimas lâminas/ numa malha branca de urtigas,/ ensinar-te-ei, minha alma,/ este passo de adeus…” É este último passo o que fica a ressoar, esses gestos que se inscrevem segundo um enredo meramente estético, em que toda a beleza é convocada para assinalar o que resta de um certo ritual antigo, incapaz de fazer mais do que evocar fantasmas. Mesmo quando os autores são ainda vivos, estamos sempre na presença de fantasmas. A nível editorial, ao invés de um compromisso com as fórmulas do consumo e da traficância imediatista, seria preciso um passo noutra direcção, um único passo que desse para entrar nesses espaços amaldiçoados e revirar as coisas, impôs uma visão que nos devolvesse à carne e à vida enquanto risco permanente. Mas a este respeito, a própria antologia se for resgatada ao arranjo encantador das estantes, com os seus pequenos poemas, as suas anotações fulgurantes, que não passam de simples facturas de existências que vão muito além da superfície, devolvem-nos a uma intensidade que tantos livros apagam, nessa sua realização enquanto odres mortuários. “O escuro mel que cheiras/ dentro de diáfanos vasos/ sob mil e seicentos anos de lava –// hei-de reconhecer-te pelo imortal/ silêncio.” Se é certo que “todos nós vivemos de estrelas extintas”, como nos diz Cristina Campo, é preciso superar um certo enlevo ligado à pose, ao regime daquilo que se consome para efeitos de exibição, de outro modo, ficaremos como mosquitos aprisionados no âmbar, em hibernação perpétua nesse regime das selfies, incapazes de nos subtrair à lógica da identidade como algo que nos empareda, nos torna inconscientes e inexistentes. Uns versos de Maria Luiza Spaziani conseguem ser bastante eloquentes a este respeito: “A indiferença é um inferno sem chamas,/ lembra-te disso quando escolheres entre mil cores/ o teu cinzento fatal.// Se o mundo não faz sentido,/ tua somente é a culpa”. Hoje, cada vez mais aparecemos como actores nas nossas vidas, representando o que deveria ser autêntico. E a este respeito é muitíssimo ilustrativo este poema de Patrizia Cavalli: “Tenho de fingir vulgaridade e traição/ para me sentar no sofá/ para retribuir olhares; explicando/ os treze vincos de um pensamento/ decifro a cauta sentença que desce/ pelas sentimentais palavras que pronuncio/ que pronuncio fingindo também o amor/ e na ficção encontro o ponto perfeito/ o único possível de certeza”.

E à laia de comentário a esses que gostam de agências para tudo, de explicações e de palavrórios, de regimes ao monte para os que nasceram para ser tosquiados, temos também um sinal de recusa firme em inscrever-se de acordo com programas de assalto à tendência do momento, ao esquema provisório que serve a alguns para obterem os seus quinze minutos: “Oh feminista, sonho de poder,/ falas de mulheres e tornas-te genérica,/ formas o teu exército com as assustadas/ que assustas ainda mais e te são gratas.” Com uma força de espírito que se agarra ao sentido mais cru das palavras, Cavalli serve de exemplo a tantos poetas a quem falta a coragem de abandonarem as suas obscuridades maneiristas por receio de exporem a vacuidade dos seus juízos. É ela quem formula da forma mais incisiva a ânsia dessa relação que se deseja firmar entre quem escreve e quem lê, como entre amantes, numa reciprocidade desafiadora, tendo pelo meio aquela distância que permite as sucessivas metamorfoses com que se enleiam e se esquivam: “Ah, sonha-me sem ordem e esquece/ todos os nomes, faz de mim estrela única:/ não quero um nome, mas constelar-te os olhos,/ ser teu firmamento e vista fechada,/ além das pálpebras, luzir para ti no escuro/ tua maravilha e minha, imaginada.”

Seja por que caminhos nos decidamos, enquanto leitores a penetrar, explorando esses “laços inquebrantáveis de carne e de memórias”, o certo é que esta antologia se nos impõe num recuo ao sentido, àquele regime em que o poético se força a uma resistência ao provisório e ao mero consumo, denunciando essas “vozes velhacamente inventadas” que se apropriaram do tom geral daquilo que temos por poesia. A verdade é que os poemas há muito têm vindo a servir um embotamento da fala, e em vez de se aliarem a uma intensificação da percepção, só se concebem enquanto esquemas lúdicos de enredar o leitor, de transportá-lo para o labirinto do maneirismo, numa exacerbação da técnica sem outro fito que promover o jogo de palavras que já não nos diz nada. Aqui, regressamos a algo de mais humano e necessário, à tradição da carne e do suspiro, sendo que os poemas aqui reunidos vão renunciando à busca consciente do efeito, para retomar aquele princípio de que toda a escrita não sustentada pela paixão é inútil. A força destes momentos poéticos tem aquela inocência escandalosa de que falava Leopardi, por não procurar efeitos, por nos entregar a sua experiência por meio de palavras nuas, demonstrando uma devoção séria e absorta pelos aspectos em que o mundo se revela. Leia-se o dístico de Elsa Morante que encerra a antologia: “Eu sou o ponto amargo das oscilações/ entre as Luas e as marés.” Em tantas das páginas desta recolha, o que nos sacode e até nos livra desse ambiente de escórias líricas que apenas turvam a perspectiva, é uma mesma coragem desarmada, um desassombro que, no limite, arrisca uma espécie de canhestro despudor, entre estridores e asperezas, deixando claro que o trauma não parece absorvível nem traduzível num programa meramente literário. O efeito de conjunto que esta antologia promove, faz-nos pensar numa espécie de maturidade esplendente, em que nos é dito que as palavras são coisas frágeis, mas que da sua frágil realidade podemos resgatar um sentido profundo de ligação ao mundo. Nestes poemas há uma forte capacidade de identificação com todos os aspectos da vida vivida, e, por não quererem fazer das suas experiências matéria estética, a realidade que alcançam vibra em nós, e nos incitam a perseguir um sentido do ilimitado: “Voltemos a acumular a vida/ não como o avarento/ que dela deverá separar-se à força/ mas como a criança/ que para perseguir uma abelha/ se esquece do seu tesouro de seixos” (Lalla Romano).