No passado dia 14 de dezembro fez 90 anos e a sua história de vida está repleta de muitos cozinhados, mas a sua determinação de vencer levou-a a conseguir descobrir a melhor receita. “Não sou o que quis ser, mas o que a vida quis que fosse”, é uma das suas máximas. Desde cedo descobriu que gostava de ser atriz, mas como a família entendia que isso era coisa de “malucas”, foi avançando com o fado da sua vida, passando também ao lado da carreira de fadista. Amália chegou a ouvi-la, em particular, e disse-lhe que tinha muito jeito para cantar. Mas Maria da Graça, do alto dos seus 90 anos, continua com uma lucidez impressionante e não prescinde de ir todos os dias ao restaurante Manjar do Marquês, em Pombal, dar as suas indicações e fazer o famoso doce da casa, cujo segredo não passou, ainda, a ninguém. Lourdes Graça e o marido tornaram-se uma referência na gastronomia portuguesa com uma ‘tasca’ na bomba de gasolina da Shell que ficava em Pombal, no tempo em que não havia autoestrada e quem fazia Lisboa-Porto passava por ali obrigatoriamente. E foram muitas as caras conhecidas que por ali andaram. Herman José, por exemplo, já contou que foi ali que conheceu Amália Rodrigues. Lourdes espera que o filho, Paulo Graça, nunca destrua a sua obra fazendo remodelações modernaças no restaurante Manjar do Marquês depois de partir. “Se pensar nisso, que transforme antes isto numa casa para velhinhos”, diz. Cedo percebeu que não queria uma vida de lavoura, nem tão pouco ficar pela aldeia que a viu nascer, Arega, em Figueiró dos Vinhos. Os tempos eram outros, e ainda hoje Maria de Lourdes continua a dizer que o seu dia de folga é o que menos gosta. “O dia mais triste que tenho é quando tenho de ficar em casa. Quero estar aqui com as pessoas à minha volta, ter os meus clientes, conversar com eles e dar-lhes o que tenho de melhor para eles irem felizes”.
Tem alguma recordação da vida na aldeia?
Estive lá só até aos 11 anos. Saí quando fiz a instrução primária. Havia umas pessoas de família que iam lá passar férias todos os anos e, nesse ano, estavam lá quando eu fiz o exame da instrução primária e disseram ao meu pai que eu era mal empregada para ficar naquela aldeia. E o meu pai disse: ‘Não te esqueças que tenho mais dois’. Tenho um irmão mais velho que infelizmente já se foi embora e tenho uma irmã mais nova. E a pessoa de família disse para o meu pai: ‘Não, mas os outros não quero, agora a Lourdes é mal empregada ficar aqui’. E só sei dizer que naquele ano levaram-me mesmo para ir estudar. Moravam em Algueirão, Sintra. Mas era uma pessoa muito tímida, não queria multidões. Tudo o que fosse multidões não queria. Hoje só me quero ver rodeada de pessoas. Tive muita dificuldade em adaptar-me sem os meus pais e sem os meus irmãos. Chorava agarrada às fotografias deles. Era assim que adormecia. Até que tiveram de me trazer de volta para os meus pais. Tinha 11 anos, era uma garota. Naquela altura as pessoas não eram como hoje. É o que digo, às vezes, a garotos que vêm aqui. As pessoas hoje dizem o que sentem aos pais. Nós antigamente não tínhamos essa liberdade, era outra maneira. As pessoas não eram capazes de dizer aos pais: ‘Eu não quero ou quero isto’. Lembro-me de uma coisa que não gostava nada de fazer, mas os meus pais faziam e eu também tinha que fazer, que era a confissão. Era miúda e achava que aquilo era um disparate.
Voltou com que idade?
Andei entre Sintra e a minha aldeia mas acabei por estudar qualquer coisa. Abriu um concurso para a companhia dos telefones e fui obrigada a estudar mais qualquer coisa. A minha madrinha dizia assim: ‘Tu tens de escolher. Ou queres trabalhar ou queres estudar’. Eu quero trabalhar, disse. E ela respondeu-me: ‘Vai abrir concurso para a companhia mas tu tens que estudar isto e aquilo’. Estudei, fiz o concurso para a companhia e fiquei bem. Mas era muito fraquinha, muito débil, miudinha.
Fisicamente?
Sim, fisicamente.
Tinha doenças com frequência?
Não, não. Alimentava-me bem mas fui sempre muito lingrinhas, muito magrinha. E o médico chamou a minha madrinha e disse: ‘D. Maria Lopes, apurei a miúda mas há uma coisa que lhe quero dizer: tem que olhar por ela que a miúda é muito fraquinha’. E era na altura em que como telefonista tinha de trabalhar com as cavilhas. Puxava muito. O médico disse-lhe que tinha que me dar óleo de fígado de bacalhau. Aquilo era horrível para tomar. Tomei aquilo e só sei dizer que depois fui para a companhia, conheci muita gente. Também estive numa companhia de seguros porque as pessoas quando queriam pessoal bom pediam à companhia dos telefones. Mas depois resolvemos casar.
Casar?
O meu marido era da mesma aldeia que eu, andámos na escola os dois. Só que ele, aos 11 anos, foi para casa de umas avós para Pombal, tinha um armazém, e eu fui com a ideia de ir estudar. Queria estudar porque não queria aquilo. Achava que aquilo era horrível.
A aldeia?
E não só. Os meus pais tinham muita lavoura, muito trabalho, tinham pessoal de fora e tudo. E eu não gostava daquilo. O meu pai levantava-se muito cedo para pôr os animais aos engenhos para tirar água para os tanques e assim. Achava que aquilo era uma coisa muito dura. Tinha sete, oito anos. E lembro-me que não queria aquilo. Mas também não era capaz de dizer que não queria. Deixei passar o tempo, fiz o exame da instrução primária e fiquei bem e achava que não era ali que queria estar mas também não sabia para onde queria ir. Essas pessoas de família é que me abriram o caminho.
