Suíte Brasil. Dois hemisférios numa casa

Suíte Brasil. Dois hemisférios numa casa


O Brasil dos executivos, do poder, do carrinho de supermercado cheio e o Brasil cariado do uniforme, sucateado, em liquidação. É o terceiro livro de Giovana Madalosso. 


Publicado pela Tinta da China em outubro último, Suíte Tóquio é o terceiro livro de Giovana Madalosso, colunista do Jornal Rascunho, dado à estampa no Brasil em 2020. Um romance, trinta e cinco capítulos e uma história narrada a duas vozes. Uma história para entrar desarmado e deixar todos os preconceitos no fundo da gaveta.

A escritora de Curitiba nascida em 1975 e a viver em São Paulo estreou-se com o livro de contos A Teta Racional em 2016, livro que foi finalista do Prémio Biblioteca Nacional e dois anos depois deu continuidade ao seu percurso literário com Tudo Pode Ser Roubado, finalista do Prémio São Paulo de Literatura.

Exércitos brancos carregando bebés ou crianças no colo ou em carrinhos. É assim que começa este enredo. É Fernanda, a mãe de Cora quem apelida desta forma as centenas de mulheres vestidas de uniforme branco, que se juntam logo pela manhã nas ruas, jardins e pracetas de São Paulo para passear no colo ou em carrinhos, os bebés e as crianças que não são suas, mas sim das suas patroas endinheiradas. 

Estas mulheres de uniforme branco são aquelas que ninguém enxerga, embora sejam aquelas que criam os filhos das mulheres da classe alta que todo o mundo respeita.

Maju é um desses soldados negros do exército branco. É ela quem vai raptar a pequena Cora e fugir para Presidente Prudente, a sua terra no interior. Maju é uma boa mulher da roça. Inocente, generosa, leitora ávida de literatura de bomba de gasolina nos poucos e raros tempos livres que tem. Solteira, sem filhos e sem filtros, trata Cora como se fosse sangue do seu sangue. Por não ter filtros, é a personagem que mais nos faz rir e diverte. Fernanda é a mãe ausente que se deixou transformar numa “turista na sua própria casa”.

Entramos de chofre nesta suíte, um quarto de empregada interna com frigobar e televisão, “que poderia muito bem ser a suíte de um hotel japonês”. Entramos no gerúndio, pela voz de Maju que se vai alternando com a de Fernanda e vice-versa, bem na contramão da superficialidade. 

Este cruzamento de narradoras tem o efeito de um motor de alta cilindrada, já que oferece uma dinâmica particular e eficiente ao texto. Ao ser posto diante de dois circuitos narrativos, o leitor tem a oportunidade de deambular em hemisférios completamente distintos. O Brasil dos executivos, do poder, do carrinho de supermercado cheio, da saúde e o Brasil cariado do uniforme, sucateado, em liquidação. 

Esta alternância discursiva encaminha-nos por isso para uma pluralidade que nos permite fruir de uma opinião firme e nunca de um julgamento. 

De salientar, que embora estejamos diante de dois discursos, os dois são assentes no mesmo vau, ou seja, numa linguagem terrena, fluida, coloquial. Mas atenção, coloquial em Madalosso não é sinónimo de vulgaridade. Porque podemos em ambas encontrar vários exemplos profundamente poéticos. Poéticos e comoventes. É Maju quem ouvimos dizer “Memória é um filho que já nasce morto. E se decompõe.” É em grande parte esta poeticidade aliada à alternância discursiva que confere à sua linguagem uma flexibilidade invulgar. Uma flexibilidade que não nos permite acomodar nesta realidade brasileira. Imaculada e promíscua. Intolerante e apetecível. Luminosa e desumanizada. Fresca e apodrecida como a fruta que na fruteira vai apodrecendo por baixo sem que ninguém a consiga salvar a tempo.

O mais espantoso em Suíte Tóquio é que vamos assistindo a uma reordenação total dessa realidade através da subversão de diversos estereótipos. O feminino, a homossexualidade, a ecologia, a própria religião e a maternidade são de tal forma sacudidos que nos deixam estupefactos. É como se nos sentíssemos irromper por portas giratórias para o centro de uma guerra surda e fria declarada entre as classes sociais do Brasil. 

Se por um lado temos um marido, Cáca, que não se fixando em emprego nenhum fica em casa a tomar conta dos assuntos domésticos, já que “nasceu para cuidar do que quer que fosse, dos cactos, dos nossos amigos, da reforma do apartamento, das nossas festas, da receita do jantar”, por outro temos uma mulher, Fernanda, que não se revê no papel de mãe e sustenta sozinha a casa graças ao emprego de topo na chefia de um canal de televisão brasileiro. 

Se o leitor acha que estes estereótipos são suficientes para servir de base a este enredo narrativo, está enganado. É que, como se não bastasse uma mãe que não se encaixa no seu perfil maternal, ela vai-se apaixonar e envolver com outra mulher, Yara. Yara por sua vez, dará voz ao estereótipo ambientalista, na medida em que é através desta personagem que Madalosso faz uma dura crítica ao que se tem vindo a passar na Amazónia. A perda continua e dramática da vida selvagem. O desbravar da natureza.

