A precipitação em legislar


A última coisa de que neste momento precisamos é da criação de sucessivos impedimentos de juízes de instrução, levando a que os processos penais fiquem paralisados, e que aumentem exponencialmente os riscos de prescrição.


No passado dia 4 de Novembro, o Presidente da República anunciou a dissolução do Parlamento e marcou a data das eleições legislativas para 30 de Janeiro. No entanto, apenas no dia 5 de Dezembro o Parlamento veio a ser formalmente dissolvido, tendo sido então marcadas as eleições. Tal permitiu que, durante mais de um mês, o Parlamento, apesar da dissolução anunciada, se mantivesse em plenitude de funções, tendo aprovado precipitadamente toda uma série de diplomas, que efectuaram alterações a regimes estruturantes do nosso sistema jurídico. Como naturalmente seria de esperar porque, como diz o povo, depressa e bem não há quem, o resultado foi uma série de desastres legislativos, que os portugueses irão pagar muito caro nos próximos tempos.

Um dos exemplos típicos desta situação foi a estratégia nacional contra a corrupção, um diploma que nasceu com muitos defeitos e que não estava manifestamente em condições de ser agora aprovado. Apesar disso, houve um entendimento entre o PS e o PSD para que o diploma fosse imediatamente aprovado, tendo apenas sido rejeitada a sua parte mais polémica, a relativa aos acordos sobre a sentença. O Parlamento acabou assim por aprovar pacificamente o diploma no passado dia 19 de Novembro, tendo o mesmo sido igualmente objecto de promulgação pelo Presidente da República sem qualquer reparo, tornando-se assim a Lei 94/2021, de 21 de Dezembro. O problema, no entanto, é que essa lei alterou o art. 40º do Código de Processo Penal, acrescentando um nº2 que aumentou as situações de impedimento dos juízes, que agora deixaram de poder participar na instrução do processo, sempre que tenham praticado qualquer acto da competência do juiz de instrução durante o inquérito. Uma vez que o número de juízes de instrução é reduzido, tal implicará uma multiplicação de impedimentos para a realização da fase da instrução, o que pode bloquear completamente a nossa justiça criminal.

Precisamente por esse motivo, o Conselho Superior da Magistratura, segundo informou o JN no passado dia 23 de Dezembro, já veio declarar que esta alteração poderá criar o “caos nos tribunais” por falta de recursos humanos, pedindo por isso uma revisão urgente da lei por parte do Parlamento que sair das eleições. Segundo referiu o Conselho Superior de Magistratura, se nada for feito, estas situações “poderão pôr em causa o direito de acesso aos tribunais” garantido pelo art. 20º da Constituição, bem como “o direito a uma justiça num prazo razoável”.

Com a justiça portuguesa a atravessar uma fase de grande descredibilização, tendo-se gerado nos cidadãos uma imagem da sua ineficiência e incapacidade de punir os poderosos, a última coisa de que neste momento precisamos é da criação de sucessivos impedimentos de juízes de instrução, levando a que os processos penais fiquem paralisados, e que aumentem exponencialmente os riscos de prescrição. É por isso fundamental evitar a todo o custo que tal venha a ocorrer.

Dado que a Lei 94/2021 entrará em vigor 90 dias após a sua publicação, em Março teremos este novo impedimento dos juízes já em vigor, com a anunciada paralisação dos processos. Uma vez que os novos deputados só tomarão posse em Fevereiro, qualquer alteração a esta lei terá por isso que ser aprovada mais uma vez em contra-relógio para evitar o caos que dela poderá resultar.

É manifesto que uma revisão do Código de Processo Penal não se pode fazer desta forma. O Direito Processual Penal é um dos mais importantes segmentos da nossa ordem jurídica, sendo essencial para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, já tendo por isso sido qualificado como “Direito Constitucional concretizado”. Por esse motivo, uma sua revisão não pode ser efectuada de forma apressada e atabalhoada, tendo que ser realizada de forma serena e baseada em estudos sólidos, em que as consequências das alterações legislativas tenham sido adequadamente ponderadas. É mais que tempo de deixarmos de ter um legislador à deriva no sector da justiça.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990