Mário Cesariny. Uma respiração que torna o ar admirável

Mário Cesariny. Uma respiração que torna o ar admirável


Uma edição antológica das entrevistas concedidas pelo autor de Pena Capital atira-nos para um convívio fulgurante entre seres capazes de reunir em si o melhor de todas as épocas.


Temos pouca noção das coisas, também porque cada vez menos o acaso é defendido e investigado, isto num tempo em que tudo se conjuga para nos bloquear, em que vivemos como se aprisionados, desde logo nos nossos desejos, sem haver uma prática de apontar a vida ao além. Da literatura, estamos habituados à postura aceitante e servil de uns e à desorientação agressiva de outros, que nela se barricam e até da vida se vão desligando. No geral, os leitores são hoje levados a engolir delicadamente doses cavalares de pão-de-ló molhado em chá. São cada vez mais aqueles que encaram a arte como um mero suplemento da existência, exaltam-na pelos seus efeitos decorativos. Até os poetas se deixam reduzir a colecionadores de benesses, e também eles se resignam a andar em busca de emprego público. Poucos estão decisivamente implicados, desejosos de torcer a faca da linguagem na carne do tempo. A própria sensação da vida procura fazer-nos sentir como covardes. A arte que se pratica defende-se através de um registo de sobriedade, que se tornou o nosso último raciocínio. A rejeição há muito deixou de ser enfática. E, no entanto, até há pouco tempo não era tão raro assim dar com esses “bárbaros a quem a civilização enoja”. Ernesto Sampaio esclarece que “não se trata de possessos do espírito mórbido da negação, mas de gente a quem só a poesia salva do desespero total”. Sempre foram raros, mas há artistas que têm claro que devem ser impiedosos diante do que quer que se lhes meta no caminho, de tudo o que os impeça de se realizarem, convictos de que só os fenómenos capazes de uma vida implacável têm o direito de existir, e que, por isso, não se confundem com a cáfila que vive de se insinuar, como diz Witold Gombrowicz, pondo o seu trabalho debaixo do nariz das pessoas e gritando: “Isto é lindo! Delicie-se com isto porque é encantador.”

Mário Cesariny foi um dos nossos mais radiantes bárbaros, e serviu-se daquela errata capital que Charles Fourier propôs à circulação: “sempre que lerdes num livro a palavra civilização, leia-se selvajaria”. Buscar o convívio deste homem é imperioso, por haver nele um desejo de tal modo intenso de ser alumiado, que carregava nas palavras e nos gestos a radiação, as manchas, as variações astrológicas, dos seres que foram expostos a luzes violentíssimas. A sua presença entre nós, tantas vezes irada e em conflito com o esquema mental, com a cultura e como esta degrada e rebaixa as explorações com que a arte procura nutrir a vida, através do assombro da sua inteligência, da sua respiração admirável e tão vasta, persiste ainda, e das edições que se publicaram nos últimos tempos entre nós talvez nenhuma fosse mais urgente do que uma antologia das entrevistas que lhe foram feitas ao longo da vida. “Uma Última Pergunta” reúne ao todo vinte entrevistas, realizadas entre 1962 e 2006, o ano da sua morte. É um longo testemunho de uma existência que se deixou ir ao fundo sempre que as condições de o homem se aventurar naufragavam, de tal modo que aprendeu a respirar e mesmo a gritar debaixo de água. Mas se o seu testemunho é tão precioso, isso prende-se com um exercício a todos os níveis espantoso de transmissão dessas coordenadas secretas e até ilegais para um encontro desses espécimes inassimiláveis a este regme desgostante dos que se mantêm ligados à máquina em respiração assistida. “Nós sabemos que somos um erro, mas a consciência disso isola-nos do erro alheio”, isto ele repetia, citando António Maria Lisboa. E como o amigo terrivelmente iluminado e que se extinguiu demasiado cedo, há muitos outros que entreteceu à sua fala e corpo, tornando-se um passador de fogo, alguém que se entregou a uma vigília escavando um fosso abissal entre o canto que abrasa a voz e a terra e essa “música de galinha na brasa”. 

Se, à semelhança de Alexandre O’Neill, de quem este ano foram também recolhidas várias entrevistas no volume “Diz-lhe que Estás Ocupado”, Cesariny suspeitava bastante do género, ao contrário daquele, não dificultava o processo, ainda que se esforçasse por virar o bico ao prego, para impedir que se tornasse um interrogatório ou um exame, “ainda por cima remetido a um terceiro que está ausente”. Se as entrevistas de O’Neill, salvo uns quantos fogachos, são bastante enfadonhas, as de Cesariny são imensamente proveitosas, e em tantos momentos exigem ser incorporados entre os triunfos de uma obra que se dirigiu sempre à acção, a transformar o mundo, mudar a vida. E hoje lidas, estas conseguem ainda ser muitíssimo inconvenientes e até mesmo humilhantes face àquilo que se obtém de tantos escribas que aceitam abrir o bico, mas logo se enchem de cautelas, limitando-se a resmonear por meio de indirectas ou a pavonearem-se.