Onde entra o casamento se o seu marido estava em Pombal e a Lourdes em Lisboa?
Empreguei-me aos 18 anos na companhia. O meu marido estava aqui em Pombal. Nesse mesmo ano há uma festa na minha aldeia que é a Nossa Senhora da Conceição. O meu marido foi lá para a festa e eu pedi um dia ou dois dias à companhia e também fui. Encontrámo-nos lá e desde os 11 anos que não nos víamos. Começou o namoro. Ele continuou a ficar em Pombal. Mas nessa altura eu só queria estar em Lisboa. Depois comecei a tomar pequenos almoços na pastelaria Suíça, porque ia com a família e amigas que depois arranjei. Ia lanchar à Periquita a Sintra. Tenho uma paixão extraordinária por Sintra. Morei 17 anos naquela terra.
Ia onde?
A todo o lado. Ia muitas vezes ao teatro e três vezes por semana ao cinema.
A que cinema ia?
Um cinema que já acabou. Ia ao Chaby, no Algueirão. A minha madrinha era chefe de secção e quando precisava de pessoas além das que lá tinha pedia à minha chefe para me mandar a mim. Então eu ia para a secção da minha madrinha, íamos tomar o pequeno-almoço à Suíça. E sem ser isso, eu tinha pessoa amigas, depois de já lá estar na companhia, sobretudo uma pessoa que era irmã da minha madrinha, que era uma pessoa muito ativa e que gostava de teatro e cinema – mas eu cinema não, gostava era de teatro, era a minha paixão.
Alguma vez tentou?
Disse à minha família que o que queria era ir para o teatro. Mas diziam-me: ‘As pessoas malucas é que vão para o teatro’. Pronto, o que havia de fazer? Mas gostava muito, adorava ir ao teatro. E essa senhora muitas vezes me telefonava e perguntava-me qual era o meu horário. ‘Hoje saio às 16h’, dizia-lhe. ‘Então mete-te no comboio que eu vou-te esperar à estação do Rossio, vamos lanchar à Suíça e vamos ao teatro’.
No Parque Mayer?
Sim, no Parque Mayer. Íamos muita vez ao teatro com essa senhora que infelizmente já faleceu. Fui muito acarinhada por toda a gente que me conhecia. Talvez pela minha história, por me ter separado dos meus pais e ter sofrido muito. E todas as pessoas que me rodeavam acarinhavam-me muito. Tive sempre pessoas muito amigas. Eram pessoas fantásticas. Fui muito acarinhada, não tenho razão de queixa.
Como decide abandonar o emprego e casar? Falavam-se por cartas?
Ele escrevia todos os dias uma carta para mim. Eu não, não tinha vagar. Só sei dizer que ele depois foi para o hotel em Leiria. Era o único que havia em Leiria nessa altura, o Central. Nós ainda não nos namorávamos. Depois dele estar aí é que foi essa festa em que nos encontrámos. Esteve nesse hotel, depois foi para a tropa e conheceu lá um senhor, que era da idade dele, e um dia lembraram-se que podiam fazer uma sociedade e arranjar uma coisa diferente só para eles. Era uma casa muito grande, tinha 33 quartos, uma sala muito bonita, era muito bonito. Hoje já deitaram aquilo abaixo, é o hotel Pombalense. Mas acho que já venderam aquilo também. E ele foi para ali com esse senhor. Fizeram sociedade e ficaram ali os dois. A mãe do outro senhor é que ficou na cozinha. Eu tinha 18 anos quando começámos a namorar e os anos passaram. O sócio do meu marido também namorava uma senhora que era professora de História, salvo erro. E queriam os dois casar-se mas não queriam pôr lá as mulheres nem queriam lá ficar os dois. Um tinha que ficar ali e outro ia-se embora. Então conversaram e o meu marido pagou ao outro para o outro se ir embora. Foi para Torres Vedras para uma drogaria, ficou lá e depois casou. Ali ficou o meu marido e disse-me: ‘Agora é que estamos em condições de casar’. Eu disse uma coisa que ele nunca mais se esqueceu: ‘Agora veremos’. Porque eu já estava na companhia, já ia começar a subir, mudar de serviço, estava bem, tinha o meu ordenado. A pessoa aos 18 anos não pensa como aos 28. Não pensa da mesma maneira. ‘Veremos? Mas tu não estás boa da cabeça. Namoramos há tantos anos e agora é veremos?’, disse-me.
Namoravam há quantos anos?
Dos 18 aos 28.
Já estava instalada em Lisboa.
Pois, fiquei logo em Lisboa. A partir dos 18 anos comecei logo a ficar na companhia e o último ano que estive na companhia, houve uma empresa de seguros que pediu ajuda para lhes arranjarem uma empregada e eu estive lá um mês. Depois disse que me ia embora porque me ia casar e não valia a pena ficar a ocupar o lugar. Eles queriam que eu ficasse e o meu chefe disse-me: ‘Fica na companhia de seguros, trepas mais depressa’. E eu disse que não ficava nem na companhia de seguros nem dos telefones porque me ia casar. ‘Tens três meses para te arrependeres’, disse-me. Na altura, em 1960, disse: ‘Arrepender? Não. Vou-me casar, não me vou arrepender’. Diz assim a minha chefe: ‘Não se sabe. Mas se te quiseres arrepender, tens três meses. Ou ficas em Lisboa ou vais para o Porto’. Na altura os telefones eram de uma companhia de ingleses. Até tinha umas letras que dizia ‘anda português, trabalha’. Era a PT. Só sei que fiquei ali, depois vim para Pombal tratar das minhas coisas e a minha mãe veio para ao pé de mim ajudar. Casámos aos 28 anos mas não era isto que eu queria. Nunca quis ir para a companhia, a minha vida não era a companhia dos telefones. O que eu queria era ter ido para o teatro.
