18 de Janeiro de 1964. Pum! Pum! Quando Franco e o almirante foram dar uns tirinhos…

18 de Janeiro de 1964. Pum! Pum! Quando Franco e o almirante foram dar uns tirinhos…


Encontraram-se na herdade da Encomienda de Mudela para desfazerem, durante o dia de sábado e a manhã de domingo, todos os perdigotos que lhes deu na gana, acompanhados pelos seus séquitos. Depois foram à missa. Coisas de amigalhaços, como está bem de ver…


Juntaram-se os dois à esquina de Santa Cruz de Mudela, uma terriola da província de Ciudad Real. Não para tocarem concertina ou para cantarem o só-li-dó, mas para darem uns tirinhos na bicharada da mata circundante. O Presidente da República de Portugal e o Caudilho de Espanha, Américo Thomaz, como os jornais gostavam de grafar, e Francisco Franco. Seria de esperar que Thomaz, sendo almirante e mais habituado às lides do mar, preferisse a pesca. Mas para Franco esse assunto nem estava em discussão.

O convite fora particular. Dois amigalhaços a verem qual tinha mais pontaria. Thomaz decidira levar consigo o ministro da Justiça, Antunes Varela, vá lá saber-se com que intenções, mas talvez não tivesse licença de caça, ou coisa que o valha. Para o caso pouco importa. Abalou a comitiva de Lisboa, com uma pompa e circunstância dignas de Edward Elgar, e pernoitou na pousada de Elvas que o caminho não era para ser percorrido a mata-cavalos, pelo contrário, apesar do barulho da artilharia, o almirante queria um tempo de descanso e conforto prandial. De tal ordem que, mal foi recebido na fronteira pela Guardia Civil, seguiu escoltado até Córdova, onde almoçou com o governador civil da província no Parador Arruzfa. Não há nota de descontentamento presidencial em relação à refeição que lhe foi oferecida, mas Thomaz também não era nenhum ingrato, como se sabe.

Américo e Francisco chegaram praticamente ao mesmo tempo à herdade Encomienda de Mudela. Pelas suas seis e meia da tarde de um sábado de Inverno ameno. A herdade situava-se, mais pormenorizadamente, entre o desfiladeiro de Despeñaperros e Valdepeñas e era propriedade do Instituto Nacional de Colonização, uma dependência do Ministério da Agricultura de Espanha. Revelavam os jornalistas que tiveram acesso aos momentos de intimidade dos dois chefes de Estado que havia bichos de todas as espécie e feitios por entre os montes e vales percorridos por ambos, mas que ficou decidido que apenas se abateriam perdizes. Como num concurso, vá lá.

Pum! Pum! Por entre o Guadiana e o seu afluente, o Jorbalón, por charnecas e vales nus, ou pela estepe seca e poeirenta conhecida por La Mancha, na qual se perdeu D. Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, mais o seu Sancho Pança, Américo e Francisco foram fazendo os seus estragos na comunidade de perdizes local. O grupo geral dos caçadores saiu relativamente cedo, eram oito da manhã, e os seus membros foram colocar-se junto às portas de saídas das avezitas. Portas sorteadas, toques de cornetim, o ladrar da canzoada, tudo como nos filmes.

Os batedores, vestindo os seus trajes típicos, faziam com que as perdizes saltassem para fora dos arbustos onde procuravam esconder-se e tornavam-se alvos fáceis para os mais experimentados. Franco tinha-se a si próprio como um excelente atirador. E quem é que abria a boca para contrariá-lo? Moita, carrasco.

Até às cinco da tarde, anfitriões e convidados deram largas à sua vontade de abater os bicharocos voadores. Fizeram-se fileiras longas de perdizes mortas para que todos pudessem ser fotografados juntamente com os seus troféus. Depois, sorridentes, Américo e Francisco regressaram ao palácio onde estavam instalados e almoçaram tardiamente. Já não era a primeira vez que haviam combinado uma caçada.

No ano anterior, no mesmíssimo local, a cena repetira-se. Coisas de compinchas. No domingo, ainda sequiosos de mais um pouco de sangue, voltaram de matina aos campos para desfazer mais uns perdigotos. A seguir foram à missa. E talvez tenham confessado os seus pecados. Algo que deve ter demorado o seu tempo…