O seu exemplo deixava-se seguir até às regiões mais íntimas e usualmente inconfessáveis. Rejeitando a distorção e a falsificação da vida quando esta se deixa subjugar às comuns leis morais, começava por faltar ao escritório, pontualmente, todas as manhãs, tendo já no fim dos seus dias vincado que a vida serve mesmo para se furtar às obrigações que guiam os demais, para se aturar da sociedade os piores epítetos, com o de vagabundo à cabeça, e o seu exemplo desafoga-nos numa altura em que o cerco aperta mais que nunca, com o seu amigo e tão cúmplice editor Manuel Hermínio Monteiro a referir-se-lhe “como o gato desprendido que pára onde quer, (…) o filho de ourives [que] abria pela noite as portas do mar”, adiantando que “a cidade inundada muita tinta lhe emprestou para escrever os poemas”. Assim, há na sua obra esses humores tempestuosos, essa calma sedutora, essas imagens prenhes de um lirismo que nos ensopa até às raízes da alma, uma beleza penetrante que vai a par da capacidade de mimetizar a exuberância e diversidade do mundo, e a natureza milagrosa e traiçoeira, sendo um aplicado estudante do espanto dos seus desastres, produzindo momentos de revelação lancinantes.

Os seus versos larguíssimos, mesmo se breves, prendem uma entoação que derrama a existência, essa força alterosa, que se levanta em sucessivas vagas, uma matéria que vivifica, faz da razão um construir de formas em que temos como nos apoiar. A sua obra lembra-nos como a realidade se livra de todos os fins, persiste inacabada, e ensina-nos que há um riso cheio de frieza e seriedade, que repercute numa escala mais ampla, um riso “ditado por terríveis necessidades” e que deve abarcar não só o mundo dos inimigos, dessas culturas dominantes que nos exilam dos outros e de nós mesmos, mas um riso que se erga também sobre nós mesmos e aquilo que temos de mais caro. “Eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu não quero.” O verdadeiro combate que se trava na poesia é contra a dissolução, a perda dos sentidos que se afinam para a criação, assim, esta morde a mão que nos embala, a dessa vida quotidiana permanentemente esticada pela roda infatigável do hábito e da rotina. O fascínio e também o terror desta obra está na forma como assume uma infinita esperança nas capacidades do homem, assim, como assinala Ernesto Sampaio, chama-nos “para um espaço sem tempo, para uma luz que nos arranca à engrenagem histórica dos acontecimentos e dos homens da vida, esses tristes abortos da moral e do gosto, fantasmas de uma sociedade que, sendo a ficção de si própria, nem por isso é menos terrivelmente eficaz quando perturba o nosso pensamento e lhe falseia os mecanismos reais”. Acima de todas as denúncias, há essa que nos comove na sua insistência em notar que “há um sol esplendente nas coisas”, mas que a vida inteira por vezes é pouco para se vir esperar esses outros que poderão enfim cicatrizar a ferida profunda da solidão, seres novos, atentos, e que vibram impregnados de perfumes e de verdades desconhecidas.

“Decorrerão muitos séculos antes de nós mas não te importes”, anotava o poeta. E se essa espera não acabou com a sua morte, os esclarecimentos a que se presta vêm atingir esses equívocos com que se força o legado dos artistas aos museus da irrelevância, e, assim, sempre foi insistindo que o surrealismo, esse movimento do qual foi um dos expoentes em todo o mundo, “é sempre de hoje, nunca de ontem”. E adiantava ainda que “nada é tão mistificador como falar da actualidade ou da inactualidade do surrealismo. O surrealismo é de hoje, mas inactual, tão inactual como um índio o pode ser.” Depois rematava com uma declaração fulminante para os nossos dias, notando que é a actualidade que “é pequenina e sempre de ontem”.

Aquilo para o qual nos remetia é para o tempo em que a poesia estava ligada à vida, e também assim nos faz reflectir sobre o papel que tiveram em tempos os jornais, que eram como “livros feitos em comum”. E explicava que esse “escrever em comum” é um sintoma curioso que faz prever um grande aperfeiçoamento na arte da escrita, e foi essa possibilidade que abriu em tempos a mira para hipótese de chegarmos a poder escrever, pensar, agir em comum. Assim, comunidades inteiras, e mesmo nações poderiam empreender uma obra. Hoje, esta perspectiva foi-nos arrancada, e os jornais são cada vez mais produtos cuja propaganda funciona para minar e destruir esse exercício do pensamento e da acção em comum. E se os interesses económicos funcionam para nos desesperar, se a impressa diária redige as suas notícias na mortalha fétida que envolve o cadáver destes dias, sujeitos à pressão dessa ficção de crises sucessivas para não nos deixar respirar, Cesariny denunciou a subserviência ou subjugação dos sectores intelectuais, e em particular do meio editorial, que nada fazia para nos tirar dos ombros esta “nuvem asmática”, esforçando-se por nos devolver aos largos horizontes de outrora, reunindo as condição para “forçar sem limites a nossa admiração”.

