Bucha pode ficar na história da invasão russa da Ucrânia como o massacre de Srebrenica ficou para a guerra da Bósnia, apontam analistas. Não só está a causar ainda mais pressão internacional sobre a Rússia, como o Kremlin – à semelhança do regime sérvio de Slobodan Miloševic, cujos paramilitares estiveram envolvidos no massacre de Srebrenica – tem negado ter algo a ver com o assunto, apesar das imagens de satélite indicarem o contrário.
Ainda não é claro se, à semelhança dos sérvios em Srebrenica, os russos agiram com o propósito de limpar etnicamente Bucha. Mas as declarações do ex-Presidente russo, Dmitri Medvedev, quase parecem uma justificação para tal.
“O ucranianismo profundo, alimentado por veneno anti-russo e mentiras sobre a sua identidade, é uma grande mentira”, disparou Medvedev, numa publicação no Telegram, esta terça-feira. No entanto, se tínhamos visto Vladimir Putin dizer algo do género no discurso que precedeu a invasão, Medvedev apontou o dedo a um alvo bem diferente. Enquanto Putin prometia correr com o “gangue de toxicodependentes e neo-nazis” que governa a Ucrânia, o ex-Presidente considerou que “o atual radicalismo ucraniano cresceu atrás das carteiras da escola”. Comparando-o ao militarismo alemão e lembrando que “esse espírito, no final da sua jornada renasceu como o monstro do Nacional Socialismo e apenas foi destruído pelo Exército Vermelho em 1945”.
A sugestão de Medvedev, que sempre foi visto como um fantoche de Putin, parece ser que a invasão já não tem apenas como objetivo libertar os ucranianos, que estariam ansiosos por se livrarem de um Governo opressor. De facto, é uma narrativa muito difícil de sustentar perante a feroz resistência da população aos invasores, incluindo em cidades russófonas como Kharkiv ou Mariupol. A única explicação, pelo que dá a entender Medvedev, é que a própria população tem de ser purificada. Porque “mudar a consciência sanguinária e cheia de falsos mitos dos ucranianos atuais é o objetivo mais importante” da chamada “operação especial”.
Talvez fosse isso que faziam as tropas russas em Bucha. Deixando para trás cadáveres nas ruas, alguns executados com as mãos amarradas atrás das costas, tendo sido encontradas centenas de corpos em valas comuns. Entre relatos de saques por tropas russas, violações, tortura. Uma deputada ucraniana, Lesia Vasylenk, até acusou as tropas russas de marcar civis a ferro quente, com a forma de swastikas.
Trataram-se de crimes brutais, diferentes dos relatos dos primeiros dias da invasão, das histórias de soldados russos amigáveis, até surpreendidos pela raiva dos ucranianos. Como os jovens militares que foram falar com os tios de Artem Mazhulin, um professor de Kharkiv, quando passavam pela sua aldeia. Perguntaram-lhe onde estavam os banderivtsi, referência aos seguidores de Stepan Bandera, um nacionalista ucraniano e colaborador nazi.
“O meu tio disse-lhes: ‘Onde raio é que vocês veem banderivtsi?’. E a minha tia disse-lhes para saírem da floreira dela”, contou Mazhulin ao Guardian, dez dias após a invasão, antes do ódio da máquina de propaganda do Kremlin ser tão virulento como agora. “Eles chamaram ao meu tio batya [pai] e conversaram sobre criação de pombos. Depois foram-se embora no seu tanque”.
Vídeos falsos O regime de Putin ainda negou os massacres em Bucha, mas convenceu pouca gente. “Peritos do Ministério da Defesa identificaram vários vídeos falsos”, assegurou o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, queixando-se das “provocações” ucranianas em Bucha.
O embaixador russo nas Nações Unidas, Vassily Nebenzia, foi ainda mais longe. Explicando que os corpos não estavam lá antes dos russos retirarem, que os vídeos mostravam cadáveres a mexer, foi tudo “arranjado pela máquina de guerra da informação ucraniana”.
“Exigimos que muitos líderes internacionais não se apressem a fazer acusações e que ao menos oiçam os nossos argumentos”, declarou Peskov.
No entanto, para os líderes ocidentais, os inúmeros relatos que vão chegando dos sobreviventes de Bucha, mais o cenário de horror com que a imprensa internacional se deparou após a saída das forças russas da cidade, bastou para perceber o que lá se viveu. As imagens de satélite da Maxar, reveladas pelo New York Times na terça-feira, mostrando cadáveres nas ruas duas semanas antes dos russos retirarem, só o confirmaram.
As bizarras referências de Medvedev no Telegram a pretender uma “Eurásia aberta de Lisboa a Vladivostok” foram vistas em Bruxelas com um misto de estranheza e sensação de ameaça. Mas foi o horror de Bucha que levou os líderes europeus a prometer apertar as sanções como nunca. A Comissão Europeia até já propôs proibir a exportação de carvão da Rússia, que lhe rende cerca de quatro milhões de euros por ano, ficando os navios russos impedidos de entrar em portos europeus. Também quer bloquear a exportação de semicondutores para a Rússia, avaliada nuns 10 mil milhões de euros anuais, e de proibir empresas russas de competir em concursos públicos na União Europeia.
Bruxelas indicou que espera ver o pacote aprovado esta quarta-feira. O grande receio é que o Governo húngaro de Viktor Orbán – um aliado próximo de Putin, que foi reeleito este domingo, denunciando Volodymyr Zelensky como seu “adversário” no discurso de vitória – bloqueie as novas sanções, dado a Hungria ter direito de veto.