Tempos agnósticos (Um outro olhar sobre o fenómeno da corrupção)


À margem das redes sociais, e dos vómitos e dejetos ignóbeis que nelas se projetam permanentemente, nada parece fazer mobilizar a atitude crítica dos cidadãos.


Vivemos tempos agnósticos.

Não há muitos anos, quando se editava um livro sobre um tema relevante para a humanidade e os destinos do mundo, tal obra era lida, comentada e tomada em consideração pelos intelectuais, pela a Igreja, pelos políticos, pelos jornalistas e comentadores, pelas pessoas, mais ou menos interessadas, que se preocupavam com a sorte dos homens e das sociedades.

Quando um Papa publicava uma encíclica, a Igreja e os fiéis discutiam-na e procuravam que os seus ensinamentos passassem a influir na sua vida e obra.

Davam-na a conhecer ao mundo e procuravam que ela o influenciasse.

Quando um dirigente de um grande partido fazia um discurso que rompesse com o status quo, muitos eram os outros responsáveis partidários e os que, em geral, se preocupavam com a política, que o liam, anotavam e sobre ele teciam comentários críticos igualmente relevantes para todos a quem ele se dirigia.

Qualquer relatório sobre a desigualdade e a ignominiosa distribuição da riqueza que campeiam no mundo ou num dado país provocava um sobressalto cidadão e obrigava os responsáveis políticos a sobre ele tomar posição pública, mais não fosse para, aparentemente, anunciar um futuro, próximo ou mais distante, em que a justiça se realizasse.

Quando os falcões da guerra esboçavam cenários bélicos capazes de fazer perigar os destinos da humanidade, ou mesmo quando as hostilidades se iniciavam, raros eram os que, sobre tais pesadelos, não se pronunciavam, num sentido ou no outro, mobilizando movimentos populares na defesa da paz e da vida.  

Quando um filme, uma peça de teatro, uma ópera, um romance ou uma coletânea de poesia eram divulgados e tocavam assuntos que mexiam com a condição humana, muitos eram os que, nos cafés, nos grupos de amigos, na imprensa, na rádio, e mesmo na televisão, discutiam o seu significado e procuravam nele um sentido para a sua vida e a dos outros.

À esquerda e à direita havia convicções fortes que se manifestavam e eram capazes de fazer mover os homens e os céus.

Hoje, só o discurso simplista e enganador da extrema direita populista e racista, difundido irresponsavelmente, à laia de entretenimento radical, por todo o tipo de media, parece galvanizar, mesmo que não muito e nunca por muito tempo, uns quantos cidadãos.   

Fora das redes sociais, e dos vómitos e dejetos ignóbeis que nelas se projetam permanentemente, nada parece fazer mobilizar a atenção e a atitude crítica dos cidadãos.

Do lado dos ideais democráticos, poucos, e com pouco êxito, conseguem que os cidadãos, por vezes, se emocionem, se movimentem e se decidam a intervir.

Menos, ainda, são os que, organizada e coerentemente, procuram que eles reflitam em termos racionais sobre os problemas reais da vida em sociedade e procurem para esses soluções que lhes deem remédio verdadeiro por, precisamente, irem às causas que lhes estão na origem.  

À margem das discussões sobre a economia – e sempre sobre a mesma economia e os correspondentes dogmas, que se querem inquestionáveis – parece, na verdade, não haver alternativa para as vidas injustiçadas de um número cada vez maior de homens e mulheres.

Vejamos, por exemplo, a questão da corrupção: quem, verdadeiramente, procura abordar o fenómeno analisando as suas raízes e dimensões económicas e institucionais atuais?

O que apenas se evidencia – o que apenas parece interessar e resolver o problema – é a galeria de retratos dos corruptos de nomes sonantes.

Contudo, mesmo que tais criminosos estejam totalmente envolvidos, visível ou invisivelmente, na arquitetura orgânica e funcionamento normal do sistema político-económico existente, raramente este é, a esse propósito, questionado nos seus fundamentos e consequências.

A discussão sobre a corrupção e o seu noticiário, mais se assemelham, por isso, a um concurso televisivo em que juízes, procuradores, advogados, polícias e arguidos, e respetivos amigos e inimigos circunstanciais se vão sucedendo no palco da glória ou do inferno, ao sabor da pontuação dada por comentadores ignorantes ou parciais, para direto benefício dos prime time das televisões e real confusão e desgaste democrático da opinião pública.

Pobre e ingénua Justiça – e seus magistrados – que julga ser, a esse respeito, capaz de, sozinha e armada apenas com códigos e leis penais, lhe fazer frente.

Como se engana e, mesmo sem o querer, nos ajuda a enganar também!

A corrupção não é já, e apenas, uma patologia mais do sistema.

Não sendo o sistema, ela é-lhe, de certa maneira, agora inerente.

A lógica de uma e a do outro, mesmo que não coincidentes, não são, na realidade, totalmente incompatíveis como alguns desprevenidos propalam; antes se suplementam e articulam no seu funcionamento.

Todavia, nada, nem ninguém, consegue hoje, de facto, beliscar, verdadeiramente, a hegemonia da vulgata económica neoliberal e os interesses já descontrolados que ela visa ideologicamente sustentar, mesmo que à custa da degradação dos princípios e valores humanistas e democráticos.

E, todavia, é necessário tentar. Tentar sempre!        