Casa e vem trabalhar para aqui.
Aí há uma história triste. Vim para Pombal. Isto hoje é uma cidade mas na altura era uma vila, foi muito difícil.
Costumes diferentes da cidade?
Nem queira saber. Ao ponto de eu ter um esgotamento.
Pela forma como se vestia ou falava?
Sim, isto era muito… Não quero ofender ninguém. Os pombalenses são muito meus amigos, têm por mim uma estima muito grande. Mas quando vim para aqui era uma aldeia com meia dúzia de casas e as pessoas eram diferentes. Quando cheguei a esta terra, casei-me por amor a um homem, mas foi muito difícil adaptar-me. Foi horrível. Não era capaz de me adaptar a isto, tive um esgotamento muito grande, fiquei a um passo da loucura mesmo. Deixei de falar, de comer, de dormir.
Já casada?
Já casada.
E como se curou?
Havia um cunhado meu, que ainda hoje é vivo, que era da Fundação Gulbenkian e ele era muito meu amigo. E ele dizia assim: ‘A Nina – como ele me tratava – não tem saúde, temos que a levar ao médico’. E o meu marido queria saber a que médico deveríamos ir. E o meu cunhado conhecia muita coisa porque ele estava na fundação, andava nas bibliotecas itinerantes e disse para irmos a Leiria a um médico. Quando lá cheguei só me lembro que o médico disse: ‘Então mas só agora é que me trazem esta senhora? Ela está a um passo da loucura’. Acho que eles se calaram. Ele receitou-me qualquer coisa que já não me lembro o que foi. Só sei que não curou. Eu não andava, chorava, chorava, chorava. O meu marido levava-me ao cinema, fazia tudo, perguntava-me o que me faltava, o que eu queria. Só dizia que não queria nada. Havia cozinheiras nessa casa, acarinhavam-me muito. E eu dizia: ‘Tenho que me adaptar, casei-me, gosto do meu marido, tenho que me adaptar a isto’. Era tudo tão diferente, mas tive que me adaptar.
Sabe como se curou?
Ainda hoje sei o nome do medicamento que me tratou. Como não andava, levaram-me ao médico a Coimbra. O médico observou-me, falou comigo – lembro-me muito bem – e disse-me: ‘A senhora vai tomar este medicamento. Quando chegar a meio já tem vontade de fazer coisas, tratar do marido…’. Eu não fazia nada, não era capaz. E continuou: ‘Mas vai tomá-lo todo. E depois quero-a cá’. Nardil [potente antidepressivo] era o medicamento. Foi muito mau. Mas depois quando comecei a ficar melhor e comecei a agarrar a situação, já nunca mais ninguém me parou.
Então?
A pensão era num prédio muito bonito mas era muito antigo. E quando comecei a ficar bem e a agarrar a situação, tinha 33 quartos, muito trabalho. Tive muitos problemas. Perdi cinco filhos, tive cinco abortos. Fiquei só com o meu filho Paulo. Foi um médico em Lisboa que me tratou, que me agarrou e que me conseguiu o meu filho. Estive nove meses na cama. Os cinco filhos que perdi foram três antes dele e dois depois. Depois, melhorei e comecei a ficar melhor, comecei a resolver as situações sozinha, a passar a revista aos quartos todos os dias, a ver as roupas, as lavandarias, a cozinha. Comecei a meter-me em tudo. Levantava-me cedo e tirava as contas aos clientes que iam saindo, fazia a ementa, escrevia à máquina, comecei sozinha a desenvolver. Já ninguém me segurava. Estivemos sete anos naquela casa.
Como se chamava?
Pensão Pombalense. Aquilo estava muito velho e quando chovia muito havia certos sítios onde caía água. E eu pensei que aquilo não podia ser uma casa para vivermos, para fazermos vida. Éramos novos. E eu dizia ao meu marido que tínhamos que pensar noutra vida e disse para ele dizer à dona que fizesse obras naquilo, não podíamos estar numa casa antiga daquela maneira. Falar para ela ou estarmos calados era a mesma coisa. O meu marido disse que ia chamar um engenheiro para ver se nós tínhamos solução de fazermos, em baixo, uma cervejaria. ‘Pode ser que a gente consiga salvar-se’, disse o meu marido. Fizemos a cervejaria.
Como se chamava a cervejaria?
Danúbio. Tínhamos marisco e tudo, o meu marido gostava muito daquilo mas ele estava mesmo a ver que aquilo não era o nosso futuro.
Nessa altura ainda não punha o pé na cozinha.
Punha, punha. A dar ordens. Mas não cozinhava. Primeiro tinha a mãe do sócio que se foi embora com o filho e depois tinha duas senhoras a trabalhar lá que eram daqui de Pombal e eram pessoas fantásticas. Só sei dizer que depois nós dizíamos à dona da casa para fazer obras porque aquilo estava muito mau e ela dizia que não podia. Fizemos o Danúbio e aquilo foi, talvez, um ano e meio, dois anos. Mas não havia pessoas em Pombal para manter aquela casa. Era uma casa com marisco e petiscos e não havia pessoas. Comecei a dizer ao meu marido que não íamos a lado nenhum com aquilo. Os comensais pagam pouco. Tínhamos a escola comercial, as finanças, lá hospedados. Tínhamos os quartos todos cheios. As pessoas pagavam pouco. Em 1960 a vida era muito difícil. Ele um dia chega ao pé de mim e diz-me assim: ‘Olha, não estejas triste. Vamos fazer assim: eu vou para a América e tu vais para casa dos teus pais e eu depois venho cá buscar-te’. ‘O quê?!’, disse-lhe. ‘Não percebi. Vais quê?! Então eu deixei o meu emprego para me casar e agora vou-me separar de ti? Não. Vamos os dois à luta, os dois’. Nem ele ia para a América nem eu para casa dos meus pais. ‘Ficas já a saber’, disse-lhe. Aquilo durou pouco tempo, um dia chegou ao pé de mim e disse-me que se ia passar uma coisa nas bombas da Shell, um bar, que ia a concurso. E disse que podíamos pensar numa coisa dessas. ‘Então mas se já lá estiveram várias pessoas de Pombal e agora vai a concurso, são sete cães a um osso’, disse-lhe eu. E ele: ‘Não, se eu conhecesse alguém na Shell, isto agora só por pedidos’. E eu disse que conhecia uma senhora que era casada com um senhor que estava na Shell. ‘Mas ele é um truta, anda lá nos altos’, disse eu. A senhora era da companhia dos telefones. Ele disse que tínhamos que nos mexer e falei para ela nesse dia. Perguntei se o senhor não era da Shell e ela disse que sim. Disse que estávamos interessados naquilo mas tinha que haver que alguém que falasse com os senhores que estavam lá há muitos anos que são do Porto e queriam ir embora. Ela falou com o marido, o senhor falou para o casal e disse: ‘Isso já não vai a concurso porque eu tenho uma sobrinha – não era nada – que fica com isso’, que era eu.
