Esta é a história da pequena Carolina, mas também é parte da história mais recente dos seus pais e ainda de alguns “anjos da guarda” que não desistiram de acreditar que com o bem, mais bem pode acontecer.
A Carolina só é pequena porque apenas tem seis anos, fora isso, é uma criança perfeitamente dentro da média de crescimento para a sua idade, com um cabelo lindo, encaracolado e comprido e um sorriso que desarma qualquer pessoa que a conheça. Podia ser minha filha, mas quis o destino que fosse o fruto de uma história de amor entre dois jovens fragilizados, com demasiada bagagem para a idade que tinham.
Tanto a mãe como o pai viviam na rua, quando souberam que tinham que lidar com uma gravidez, a somar a todas as restantes dificuldades que sofriam nos seus dias e para as quais não tinham capacidade para encontrar uma saída. Algumas pessoas não compreendem a incapacidade destes homens e mulheres em situação vulnerável e pensam que é falta de vontade para mudar ou para melhorar a sua vida, quando, na verdade, se trata de uma paralisação perante a adversidade que é maior do que o próprio sujeito que tem que a ultrapassar. A vida destas pessoas é como um furacão violento que as suga para o centro, onde vão rodopiando ao sabor da força centrífuga do ar, quase que dormentes, atordoados com os impactos dos objetos que os atingem. Não há dor física que não aguentem e a dor emocional é algo que, pelo sofrimento que causa e pelo desespero da solidão, aprendem a ignorar, recorrendo a substâncias tóxicas, ou simplesmente bloqueando a afetividade. Ficam reféns desta condição, encurralando as emoções debaixo da pele, num espaço inacessível para si próprios e para quem tente aproximar-se. Mas nem assim deixam de ser seres humanos com sentimentos e com conhecimento profundo da dor traumática que os empurra em direções angustiantes, rumo ao abismo.
Regressemos aos dois jovens que se encontravam na rua, ambos por terem sofrido maus tratos dos seus pais e dos quais fugiram sem terem um teto que os abrigasse. A ele calhou-lhe uma mãe toxicodependente e um pai ausente, a ela uma mãe que não se sabia organizar emocionalmente, nem tampouco com a escassez de dinheiro que se ia fazendo sentir. Até que passaram da condição de filhos desafortunados para a condição de futuros pais.
Numa ida ao hospital, foram referenciados e encaminhados para a Santa Casa da Misericórdia que, por sua vez, recorreu a uma IPSS (instituição particular de solidariedade social), para que este jovem casal tivesse um apoio mais frequente e incisivo. Da rua passaram para um quarto que partilharam após o nascimento da bebé e até esta ter completado dois anos. Para pagarem o quarto, tiveram que começar a procurar trabalho, sempre com a ajuda das voluntárias que “adotaram” estes dois seres e a caminho de adotarem mais um, depois do nascimento. Quando a Carolina nasceu, o “paizaço”- é assim que as voluntárias descrevem este homem, parco em palavras e sempre muito reservado – ficava no quarto com a bebé, enquanto que a mãe ia trabalhar para um lar de idosos. Dois anos foi o tempo que aquelas três almas passaram confinadas entre quatro paredes, com a logística própria de quem tem uma bebé e sujeitos às turbulências inerentes à mudança que sofriam.
Aos dois anos, a pequena Carolina foi, finalmente, para a creche, e, por seu lado, o pai arranjou trabalho numa junta de freguesia. Mudaram-se para um apartamento, todos juntos. Hoje, a família conta com a mãe, com o pai e com a Carolina, vivem debaixo de um teto e todos os dias a Carolina vai à escola. Está no primeiro ano e, dizem as voluntárias, que não se está a dar nada mal. Pelo contrário…
Esta história real que acabei de escrever foi testemunhada por várias voluntárias de uma associação e que, ainda hoje, continuam a acompanhar esta família para suavizar as dificuldades agrestes que continuam a fazer parte dos seus dias. Há vidas muito difíceis, em que só nos resta contribuir com o que podemos para proporcionar um pouco mais de conforto e amor.
Durante quase sete anos, uma equipa de voluntárias, que por acaso eram só mulheres, esteve presente na vida destes dois jovens, hoje com 27 e 28 anos, e na vida de Carolina, ainda antes de nascer. No início estavam presentes todas as semanas, motivando o casal para uma nova fase, ajudando na procura de trabalho, acompanhando a mãe nas consultas pré-natais e nas consultas pediátricas, após o nascimento da menina. Enquanto estiveram no quarto, estas mulheres passavam por lá para assegurar que tinham as condições mínimas de higiene e de alimentação. Quando se mudaram para o apartamento, ensinaram e ajudaram a organizar a casa, capacitando-os com autonomia nas lides domésticas.
As visitas foram sendo mais espaçadas, à medida que a família evidenciava sinais de adaptação às novas condições e de sustentabilidade emocional para superar as dificuldades. Os cabazes alimentares e de higiene continuam a ser entregues e a relação que se construiu confirma-se na presença dos pais da Carolina em todos os eventos que a associação promove, seja uma ida ao circo, ao cinema, um picnic…
Não há nada como retratarmos situações reais para se demonstrar o impacto que cada um de nós, a troco de nada, a não ser de boa consciência, pode ter na vida de outros e de outros que estão porvir.
A Carolina é fruto de duas pessoas que, no caos e na desgraça, se encontraram, se amaram, se ultrapassaram e que foram abençoadas, no seu caminho, com outras pessoas que se interessaram, que acreditaram, que se esforçaram e que estiveram lá para amparar, para dar amor e para fazer parte da vida deles.
A todos os que desvalorizam os voluntários e que não compreendem o que leva alguém a sair de casa num dia de chuva forte, com temperaturas reduzidas e em pleno inverno, lembrem-se do que é amar, cuidar e assumir a responsabilidade alheia.
Aqui fica o meu contributo a todos os cidadãos que dão o que de mais precioso têm em benefício dos outros: o tempo, que não tem preço.