Meu Caro António Guterres,
Talvez que uma crise internacional poucas vezes tenha suscitado tanta atenção e indignação junto dos cidadãos do mundo como a que estamos a viver por estes dias.
Por uma vez, não é apenas o direito dos povos ao respeito pelas suas fronteiras que está em causa, é também saber se é possível, daqui para a frente, a tolerância perante o anúncio “urbi et orbi” por um ditador, do desejo de partir para a reconstrução de um império perdido, arrasando cidades, dizimando populações, carbonizando uma parte da humanidade, semeando o medo e o desespero.
Mesmo invocando questões de segurança interna pela existência de fronteiras com vizinhos, vivendo a sua liberdade e autonomia, ainda que na órbita de outros valores e matrizes de convivência internacional diversa que só aos próprios diz respeito.
Esta era uma guerra pré-anunciada, que face às evidências sobre a concentração de forças em manobras desafiantes, se admitiria que instituições internacionais pudessem antecipar consequências e obviar intenções bélicas.
A verdade é que não chegou a força moral da palavra e muito menos a força institucional de entidades como as Nações Unidas, a contrário e de forma surpreendente, tergiversando sobre temas sem tempo nem espaço face à realidade.
Eis então a razão destas linhas.
Chegaram-me notícias das declarações desta semana do Secretário-Geral da ONU, quanto aos custos da recusa do Ocidente em consumir gás e crude da Rússia, notícias que me trouxeram o inaudito de uma agenda política pouco conforme à perigosidade do momento.
Claro que a prioridade não é saber se o mundo está a combater o que não sabemos se existe – as “alterações climáticas” – que, existindo, a seu tempo a natureza cuidará …
Claro que a prioridade não é clamar contra a utilização das “energias fósseis” que, durante muitos anos, verão a sua substituição dependente da investigação e do progresso de novas tecnologias.
A prioridade hoje, Caro António, é Kiev, Odessa, Mariupol, a Ucrânia, as crianças, meu Caro António, os velhos, as mulheres, a decência civilizacional, a paz e a questão da ilegitimidade da força se sobrepor à força da legitimidade.
(Dizem-me, Caro António, que milhares de crianças estão a ser levadas para a Rússia, à força, em comboios, separadas dos pais, que nunca mais verão, tal como fizeram no Holocausto).
A estas horas, o mundo e todos os que sabem quem é o Secretário-Geral da ONU, o que gostariam era de o ver numa espécie de vai e vem diplomático, constante, entre Moscovo e Kiev para levar e trazer mensagens que construíssem a paz.
O mundo não está preocupado com minudências, que o são em tempo de paz, quanto mais em tempo de guerra.
O papel crucial da ONU e do seu Secretário-Geral, segundo a visão modesta de um cidadão do mundo, é hoje, alcançar a paz.
E foi nessa missão que alguns anteriores secretários-gerais até perderam a vida como Dag Hammarskjöld, em África.
Há hoje, Caro António, um terrorista em Moscovo, que assumiu como missão da sua vida dizimar populações, apagar cidades e vilas do mapa, julgar-se um novo czar neste século de afirmação de “um homem, um voto”.
E ninguém melhor que quem chegou por mérito próprio a figura central e número um do palácio de vidro onde se reúne o mundo, para isto mesmo dizer cara a cara, mesmo com uma mesa demencial entre ambos.
O que está a acontecer na Ucrânia recria o inferno na terra, tal o massacre da força bruta das bombas perante seres humanos cujo “crime” foi terem nascido e Deus os ter feito nascer naquela terra.
Há momentos assim, em que a um Homem colocado num posto de decisão ou influência foi dada a oportunidade da sua vida: ser lembrado como peça-chave do que é importante, acabar com o genocídio.
Ou então ecoar como mera circunstância do “clima ou do mercado energético”.
Muitos como eu, sabem que ainda pode ser pela grandeza do essencial e não do acessório, que o Secretário-Geral da ONU, pode ser lembrado nesta tragédia, por ter ajudado à sua eliminação.
Pela nossa velha Amizade beirã, Caro António.