Era um ponto central na antiga Estrada Nacional 1.
Não havia autoestrada.
Toda a gente passava por ali.
Sim. Aquilo foi uma coisa que não há explicação.
Tornou-se uma loucura de sucesso.
Uma loucura mesmo. As pessoas de Pombal chamavam-lhe a mina de ouro. A minha de ouro depois de eu ali estar. Fartava-me de trabalhar até às 4h da manhã, era a hora que saía de lá.
Entra mas não vai ainda com a intenção de cozinhar.
Na pensão Pombalense, tínhamos uma cozinheira e ela zangou-se com o meu marido e disse que se ia embora. Eu ainda não estava na cozinha. Era dos lados de Leiria, de Maceira Liz. Atirou com o avental e fui dar com o meu marido a chorar em cima de uma mesa. ‘Estás a chorar porquê?’, perguntei-lhe. ‘Então, agora ficámos sem cozinheira’, disse. O meu filho estava num bercinho ao lado, tinha poucos meses. Eu disse para ele não se preocupar que eu tomava conta daquilo. Ele disse que o nosso filho era pequenino, precisava de mim. Mas eu disse-lhe que tomava conta de tudo. Do filho e da cozinha. E assim foi. Ela foi-se embora.
Mas não tinha prática nenhuma de cozinheira.
Não tinha. Era a força de vontade que tinha de vencer.
Mas cozinhava em casa?
Sim, cozinhava em casa mas nunca pensei na minha vida ser capaz de enfrentar uma coisa daquelas. Mas a minha força de vontade era tanta e eu vê-lo tão triste, tinha tanto desejo de ter os cinco filhos que perdi, ter aquele menino ali, que eu tinha uma força tão grande que ninguém me parava. Era ali que tinha que vencer. ‘Não vais ficar a chorar porque vou começar com esta vida e não te preocupes que eu tomo conta disto tudo’, prometi-lhe. Ele olhou para mim como quem pensa se aquilo será possível.
Como fez para cuidar de um menino e da cozinha?
Tinha uma empregada nos quartos que já lá estava há uns aninhos e tinha uma pessoa na cozinha para me ajudar e as pessoas cá de Pombal. Elas viram que eu não tinha prática daquilo e ajudaram-me muito. A primeira coisa que eu fiz foi uma omelete. Começo a fazer e não me calhou bem. A senhora que estava ao pé de mim perguntou se eu queria que ela fizesse. E eu disse ‘não, obrigada’ e atirei com a omelete ao teto. Fiz outra omelete e disse ao empregado para a levar. Disse para mim que nunca ia dar parte fraca, que havia de vencer. Toda a gente faz uma omelete, eu também. E assim foi, comecei assim a fazer. Depois de fazerem obras na Shell o meu marido foi para o bar da Shell, eu fiquei lá na pensão. Na Shell tínhamos dois empregados – depois tivemos que arranjar mais – e eu fiquei na pensão que era para ele adaptar-se a fazer as coisas aqui e a gente passar a pensão. Fiquei lá até passar aquilo.
Vai para a Shell.
Fui para um apartamento até termos uma casa mesmo pertinho da Shell, mesmo encostada. Havia lá uma vivenda e nós sabíamos que ela ia vagar porque eram uns professores de Viseu que iam reformar-se e iam-se embora. E eu aluguei um apartamento até eles saírem. O meu marido, como soube que eles que estavam reformados e que se iam embora mas eles nunca mais se desenvolviam, chegou ao pé deles e disse-lhes: ‘Já está reformado, quer-se ir embora, não quer? Tome lá 50 contos e ponha-se a mexer que eu preciso desta casa’. E eles foram, ficámos com a casa. Era mesmo encostada à Shell, só um muro dividia os espaços. Eu ali passava num instante para a Shell. E passei a cozinhar. Mas há outra história que não contei. Enquanto fiquei na pensão e o meu marido foi para a Shell, eu tinha comida feita para os clientes da pensão, tinha sempre a casa cheia. Tinha o comer feito e havia uma porta na cozinha que fazia barulho, rangia. Ao meio dia ele ia lá buscar-me tudo.
Para levar para a Shell.
Tirava-me tudo. Quando eu ouvia aquela porta a ranger já sabia. E pensava o que fazia para os comensais que tinha na sala. E disse que aquilo não podia continuar. ‘Aquilo é que é o nosso futuro’, dizia ele para mim. Mas cozinhar para dois sítios era difícil. As pessoas na pensão estavam à espera do comer. E o empregado dizia: ‘Ó D. Lurdes, fulano ainda não tem comer’. E eu dizia para ele perguntar se queria omelete ou febras porque o meu marido levava-me tudo. Até que um dia ele chega à Shell e as pessoas viam-no chegar com os tabuleiros da comida e perguntavam onde é que ele ia buscar o comer. E ele dizia que era uma casa que tinha em Pombal. ‘E quem cozinha?’, perguntavam. Ele dizia que era eu e eles diziam: ‘Traga para aqui a sua mulher’.