E é sempre disto que se trata, de restaurar as ancestrais cadeias de transmissão para nos libertar do sufoco de uma época que se nos impõe como um beco sem saída, trazendo-nos a alternativa, outros exemplos, a própria informidade que desata o pensamento, e o livra dessas costuras que o fazem refocilar na vulgaridade dos lugares-comuns, restituindo-nos a um entendimento que “não é nem escuridão nem luz, mas precisamente uma mistura de tudo: fermento, desordem, impureza e acaso” (Gombrowicz). Ou, nas palavras de Cesariny: “Este é o segredo/ para todos os usos/ Rapto desobediência exaltação e morte”. Trata-se, assim, de nos habituar a um registo que vive bem entre sobressaltos, e na poesia como na pintura, ele sempre se moveu “por uma força de construção e de destruição de mundos, impossibilitando, assim, toda a forma estática”, como nos diz Bernardo Pinto de Almeida num prefácio ao mesmo tempo instrutivo e entusiasmante, que não consegue, contudo, evitar um acto de suprema deselegância ao afirmar que apesar da “canhestra singeleza das perguntas dos que, ignorantes, quase só o interrogaram sobre o que era acessório, resta, porém, de tão vasta e diversa recolha de umas centenas de páginas, alguma virtude que, só por si, justifica a edição e a leitura e as torna úteis ao conhecimento e mesmo ao estudo da obra”. Esta nota tipifica bem uma atitude de desprezo generalizado que vem macular o altíssimo mérito desta recolha, e é curioso, de resto, que a entrevista realizada por Bernardo Pinto de Almeida esteja longe de se destacar entre as restantes que este volume nos oferece. O que nos leva a pensar em como tantas vezes a admiração por um autor é coarctada por alguns amantes ciumentos, aqueles que em vez de uma paixão que se esforça por alargar as ruas para que o corpo e a obra circulem, pretendem antes encerrá-lo numa espécie de sacrário de acessos exclusivo a membros de uma seita qualquer. 

A obra de Cesariny tem de facto um apelo de tal modo intenso que dispensa bem os veladores de fogo, pois cada verso nos restitui a um rastilho que, uma vez aceso, é difícil cortar-lhe o caminho. Se, hoje, esses fenómenos incendiários são exibidos no regime bastante cínico dessas compreensões que procuram domesticar tudo, produzindo um efeito de vácuo de modo a que a combustão não deflagre, esta obra rasga a película, traz sempre um fósforo disfarçado de flor, tem esse grau de malícia capaz de desenhar uma gaifona e armar sarilho em menos de nada. E não exige grandes perícias, exames morfológicos nem de espécie nenhuma, sabendo como o poema se caça de ouvido, e que tudo aquilo que não fere de encanto a prosódia escapa à memória. A escola destes versos foi a dos grandes artilheiros, e o que nos lega nunca são meros artifícios verbais, golpes frios e calculados (“eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos/ as partes mais vulneráveis da matéria”), mas animam aquela tensão de um espírito face a fenómenos selvagens, assim exprime o melhor de um surrealismo que não se deixa comparar com as pequenas habilidades, truques e manipulações da literatura vendável. Sugerir uma comparação dessas, seria “o mesmo que comparar uma central nuclear com uma máquina de costura”, diz Ernesto Sampaio. E, também assim, Cesariny lembra que confundir o exercício da poesia com a sua celebrização é o mesmo que confundir um nascimento com um óbito. E nascer aqui significa esse esforço constante de não se deixar trancar entre as “os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas”, mas torcer essas grades, escapulir-se, levando em conta que a humanidade foi criada de tal maneira que tem de se definir constantemente e de escapar constantemente às suas definições. “Só me encontro e encontro na fala do poeta em seus plenos poderes”, diz Cesariny numa das entrevistas. “Fora dela, todo o objecto permanece intacto à vista e ao ouvido.” Assim, reconhecendo que a realidade não é algo que se possa encerrar numa forma definitivamente, desde logo porque a forma não é compatível com a essência da vida, no seu exercício espiritual, este poeta buscou a insurreição e a evasão por todos os meios, e foi o mais longe que podia à procura do grito que lhe era próprio. O rastro que nos deixou é valiosíssimo, pois como vincou, ao encontrar esse grito, “se acaso atingiu a vibração capaz, naturalmente tinha de encontrar outros gritos que nem sequer conhecia, em mais partes do mundo”.