Dissuasão e guerra cibernética


A Inteligência Artificial está a desenvolver-se exponencialmente numa zona de turbulência e incerteza ética, da qual tanto poderá emergir como uma ferramenta determinante de progresso sustentável da humanidade e da sua qualidade de vida, como pode transformar-se numa arma de manipulação


Não devo estar longe da verdade ao intuir que a transição de ano que acabámos de viver terá sido uma daquelas em que menos se debateu o futuro com perspetiva e horizonte geopolítico alargado, tendo em conta a pressão brutal daquilo que espero possa estar a ser o “canto do cisne” da pandemia, acrescida no caso português pela aproximação de eleições legislativas e pela hiperbólica rescisão de Jesus, o treinador, com o Sport Lisboa e Benfica.

Reconheço também que alguns temas que têm uma importância crucial para o nosso futuro coletivo, precisam de alguma inovação na forma como são abordados e debatidos, sob pena de causarem algum cansaço precoce e de perigosas consequências. É o exemplo do debate sobre as alterações climáticas e sobre as estratégias de descarbonização, agora afunilado pela subida exponencial do preço da energia e pelo debate importante entre as soluções energéticas alternativas, confrontando tecnologias como o nuclear e o hidrogénio verde e modelos de exploração centralizados ou distribuídos. É também o caso do debate sobre o potencial e os riscos da digitalização, afunilado neste caso pelo debate sobre a desinformação, a manipulação e os impactos para a democracia e para a liberdade.

Dito isto e em contra corrente, tendo em conta também o debate sobre soberania, autonomia estratégica, segurança e defesa que não deixará de marcar a Presidência Francesa do Conselho da União Europeia e as eleições presidenciais que ocorrerão naquele país ao longo do mês de abril, aproveito este texto para sublinhar algo que tem passado mais ou menos despercebido no debate público. Trata-se do fim progressivo do equilíbrio do medo e da proteção indireta que recebemos com a dissuasão nuclear face à emergência da guerra cibernética, não obstante o oportuno alerta lançado recentemente por António Guterres apelando ao desarmamento nuclear.

As armas nucleares continuam a ser uma ameaça brutal, mas o risco emergente do uso da Inteligência Artificial para provocar disrupções sistémicas de danos incalculáveis em todos os sectores das sociedades, exige um foco global na tentativa de estabelecer um código de ética que impeça a proliferação dessas ferramentas, cujas barreiras à entrada são bem mais frágeis do que as que foram sendo estabelecidas para o acesso às tecnologias bélicas usando o nuclear.

A Inteligência Artificial está a desenvolver-se exponencialmente numa zona de turbulência e incerteza ética, da qual tanto poderá emergir como uma ferramenta determinante de progresso sustentável da humanidade e da sua qualidade de vida, como pode transformar-se numa arma de manipulação, controlo e destruição maciça da dignidade humana, da liberdade e da sociedade tal como a conhecemos.

No início de um novo ano, em que as resoluções e as intenções se multiplicam, é preciso preparar desde já os mecanismos de dissuasão face ao segundo cenário antes enunciado. A União Europeia, como potência multilateral alicerçada na paz e na liberdade não pode deixar de ter um papel crucial nesse desiderato vital. Um papel chave para a humanidade e também para a relevância geopolítica da União.

 

Eurodeputado do PS