Mas na altura não era só pastéis de bacalhau que vendiam na Shell?
Não. Fazia filetes, panados, pastéis de bacalhau e não fazia mais nada.
Para pôr no pão?
Eles comiam aquilo sem arroz. O arroz foi mais tarde e é uma história muito engraçada. Só fazia filetes, pastéis e panados. Comiam aquilo nos pratos, sem nada. Não sei como é que aquilo se espalhou. Há uns grandes dinamizadores que foram os corredores de automóveis. Passavam ali e gostavam muito daquilo e começavam a divulgar aquilo.
Sabe os nomes?
Ainda há uns anos veio aqui um que até tem um problema de pele. Eles eram muito famosos. Um deles era o Nené. E até jogadores de futebol. Depois começámos a ter muitas excursões, muitos autocarros. O meu filho era pequenino, andava a brincar fora e chegava a correr ao pé de mim e dizia ‘Mamã, tantos turras’. ‘O que é isso, filho?’. ‘São turras’, dizia. Eram militares. Havia muitas excursões e havia militares a passarem ali. Quando vim para aqui isto já tinha tanta expansão que a Shell quis fazer mais obras para ver se alargava tudo. Mas eles não tinham terreno. Eles começaram a vender muito mais gasolina. Eles mesmo disseram que vendiam mais desde que fomos para ali. Fiquei ali e depois tive que meter uma empregada para lavar louças, não era possível eu fazer tudo. Havia um rapaz ao balcão que foi para a tropa. E quando veio da tropa o meu marido disse-lhe que ele tinha o lugar dele no balcão. E ele disse pediu para o deixar ir para ao pé de mim para a cozinha, ele queria aprender. Depois ele é que me começou a pelar a pescada, a bater panados, e eu já fiquei mais aliviada. Então comecei a ter sopa da avó.
O que era a sopa da avó?
Ainda a tenho hoje. É uma homenagem que fiz à minha avó. É sopa de feijão, hortaliça, couve de caldo verde, batatinha, cenoura… vendemos muita sopa dessa. Começámos a vender a sopa lá e um dia – agora começa a história do arroz. Todas as semanas vinham clientes semanais da Covilhã, de Gouveia, do Norte, de Lisboa… Aquilo começou a ter cada vez mais pessoas até que um dia aparece um senhor que já era cliente, ia lá muita vez, e um dia pediu para entrar na cozinha. Era um senhor da Guarda. Eu até pensava que ele era de Seia mas o presidente da Câmara da Guarda disse que era de lá. Eu quis contar a história do arroz à família desse senhor que muito boa pessoa. Ele entrou um dia na cozinha com a mulher e disse-me assim: ‘Queria pedir-lhe uma coisa, a senhora não tem um arroz para acompanhar estas coisas?’. ‘Tenho feijão frade’, disse-lhe. Eu gostava de salada de feijão frade e o meu marido também. Comprava para mim mas era uma medida pequenina para os nossos almoços. E fazia migas. Mas não tinha nada disso para os clientes. Só tinha filetes, panados e pastéis. Depois fiz a sopa da avó. E ele insistiu, perguntou se eu não tinha mesmo nenhum arroz. ‘Hoje tenho arroz de berbigão para fazer para o meu almoço, para o do meu marido e do pessoal’, disse. ‘Arroz de berbigão? Não se importa de fazer um bocadinho para nós? Sou só eu e a minha mulher’. E eu fiz.
Ao balcão.
Tudo ao balcão. Eles passavam lá todas as semanas, acho que tinham negócios em Lisboa. Os filhos e os netos passam aqui agora. Ainda há dias estiveram aí quatro netos que me quiseram conhecer porque eu um dia quis contar a história do arroz e não sabia como havia de o fazer. Na semana seguinte o tal senhor voltou lá. Diz ele: ‘D. Lurdes não tem arroz de berbigão?’. Disse que não tinha, que só tinha quando ele era vivo porque não faço arroz de berbigão congelado. Mas nessa altura já sabia muita coisa. E só fazia fresco. E diz a mulher: ‘D. Lurdes, ele não se calou e agora quer trazer aqui a empregada para aprender o arroz de berbigão’. Eu expliquei-lhe a ela e ela explicava à empregada. Muito simples: a água do berbigão é que tem que se aproveitar quando se abrir o berbigão para fazer o arroz porque a água é que é boa. Lá lhe expliquei. E voltou, o marido, a perguntar se eu não tinha nenhum arroz. Não tinha. E disse que lhe podia fazer de cenouras ou ervilhas ou até tomate. E ele pediu arroz de tomate. Nas semanas seguintes que ele ia lá já não pedia outro arroz, só queria arroz de tomate. As pessoas começaram a vê-lo comer o arroz de tomate e começaram a pedir. Como foi com as migas e o feijão frade. Também foi assim. Viam o meu marido ou o pessoal a comer e perguntavam se não tínhamos para acompanhar.
Lia livros da Maria de Lourdes Modesto ou de alguém para aprender?
Lia. Tenho uma enciclopédia em casa. Tenho um escritório com centenas e centenas de livros de culinária. Da Maria de Lourdes Modesto até tenho uma coisa muito engraçada. Ela um dia veio aqui. Era também a Amália, e uma que escrevia para O Diabo, Vera Lagoa. Era nossa cliente e muito nossa amiga, já era da Shell. Escrevia de vez em quando nos jornais. A Maria de Lourdes Modesto veio cá um dia com um grupo de amigas e mandou-me chamar. Eu não a conhecia e ela estava aqui pela primeira vez. E diz-me: ‘Quero dizer uma coisa: este leite creme que a senhora fez nem eu sou capaz de fazer isto’. E eu até lhe disse que não custava nada a fazer. ‘Para a senhora’, disse ela. ‘Queria dar-lhe este recado, nem eu sou capaz de fazer isto’, disse. Nunca mais me esquece a frase ‘nem eu sou capaz de fazer isto’.
