Um louco na colina


Da minha varanda não vejo campos de morangos para sempre, mas tenho a certeza de que  a vida se torna mais fácil se fechar os olhos e confundir cá dentro tudo o que vi.


Chove. choveu sempre em Liverpool, nas várias vezes em que lá estive. Céu cinzento de uma cidade escura. Não sei se o rio que vejo da minha varanda é maior do que o Mersey, mas sei que este rio, que é, para mim, o rio da aldeia de Caeiro, me faz pensar em tudo e estar ao pé dele não é só estar ao pé dele, mas ir através dele até ao mundo. Talvez o barbeiro da Rua Rui Salema, onde moro, também goste de mostrar fotografias de todas as cabeças que conheceu, e talvez na esquina com a Travessa do Rato esteja um banqueiro sentado no seu automóvel e as crianças se riam dele nas suas costas. São coisas que podem acontecer em qualquer parte, da Rua Rui Salema a Penny Lane. Da minha varanda não vejo campos de morangos para sempre, mas tenho a certeza de que  a vida se torna mais fácil se fechar os olhos e confundir cá dentro tudo o que vi. Talvez no pátio da Igreja da Misericórdia haja uma mulher solitária apanhando do chão o arroz que sobrou do casamento da véspera. Toda essa gente solitária. De onde vêm, todos eles? A que lugar pertencem, todos eles? Se calhar hoje, quarta-feira, pelas cinco da manhã, uma rapariguinha tenha fechado em silêncio a porta do seu quarto na Rua dos Almocreves, descido as escadas até à cozinha apertando o lenço entre as mãos, aberto a porta das traseiras, e fugido de casa deixando uma nota onde esperava escrever mais do que escreveu. Está livre, agora. Por mais que a mãe acorde o pai que ressona com o grito aflito: “A nossa menina desapareceu!” São coisas que podem acontecer em todas as casas, não apenas aqui, à beira Sado, como já disse, o rio da aldeia de Caeiro. Pode ser que a minha varanda seja uma colina e que nela permaneça, dia após dia, um homem de sorriso idiota que  ninguém quer conhecer porque sabem que não passa de um louco. Mas ele vê o sol que se põe e os seus olhos observam o mundo que gira. Talvez até seja eu, aqui na colina, o homem das mil vozes que continuará sempre a escrever muito alto. Só escrevendo alto é que conseguimos que nos ouçam.

Um louco na colina


Da minha varanda não vejo campos de morangos para sempre, mas tenho a certeza de que  a vida se torna mais fácil se fechar os olhos e confundir cá dentro tudo o que vi.


Chove. choveu sempre em Liverpool, nas várias vezes em que lá estive. Céu cinzento de uma cidade escura. Não sei se o rio que vejo da minha varanda é maior do que o Mersey, mas sei que este rio, que é, para mim, o rio da aldeia de Caeiro, me faz pensar em tudo e estar ao pé dele não é só estar ao pé dele, mas ir através dele até ao mundo. Talvez o barbeiro da Rua Rui Salema, onde moro, também goste de mostrar fotografias de todas as cabeças que conheceu, e talvez na esquina com a Travessa do Rato esteja um banqueiro sentado no seu automóvel e as crianças se riam dele nas suas costas. São coisas que podem acontecer em qualquer parte, da Rua Rui Salema a Penny Lane. Da minha varanda não vejo campos de morangos para sempre, mas tenho a certeza de que  a vida se torna mais fácil se fechar os olhos e confundir cá dentro tudo o que vi. Talvez no pátio da Igreja da Misericórdia haja uma mulher solitária apanhando do chão o arroz que sobrou do casamento da véspera. Toda essa gente solitária. De onde vêm, todos eles? A que lugar pertencem, todos eles? Se calhar hoje, quarta-feira, pelas cinco da manhã, uma rapariguinha tenha fechado em silêncio a porta do seu quarto na Rua dos Almocreves, descido as escadas até à cozinha apertando o lenço entre as mãos, aberto a porta das traseiras, e fugido de casa deixando uma nota onde esperava escrever mais do que escreveu. Está livre, agora. Por mais que a mãe acorde o pai que ressona com o grito aflito: “A nossa menina desapareceu!” São coisas que podem acontecer em todas as casas, não apenas aqui, à beira Sado, como já disse, o rio da aldeia de Caeiro. Pode ser que a minha varanda seja uma colina e que nela permaneça, dia após dia, um homem de sorriso idiota que  ninguém quer conhecer porque sabem que não passa de um louco. Mas ele vê o sol que se põe e os seus olhos observam o mundo que gira. Talvez até seja eu, aqui na colina, o homem das mil vozes que continuará sempre a escrever muito alto. Só escrevendo alto é que conseguimos que nos ouçam.