 

 

Tempos agnósticos (Um outro olhar sobre o fenómeno da corrupção)


À margem das redes sociais, e dos vómitos e dejetos ignóbeis que nelas se projetam permanentemente, nada parece fazer mobilizar a atitude crítica dos cidadãos.


Vivemos tempos agnósticos.

Não há muitos anos, quando se editava um livro sobre um tema relevante para a humanidade e os destinos do mundo, tal obra era lida, comentada e tomada em consideração pelos intelectuais, pela a Igreja, pelos políticos, pelos jornalistas e comentadores, pelas pessoas, mais ou menos interessadas, que se preocupavam com a sorte dos homens e das sociedades.

Quando um Papa publicava uma encíclica, a Igreja e os fiéis discutiam-na e procuravam que os seus ensinamentos passassem a influir na sua vida e obra.

Davam-na a conhecer ao mundo e procuravam que ela o influenciasse.

Quando um dirigente de um grande partido fazia um discurso que rompesse com o status quo, muitos eram os outros responsáveis partidários e os que, em geral, se preocupavam com a política, que o liam, anotavam e sobre ele teciam comentários críticos igualmente relevantes para todos a quem ele se dirigia.

Qualquer relatório sobre a desigualdade e a ignominiosa distribuição da riqueza que campeiam no mundo ou num dado país provocava um sobressalto cidadão e obrigava os responsáveis políticos a sobre ele tomar posição pública, mais não fosse para, aparentemente, anunciar um futuro, próximo ou mais distante, em que a justiça se realizasse.

Quando os falcões da guerra esboçavam cenários bélicos capazes de fazer perigar os destinos da humanidade, ou mesmo quando as hostilidades se iniciavam, raros eram os que, sobre tais pesadelos, não se pronunciavam, num sentido ou no outro, mobilizando movimentos populares na defesa da paz e da vida.  

Quando um filme, uma peça de teatro, uma ópera, um romance ou uma coletânea de poesia eram divulgados e tocavam assuntos que mexiam com a condição humana, muitos eram os que, nos cafés, nos grupos de amigos, na imprensa, na rádio, e mesmo na televisão, discutiam o seu significado e procuravam nele um sentido para a sua vida e a dos outros.

À esquerda e à direita havia convicções fortes que se manifestavam e eram capazes de fazer mover os homens e os céus.

Hoje, só o discurso simplista e enganador da extrema direita populista e racista, difundido irresponsavelmente, à laia de entretenimento radical, por todo o tipo de media, parece galvanizar, mesmo que não muito e nunca por muito tempo, uns quantos cidadãos.   

Fora das redes sociais, e dos vómitos e dejetos ignóbeis que nelas se projetam permanentemente, nada parece fazer mobilizar a atenção e a atitude crítica dos cidadãos.

Do lado dos ideais democráticos, poucos, e com pouco êxito, conseguem que os cidadãos, por vezes, se emocionem, se movimentem e se decidam a intervir.

Menos, ainda, são os que, organizada e coerentemente, procuram que eles reflitam em termos racionais sobre os problemas reais da vida em sociedade e procurem para esses soluções que lhes deem remédio verdadeiro por, precisamente, irem às causas que lhes estão na origem.  

À margem das discussões sobre a economia – e sempre sobre a mesma economia e os correspondentes dogmas, que se querem inquestionáveis – parece, na verdade, não haver alternativa para as vidas injustiçadas de um número cada vez maior de homens e mulheres.

Vejamos, por exemplo, a questão da corrupção: quem, verdadeiramente, procura abordar o fenómeno analisando as suas raízes e dimensões económicas e institucionais atuais?

O que apenas se evidencia – o que apenas parece interessar e resolver o problema – é a galeria de retratos dos corruptos de nomes sonantes.

Contudo, mesmo que tais criminosos estejam totalmente envolvidos, visível ou invisivelmente, na arquitetura orgânica e funcionamento normal do sistema político-económico existente, raramente este é, a esse propósito, questionado nos seus fundamentos e consequências.

A discussão sobre a corrupção e o seu noticiário, mais se assemelham, por isso, a um concurso televisivo em que juízes, procuradores, advogados, polícias e arguidos, e respetivos amigos e inimigos circunstanciais se vão sucedendo no palco da glória ou do inferno, ao sabor da pontuação dada por comentadores ignorantes ou parciais, para direto benefício dos prime time das televisões e real confusão e desgaste democrático da opinião pública.

Pobre e ingénua Justiça – e seus magistrados – que julga ser, a esse respeito, capaz de, sozinha e armada apenas com códigos e leis penais, lhe fazer frente.

Como se engana e, mesmo sem o querer, nos ajuda a enganar também!

A corrupção não é já, e apenas, uma patologia mais do sistema.

Não sendo o sistema, ela é-lhe, de certa maneira, agora inerente.

A lógica de uma e a do outro, mesmo que não coincidentes, não são, na realidade, totalmente incompatíveis como alguns desprevenidos propalam; antes se suplementam e articulam no seu funcionamento.

Todavia, nada, nem ninguém, consegue hoje, de facto, beliscar, verdadeiramente, a hegemonia da vulgata económica neoliberal e os interesses já descontrolados que ela visa ideologicamente sustentar, mesmo que à custa da degradação dos princípios e valores humanistas e democráticos.

E, todavia, é necessário tentar. Tentar sempre!