Qual o livro mais precioso que tem em casa? E o que gosta mais?
Agora ofereceram-me o último livro que saiu dela, foi o meu filho. Ele anda sempre à procura de coisas que sabe que gosto muito. Eu como os livros dela. Aliás, tenho-os todos. Alguns que ela me ofereceu também. Como tenho os livros da Amália. E a Amália também ia à Shell. Quem a conheceu lá foi um artista [Herman José] que fala muita vez disso.
Em pé ou ao balcão?
Era sempre em pé. Embora depois tivéssemos umas três mesitas e fizemos cá fora depois um toldo que tivemos que inventar. Tínhamos umas três mesas e um balcão e um dia o meu marido lembrou-se de fazer um toldo muito grande cá fora. E quando chovia, as pessoas iam lá para fora com o prato na mão e pingava dos beirais em cima do prato do comer. E aquilo fazia-me uma confusão tão grande a mim. Eu não podia ver aquilo. E a Shell não fez obras. Fui à reunião da Shell porque o inspetor da zona disse que só falando todos juntos. Fui a Lisboa com o meu filho e com o meu marido e eles disseram que não faziam obras nem aqui, nem na Cova das Faias nem em Odemira, onde tinham estações e restaurantes. Disseram que era certo que vendiam muito mais gasolina desde que estávamos ali mas não iam fazer obras. E eu disse ‘então não se admirem de eu ir fazer outra coisa para outro lado’. E um deles deu uma gargalhada.
Falava mais que o marido e o filho.
Sim, porque eu é que era a desgraçadinha. Eles andavam atrás de mim. Era uma mesa tão comprida só com homens. Não era preciso tanta gente para me dizerem que não faziam obras. Mas eu disse que ia dizer isto. E o meu marido: ‘Não digas, não digas isso’. Mas eu disse: ‘Senhor inspetor, é isso que tem para me dizer? Não faz obras na Shell?’, ele disse que não. Foi assim que me falaram: ‘Não temos o barómetro do mundo mas não fazemos obras em lado nenhum’. Mas eu estou convencida que eles já sabiam que aquilo ia ficar como está agora.
Como está agora?
Agora há a autoestrada… E eu disse: ‘Não se admirem de eu fazer uma coisa noutro lado’. Um deles deu uma gargalhada. Eu olhei, vi que era um deles que me disse: ‘Eu gostava de ver a senhora fazer outra coisa noutro lado’. E eu disse: ‘Gostava? Obrigada senhor engenheiro’. Pedi licença, levantei-me que já não conseguia conter as lágrimas. Desci aquela escada com o meu filho e o meu marido atrás de mim. Eu chorei tanto, tanto, tanto. E o meu marido disse: ‘Não chores filha, nós agora vamos almoçar, vamos conversar’. Olho para trás e disse-lhe assim: ‘Conversar já conversei. Ele há-de engolir a gargalhada que deu. Aquele terreno que temos além, este [onde está o Manjar do Marquês], vamos lá fazer um restaurante. A Shell não é nossa, eu quero fazer uma coisa para os meus vindouros”.
Já tinham comprado este terreno.
Já tínhamos, sim.
Com que propósito?
Para investir. Nunca pensámos fazer aqui isto. Muito menos o meu marido. E ele disse para o meu filho “a mãe está doente, temos de a levar ao médico”. Olho para trás e digo: “Não estou doente, não. Estou muito bem de saúde. Ele vai engolir aquela gargalhada, aquilo não se faz”. E o meu marido disse que íamos entregar aquilo e íamos embora. Eu disse que não queria. Tínhamos 50 anos e ele perguntou-me se eu ainda queria mais trabalho porque já era uma desgraçada de trabalho.
Na Shell trabalhava quantas horas por dia?
Ia para lá às 7h da manhã.
E saía às 4h?
Sim.
Só dormia três horas?
Sim. Nem sei como ainda sou viva. Tinha uma empregada só para lavar a louça e tinha o rapazinho para me pelar a pescada e bater os panados. Eu fazia tudo. Não tinham máquina de lavar roupa, não tinha empregada em casa. Não tinha máquina de lavar louça. Eu é que ia às compras todos os dias.
Como ia ao mercado?
A pé. Estive na Shell desde 1967 até 1986, estivemos lá muito tempo. Em 1986 vim para aqui. Estivemos 5 anos a fazer obras aqui. Só quando estava tudo pronto é que deixei a Shell.
Mas quando estavam na Shell ainda inventou outra iguaria?
O meu marido chega ao pé de mim e disse: ‘Sabes, devia de haver aqui um doce’. Estou a falar isto por causa do nome. E eu digo: ‘Sim, sim, arranjo. Mas não me peças pudins flan que eu não quero fazer isso. Mas arranjo um doce’. Como se chama o doce? É isto. ‘Ai não faças isso, ninguém vai comer esse doce, com esse nome ninguém vai comer’, disse ele. E eu disse que não ia meter aquele nome, que ia arranjar outro mas que ele tinha que esperar para eu pensar. Manjar porque é bom, Marquês porque é Pombal. E disse que já tinha o nome: Manjar do Marquês.
E que doce é?
