Este ano, pelo que vou ouvindo e pelo que vou sentindo, o espírito natalício está frágil, envolto na névoa da dúvida e da incerteza sanitária que são inimigas da empatia, e que ao mesmo tempo, para quem pode e sabe, convidam a usar mais ainda os novos modelos tecnológicos de acesso, troca e de interação, como substitutos das sempre animadas trocas de prendas e de convívios presenciais que em condições normais promovem a fusão de sentimentos de partilha e pertença.
Além do vírus e das suas variantes e em conexão com eles, as tecnologias de interação virtual, importantes auxiliares no cumprimento das recomendações para fazer face ao momento, se se cristalizarem ameaçam deixar o espírito de Natal encravado para sempre numa longínqua chaminé da memória. É preciso resgatar o Natal, percebendo que o admirável mundo novo da parafernália tecnológica veio para ficar, mas só precisamos de imunidade de grupo no que à saúde diz respeito. A imunidade do sentido e dos sentidos será a morte do que fomos e do que somos.
No livro A Era da Inteligência Artificial, editado este ano em Portugal pelas Publicações D. Quixote, que junta o antigo Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger a dois reputados especialistas, gestores e investidores na transformação digital, é descrita uma experiência que nos convida a refletir sobre o futuro do Natal e ao mesmo tempo sobre o futuro da humanidade.
Em síntese, relatam os autores, foram colocadas a um algoritmo de terceira geração (GPT -3 – Generative Pre-Trained Transformer) treinado para trabalhar sobre textos humanos e gerar novos textos a partir deles, três perguntas. Compreendes? Tens Consciência ou algum tipo de moral? Pensas? O GPT -3 respondeu à primeira questão com um sim e às duas seguintes com um não. Ou seja, compreende como se faz e faz muito mais depressa e com muito menos hesitações que qualquer ser humano. Não julga o que faz senão pelos padrões que compreende e que compreende melhor do que alguma vez foi compreendido e não existe enquanto fonte de imaginação, mas é um recurso extraordinário de concretização, com capacidades muito para além do que alguma vez foi imaginado.
E que tem a ver isto com o Natal? Um Natal asséptico, programado, otimizado pelas linguagens tecnológicas é um Natal que esquece as pessoas, a compaixão, a simbologia, a humildade do renascimento numa gruta seminal, entre pastores, animais, estrelas e reis magos. A ética e a moral são mais necessárias que nunca, mas só ilusoriamente estão disponíveis nas aplicações de entrega. Muitos menos se pode encomendar a capacidade de sonhar ou a sensação retemperadora e desafiante de que estarmos aqui e agora, neste mundo, por algo mais do que simplesmente aqui estarmos.
Que aquilo que este ano não pudermos fazer para nos protegermos a nós e à comunidade em que vivemos não morra no nosso coração, na nossa memória e no nosso desejo mais profundo, para que possa voltar a rebentar com exuberância assim que a terra volte a estar fértil para semear, sejam quais forem as tecnologias da sementeira e da colheita. O espírito de Natal é fruto da nossa natureza, da nossa humanidade e da nossa singularidade. Um Feliz Natal para todas e para todos.
Eurodeputado do PS