É consensual dizermos que a pandemia acelerou tudo o que hoje é visto como normal. Foram os confinamentos que aceleraram a necessidade de implementar várias alterações ao nosso quotidiano e trouxeram uma transformação digital que estava sempre adiada.
Seja a nível laboral, associativo ou cívico, formalizámos aceitar o que antes era impossível. Hoje aceitamos o lado virtual e o “à distância” que antes de 2020 tinham, forçosamente, de ser realidades apenas complementares porque tudo o que era de cariz oficial tinha de ser presencial.
As reuniões de qualquer pequena ou grande empresa, as sessões de todos os órgãos autárquicos locais, até assembleias de associações culturais e desportivas, mas não só. Foi assim também com as aulas para milhares de estudantes de sul ao norte do país. E bem. Fossem aulas do ensino secundário ou do ensino superior, tudo começou a ser realizado da cintura para cima. Ou seja, digo por “da cintura para cima”, por via de videoconferência.
Relativamente às videoconferências, todos já vimos numa rede social, ouvimos num programa de rádio ou lemos num jornal uma peça que conte um caso de alguém que, ao terminar um desses momentos em frente ao seu computador, esqueceu-se que tinha outros a verem-no nos e apareceu de pijama, de calções ou como veio ao mundo perante todos os que ainda estavam na “sala virtual”. Ou casos de quem pensou estar “sem som” e bem falou o que não queria que ninguém ouvisse e todos ouviram. É também uma nova realidade de desleixo que se apoderou de tanta gente.
É desleixo, sim. Começámos a acreditar que, fisicamente, basta arranjar o que há da cintura para cima. Uma camisa ou uma peça mais normal, ajeitar o cabelo e lavar a cara. O resto, é qualquer calça de pijama ou pantufa confortável. E com os fundos coloridos, opacos ou com logotipos que possam ser convenientes para cada caso, até fica tudo tão profissional que mentalmente fica mais que perfeito.
Mas o desleixo também é mental. Que jogue a primeira pedra quem, em plena sessão de videoconferência, não esteve a navegar no Google. Que não abriu redes sociais discretamente com o telemóvel ao nível da objetiva da webcam do computador. Que não falou com quem estava perto. Que, basicamente, desconcentrou-se ao ponto de nem a 50% estar presente ou deveria estar focado. Aí não há pantufa que safe. É menos produtividade, é menos responsabilidade e é menos aquilo que deu, contribuiu ou aprendeu.
Não tenho qualquer problema com o que cada um use da cintura para baixo nesses momentos. A roupa que escolherem, o fundo da divisão de casa que omitirem por artefacto da capacidade dos fundos digitais ou as pantufas são-me totalmente indiferentes. Da mesma forma que respeito quem (deve haver) se vista integralmente e se calce convenientemente como se fosse trabalhar no escritório fora de casa, mas, ao contrário disso, fique a poucos metros do seu sofá da sala.
Em qualquer um dos casos, o que contará será a sua produtividade. E aqui já todos deveríamos ter problemas com o que entregam mentalmente nas suas vidas. Sim, as aulas, as reuniões de que tipo forem, embora por ZOOM ou Teams, não são virtuais. São vidas reais.
Nesses casos, estar 50% “equipado” não traz mal nenhum ao mundo. Estar 50% focado ou menos, pode trazer.
De igual modo, vemos tantos aplicarem esse 50% no resto dos seus dias. A transição digital, o mundo remoto favoreceu-os a todos. São o super-homem por trás do computador que nunca abre a boca em qualquer discussão presencial. Estes anos de “nova normalidade” deram a tantos uma “nova superioridade” que, tal como o digital, não é totalmente real.
Hoje temos gente que não concretiza o que escreve. Tantos que comentam tudo mesmo quando só sabem metade (ou nem isso). Tantos que seguem a maré e replicam o que outros dizem sem seguir fontes, sem conhecer o que escrevem e, sobretudo, aumentando coisas que não têm ou deviam ter expressão.
Temos uma sociedade ZOOM ou Teams que, da mesma forma que só de arranja da cintura para cima, acredita que as suas ideias podem estar de pantufas, que vivem num fundo irreal e que até com a ligeireza de um pijama podem “sair à rua” do confronto de ideias.
Nestes dois anos, tantos, num qualquer conforto do seu sofá e sobretudo atrás de um ecrã de computador passaram a ser especialistas em imunologia e pandemias. Sabiam mais de variantes e dos diferentes processos imunológicos presentes em cada uma das vacinas comercializadas que qualquer médico, farmacêutico ou outro profissional de saúde. Mesmo que fossem médicos que passavam a vida com doentes COVID, não interessa. Falavam, escreviam e postavam sempre com um total (des)conhecimento adquirido na Universidade do seu sofá e com o mesmo preceito intelectual com que a globalidade se veste para uma reunião por ZOOM às 8:30 da manhã.
Agora, como estão fartos dos seus doutoramentos de sofá em COVID, tantos outros converteram-se em especialistas de geopolítica e na história do conflito entre Rússia e Ucrânia.