Não posso dizer. Não posso contar. Um dia alguém quis saber o nome do doce e ofereceu 500 escudos a um empregado, que por acaso até era meu afilhado. Eu era madrinha destes todos que trabalharam aqui. E diz ele assim: ‘A minha madrinha não dá essa receita a ninguém’. Era um senhor do hotel de Coimbra, do Hotel Bragança. Disse que lhe dava 500 escudos para ver se ele descobria o que levava o doce. ‘A minha madrinha faz isso às escondidas, a gente não sabe nada. Ela tem um segredo nesse doce que ninguém sabe, nem as empregadas’, disse ele. E já foi aqui. Era cliente e quis saber. E ele disse logo que não valia a pena oferecer dinheiro porque ele não conseguia. Pode correr este país que não encontra doce igual. Aquilo tem mais do que um segredo. Quem gosta de trabalhar e quer fazer coisas bem feitas tem que perceber que aquilo leva muito tempo. Sou capaz de o pôr às 19h a fazer e às 23h ainda não está pronto. Aquilo tem um apuro e além do apuro tem um segredo que faz com que seja aquele doce. Tenho pessoas que adoram aquilo. Quando viemos para aqui, íamos para Lisboa, que o meu filho estudou primeiro em Coimbra e depois em Lisboa. Íamos todas as quintas-feiras a Lisboa, eu e o meu marido. Agarrei numa folha grande e disse ao meu marido: ‘Hoje é que vou escrever os nomes que quero para o restaurante’. Isto ia abrir. E ele perguntou: ‘Ainda não tens o nome?’. E eu: ‘Não, isto vai a Conselho de Ministros. Vou escrever os nomes que penso e vai para o pai, para o filho e para a mãe, vamos os três almoçar’. E também podia ir o amigo do nosso filho que ia todas as quintas-feiras almoçar com a gente. Iam ler tudo e escolher.
Onde almoçavam em Lisboa?
Em vários sítios. Em Lisboa hoje não se come em lado nenhum. Hoje tenho casa na Parede e normalmente como para aqueles lados. Gosto de comer na casa Galega, gosto de comer no Toscano porque a minha casa é lá perto. Mas há vários sítios. Há o Santa Maria, havia um que era muito bom mas que um dos donos saiu e aquilo já não é tão bom. O Porto de Santa Maria também já não é tão bom. Também gosto de ir ao Mar do Inferno, ela também se chama Lurdes. Já era cliente daquela família quando era em Alcabideche. O pai dele era o dono de um restaurante muito conhecido em Alcabideche e era bom.
Tem esse almoço em Lisboa…
E escolhemos o nome do restaurante, estava para abrir.
O seu marido, o seu filho e o amigo, escolheram Manjar do Marquês?
Não. Lembro-me de alguns. Era o Tacho, o Bago do Arroz, o Arroz de Tomate… Tinha muitos nomes. A Panela, a Lareira… Era uma folha grande que tenho pena de não ter guardado. E depois um deles pergunta se eu já não tinha escolhido um nome. Queriam que fosse eu. Disse que eles eram uns chatos e não queriam escolher. Então eu disse: ‘Acho que ali ficava bem o nome do doce porque toda a gente gosta daquele doce’. Para mim era Manjar do Marquês. E eles disseram que ficava. Também escolhi os Graças porque é o nosso apelido. E o meu filho disse que eu tinha razão. Ficou Manjar do Marquês. Depois vim para aqui trabalhar, foi outra dor de cabeça.
Primeiro era só aquela parte?
Não, fizemos as duas. Mas esta… Ainda hoje posso ter aqui 30 pessoas [sala interior] mas ali posso ter 100. É horrível. Horrível no bom sentido. Às vezes quero trazer para aqui pessoas que vejo que é um sítio mais sossegado mas gostam de estar no outro lado. Dizem que é mais rústico. É por isso. E foi assim a minha história.
Diz que gostava de ter sido atriz.
Gostava muito.
Mas disse que gostava de ter sido a Amália.
Gostava muito de cantar e eu tinha voz. Quando era miúda, de noite as pessoas pensavam que eu estava a dormir e eu, pé ante pé, ia para um sítio onde tinham uma telefonia – porque não havia televisão, quando eu tinha 11 anos – e eu ligava e ouvia a Amália a cantar. Adorava e cantava as canções dela, tinha voz.
Ela foi cliente do espaço da Shell.
Também, mas um dia veio aqui, teve aqui uma festa em Pombal e ela veio cá cantar. Mas era aqui que ela se vestia, que tomava chá, fazia aqui tudo.
No restaurante?
Na nossa casa.
Tornou-se íntima?
Sim, sim. Era nossa amiga. Um disse-lhe que ‘gostava muito de ser Amália e nunca me deixaram’. E ela disse-me para cantar. Comecei a cantar e ela disse que eu tinha voz e perguntou-me porquê que não cantei. ‘Não me deixaram’, disse eu. Não lhe quis dizer que me diziam que só os malucos é que cantavam e iam para o teatro. Por isso é que digo que não sou o que quis ser, sou o que a vida me fez ser.
A propósito das receitas, tirando a do Manjar do Marquês, há alguma que conta? Nunca pensou fazer um livro com as suas receitas?
Está tudo escrito.
Mas não está publicado.
Não.
Porquê?
Já tive um jornalista que me perguntou se eu não gostava de escrever um livro. Disse-lhe que estava tudo escrito, mas quero escrever um livro para o meu filho. Um livro conselheiro.
Além de receitas, o que terá mais?
Vou escrever para o meu filho aquilo que me vai na alma que é para ele nunca mexer nesta casa, deixar estar como está. E se algum dia tiver que a transformar que a transforme numa casa de velhinhos. Se ele um dia não puder e a família não quiser, que transformassem isto numa casa de velhinhos. Mas isso é um livro particular que quero escrever para ele. E os meus livros de receitas, está tudo, tudo escrito.
Quando alguém vem cá e lhe pergunta pela receita nunca a dá…
Vou dar-lhe um exemplo. Um dia lembrei-me de fazer um arroz de bacalhau com grão – gosto muito de criar. Depois de ter agarrado a tal situação a minha cabeça numa pára. Acho que sou uma pessoa irrequieta. Gosto de criar. Um dia o Paulo Gonzo estava aqui e eu fiz um arroz de bacalhau com grão. Ele gostou muito e perguntou-me como é que era feito. O meu filho chegou entretanto e até lhe disse: ‘Bem que se pode matar aí que ela não lhe vai dizer nada disso’. O segredo não é a alma do negócio?