Recuando ao primeiro dos estereótipos, o feminino, este é também abordado sob o ponto de vista da sua fragilidade. Maju foi violada aos dezassete anos pelo porteiro do prédio da primeira casa onde trabalhou, Neide, outra babá, mãe solteira, vê-se obrigada a abandonar o segundo filho, porque não tem condições de criá-lo e é presa mais tarde, ou Dinalvinha, uma criancinha que a troco de uns presentes brega se despe para um camionista perverso, são alguns dos muitos exemplos desse feminino frágil.

Numa entrevista para um canal de Youtube Livrada, Madalosso revela estar envolvida na luta feminista. “Sou da militância feminista. (…) Crio a minha filha, que eu acho que talvez seja dos maiores exercícios do feminismo que possa ser feito. Crio a minha filha para se colocar de uma maneira forte num mundo onde eu acho que a mulher é ainda muito oprimida.” 

E por acreditar que a mulher ainda continua a ser muito oprimida, ela recusa-se a pôr um freio ao seu sarcasmo e à sua implacabilidade. Talvez por isso também não encontremos nesta história por uma vez sequer, uma voz masculina. 

Toda a voz aqui é feminina. São mulheres que sofrem, que trabalham, que têm crises existências. São mulheres fortes que conduzem fora do trilho as suas vidas. Maju privou-se de ter a sua própria família em prol do trabalho, mas Fernanda, além de um casamento que amornou, não se privou de nada em prol da maternidade. Mas atenção, à parte de qualquer privação que elas passem, são sempre as mulheres a dar prazer às mulheres. É Fernanda quem oferece três salários e um seguro de saúde a Maju, quem lhe providencia um quarto de sonho, mesmo que esse gesto seja somente para a fazer sentir menos “escravocrata”.

Também é a Cora a primeira pessoa a dizer que ama Maju e por sua vez é a Cora que Maju diz que ama alguém. Ainda a respeito do prazer, é Yara quem oferece a Fernanda a maior sensação de gozo que ela experienciou na vida. “Desencana, Yara, nunca gozo com sexo oral, cheguei a suplicar, mas ela ignorou e seguiu em frente e em torno, até que de repente, enquanto o Matthew falava sobre o câncer que iria afastar um actor da série, eu gozei. Gozei de pé com sexo oral ouvindo meu chefe falar sobre um câncer fulminante de bexiga. Tive vontade de me ajoelhar e condecorar a Yara com uma medalha de pelos pubianos, mas claro que continuei na linha, entrando numa frequência de bem-estar que me fez até pensar no estado emocional do actor com câncer, e não só no prejuízo que ele nos daria”.

Ironia e um dedo apontado ao capitalismo, a um país “onde pobre só tem direito à fantasia na hora do sono”, a um país onde para se tomar a vacina da febre amarela tem que fazer algo em troca, são umas das coordenadas desta literatura.

“A vacina estava de facto esgotada, mas uma das mães descobriu que uma loja da Renault em Santo André estava dando vacina para famílias que fizessem um test-drive.”

E o que acontece às famílias que não têm como fazer esse test-drive? Que se veem impossibilitadas de tão pouco chegar perto de uma loja sem serem barradas pelo seu pé descalço ou carapinha?

É este o Brasil que Madolosso nos põe no prato e que o leitor não pode simplesmente chutar para canto.

Voltemo-nos agora para outro dos estereótipos que a escritora subtilmente aborda e desconstrói: a religião. Sem dúvida que é neste ponto que Giovana atinge o clímax do seu humor.  Fernanda é ateia. Maju é crente. Yara comunga do ayahuasca. Shakuna é uma amiga de infância de Yara, a primeira mulher  yawanawa a tornar-se pajé, chefe espiritual dos indígenas. Um misto de profeta e curandeira.

Ao colocar estas diferentes perspetivas diante do tubarão da espiritualidade, Madolosso permite-nos uma vez mais enredar nas múltiplas barbatanas da essência brasileira. 

Conduz o leitor para a porta de embarque de um Brasil dotado de várias crenças e não apenas composto pelo catolicismo ou pelo evangelismo. “Enquanto os católicos e evangélicos precisavam de um atravessador – o padre, o bispo – para falar com Deus, o chá desmanchava essa hierarquia, colocando a pessoa em contato direto com o divino ou com a sensação dele.”

São belíssimas as visões de Fernanda depois da segunda toma do uni, da mesma maneira que é absolutamente tocante, ainda que na maioria das vezes cómica, a fé de Maju.

No fundo, Madalosso desmancha a religião, o feminino, a homossexualidade, a maternidade, a ecologia com toda a naturalidade. Como quem esquenta uma coxinha de frango no fogão. Como uma aranha que à revelia entra num mosquiteiro. Como quem escama um peixe. Olhando de frente porque “se Deus está nas pequenas coisas, o diabo está nas pequenas.”