Basta uns 100 caracteres mal-amanhados com a bandeira da Ucrânia num lado de uma rede social, um copy-paste de três linhas para outra rede social com uma imagem a acompanhar, uma boa fotografia e um paragrafo mais ou menos generalista com um link noticioso aos que querem parecer que há anos que estudam isto, um bom hashtag tipo “SomostodosUcrania” numa história de instagram e está feito.
Fica assim feita a corajosa e interventiva missão. Missão de especialista e apto a comentar tudo. Tudo fácil. Tudo direto e capaz de transparecer uma imagem tal e qual a que muitos parecem nas suas reuniões ou aulas por videoconferência: Até aparecem penteados e de camisa, mas o resto não está nada arranjado nem dava para sair à rua.
Assustadoramente, parece que já não temos capacidade de “vestir o que falta” na vida real de debate de ideias.
Vestir o cérebro de estudo, bem diz um estudo recente que quase ninguém lê um livro que seja em Portugal num espaço de 365 dias, e debater o impacto negativo do conflito da Rússia com a Ucrânia. Debater, aceitando a diferença de ideias, qual o impacto negativo que as sanções vão ter num possível e previsível disparo dos preços de energia, do gás e do petróleo.
A par disso, que isso é curto, debater como isto vai acrescer à inflação que vivemos em função da pandemia e à crise das matérias-primas global. Debater estes setores e em como isso afetará previsivelmente a vida das famílias cá e à nossa volta. Sim, à nossa volta. Há muito mundo para além da nossa rua, da nossa cidade e do nosso país. Não vivemos ou funcionamos numa bolha.
Mas podemos dar outros exemplos em como a sociedade vive em modo ZOOM ou Teams.
Vivemos uma grave escassez de água (felizmente hoje, pelo menos no meu Algarve, está a chover que bem precisamos!). Será que podemos vestir integralmente a nossa mente e debater isto com seriedade? Será que é possível em pleno 2022 debater as dessalinizações? Podemos falar dos reaproveitamentos de água para fins domésticos sem levarmos com banalidades e fotografias comparativas ocas entre a ribeira cheia de 1970 e a vazia de 2022? Era bom. Mas são mais de 140 caracteres de Twitter ou que uma boa fotografia para o Instagram. Por vezes é capaz de ser possível voltar aos bancos da Universidade para até se aprender mais. Faz falta essa coragem de querer saber e ser mais. Sem trivialidades e desculpas ocas. Se não sabe, não fala. Se quer saber, vá estudar antes de falar ou escrever.
Mas há mais exemplos de como estas metades, esta sociedade de aparência ZOOM ou Teams funciona e influencia tudo.
Tivemos eleições legislativas no nosso país. Muito se leu sobre o Zé Albino, o cão do líder da iniciativa liberal e até soubemos os nomes dos animais do Primeiro-ministro. Escreveu-se sobre frases feitas e ditas em debates, rimos com programas de entretenimento e decorámos todas as interjeições dos candidatos partidários. Esfrangalhou-se ideologias em função dos decibéis (e de notas(?) atribuídas aos políticos pelos órgãos de comunicação social, claramente tendenciosas e sem pingo mais nada que não fosse influenciar).
Entrincheirou-se o debate no que é fácil, o banal, o que dá para rir.
Se perguntarmos, e atenção que vivenciámos uma época em que os debates televisivos foram muito visualizados (e isso é bom!), que ideias reteve qualquer pessoa comum, que fica? Tirando duas ou três diferenças ideológicas num debate, nada.
Vimos uma campanha (de todos) em modo ZOOM ou Teams: Incompleta, para aparecer bem na imagem e na fotografia.
Não houve interesse de criar momentos de reflexão, de colocar setor a setor a debater as suas ansiedades e ambições. Viveu-se de chavões como “és contra o SNS” quando mal se ouviu uma ideia de alguém efetivamente “da saúde”. Sobre esta narrativa, fica claro a aberração que são estes debates de soundbytes: Ninguém é contra o SNS em Portugal, é sistémico. Mas também, do que aparenta, após sucessivos governos, também tarda em haver alguém que estruture para uma década ou mais a forma como o SNS pode ter e deve ter complementariedade, capacidade de fixação e, sobretudo (e bom ano este, de exacerbado trabalho e privação das suas vidas) o respeito pelos profissionais de saúde.
Poderia fazer o mesmo exercício para a Educação. As conclusões seriam as mesmas. Que isto é uma realidade ZOOM de fazer política. É só para aparecer bem na imagem.
Estamos com uma sociedade e capacidade de debate de ideias ao estilo das pantufas e de calças de pijama da cintura para baixo presente numa qualquer videoconferência. Incompleto e sem capacidade de sair à rua. Mas é tal como está que esta sociedade parece acostumar-se a gostar.
A ver se a nova-normalidade nos mete todos a ir para a rua, que faz falta. Está visto que em casa também confinámos muitas ideias e capacidade de aprender. Em contrapartida, desconfinámos muita forma errada de apreciar cada tema como se tudo fosse espuma dos dias e nada fosse estrutural.
O mundo não acaba amanhã. Temos de saber preparar e estruturar, em ideias, bons debates e estudos (com atenção plena e não a que damos no ZOOM ou no Teams) o amanhã que queremos.
Sim, há sempre um amanhã.
Carlos Gouveia Martins