Já viu os programas de televisão dos cozinheiros?
Eu queria aprender.
E não é ali que aprende?
Não.
O que acha dessa cozinha? Já foi a algum desses restaurantes?
Eu? Não. Sabe como chamo a essa comida? É a comida dos pauzinhos. Sabe porquê? Porque eles andam com uma pinça. Têm uma coisa no meio do prato e depois andam com uma pinça a meter coisinhas em cima. Chamo-lhe a comida dos pauzinhos. Deus me livre. Antes queria comer pão com queijo ou com manteiga.
Então não vê os programas?
Vejo, para me rir e para me divertir.
Qual é a sua refeição de excelência, que goste?
É uma coisa que não tenho aqui. É leitão, adoro.
E porquê que não tem cá?
O meu filho ainda há tempos falou nisso, uma pessoa que queria vender leitão para nós vendermos aqui. Eu disse que já tínhamos que chegasse. Eu gosto muito de comer leitão mas bom, num sítio onde eu sei que é bom. Angeja, é o primeiro. Dou-lhe 20 valores porque não posso dar mais, já dizia a Beatriz Costa. Angeja é perto da Anadia.
Há outro que é o Vidal, gosta desse?
Gosto. O meu filho disse que o Vidal podia. Eles são muito nossos amigos. Às vezes quando faço anos eles dizem que trazem um leitão e vêm aqui comer. Eles agora não têm feito isso por causa da pandemia.
O Vidal?
Sim. Mas os de Angeja também já me conhecem. Já lhes disse que tinha que ter lá uma quota. Há duas casas que é Angeja e a Tia Alice em Fátima. Gosto muito de lá ir porque gosto muito de ver limpeza, organização, pessoas simpáticas. Vou-lhe dizer onde vou: para leitão é lá em cima. A Tia Alice também é a das minhas preferidas. Também há a Fandanguita, em Fátima. Também é bom.
Não gostava de se confessar mas foi católica toda a vida?
Fui e sou.
Praticante?
Acho que é horrível. Há dias estive a falar com um padre e disse-lhe, contei-lhe esta história. Eu tinha sete anos e lembro-me de os meus pais me dizerem que íamos todos à confissão. E eu não podia dizer nada. Mas pensava ‘para quê? vamos ajoelhar-nos a um homem que tem, se calhar, mais pecados que nós?’. Na altura não sabia mas hoje sei que tem. Nós podemos estar em casa e confessar-nos a Deus, uma confissão só nossa. Agradecer a Deus o que nos fez e o que nos faz. E para nos proteger de certas coisas.
O que faz hoje ainda na cozinha?
Orientações. Mas há coisas que eu faço que ninguém faz. O doce, por exemplo. Quando me pedem coisas… Sou muito avessa a dar receitas. As pessoas que me conhecem bem nem perguntam, não vale a pena porque eu não dou. Sabe como faço? Digo que não me lembro bem como é. Vou despachando assim. Dizer outra coisa é feio e as pessoas não aceitam. As pessoas que me conhecem bem já sabem que não vale a pena. Não dou mas disfarço. E eu disse sempre a verdade. As receitas não as dou a ninguém, dou às minhas netas se elas quiserem. Mas tenho uma neta que quer aprender os doces e é para ela que estou a passar. Ela já tem os segredos todos. Fiz isto para os meus vindouros. Eu vou-me embora, já estou na altura de partir.
E o que faz mais?
Mais o arroz doce que ninguém faz. A minha neta ainda não apanhou mas os outros doces ela já faz. Esse já faz sozinha, tem o segredo.
Até pode dar as medidas mas depois a mistura… o que faz a diferença?
Acho que a diferença é ser diferente. Vou já dizer uma coisa. Quando vim para Pombal o arroz doce era intragável. Acho que atirava-se a uma parede e ficava lá. E não lhe punham ovos. Eu não como. Não gosto muito de doces. O único que como é o pudim flan, gosto muito.
Que começou por dizer que não fazia.
Não fazia porque nos fornos que tinha na Shell não dava. Não dava para fazer isso. E disse ao meu marido para não mo pedir que não o fazia. Muita coisa aprendi à minha custa. Sou uma autodidata. Nunca aprendi com ninguém embora tenha, na família, a minha avó e a minha mãe cozinhavam muito bem. A minha mãe assava leitão muito bem porque eles criavam. Arroz de coelho era impecável. Gosto de arroz comido à colher, malandro. Mas muitas coisas aprendi sozinha. Quando quero uma coisa penso ‘isto deve ser bom’. E faço para a minha família, para mim. E depois faço para os clientes.
Não se inspira nos livros? Nem da Maria de Lourdes Modesto.
Eu tenho todos, leio todos. Mas depois digo ‘se fosse eu, aqui fazia assim’. Eu não sei mentir. Mas se eu disser ‘fiz isto da Maria de Lourdes Modesto’, é mentira porque nunca fiz. Posso ler e pensar ‘isto é capaz de ser bom’. Por exemplo, as perdizes é uma receita que faço que tirei de um livro, acho que dela. É perdiz com 14 temperos, é muito bom. Havia um senhor que era caçador, era muito nosso amigo, que se matou. E quando me dava perdizes fazia assim. Acho que isso foi de um livro dela. Mas não sou inspirada em tirar receitas.
Não gosta de folgar.
Porque é o dia mais triste que eu tenho. Eu não gosto de estar em casa, gosto de estar é aqui. O dia mais triste que tenho é quando tenho que ficar em casa. Quero estar aqui com as pessoas à minha volta, ter os meus clientes, conversar com eles e dar-lhes o que tenho de melhor para eles irem felizes.