O café como lembrança ou ficção literária

O café como lembrança ou ficção literária


Nas últimas décadas, a vida foi sendo desmobilizada dos seculares passeios do nosso adro, e o café enquanto instituição literária perdeu o seu papel não apenas como zona de recreio mas, sobretudo, como laboratório para se divisar os territórios do pensamento e as posições a conquistar por meio da arte.


Ainda antes da peste ter vindo sobre a cidade e o mundo, há um bom tempo que não se fazia outra coisa senão fechar as portas, o que veio a tornar-se um verdadeiro tique. As pessoas trancam-se julgando castigar o mundo, que ficaria do outro lado, impressionado com tal grau de convicção, com essa soberania e suficiência. E é certo que, por um tempo, tem-se algum sossego, mas, depois, a ansiedade retoma o seu tic-tac mordendo os calcanhares do outro, e se, então, gostaríamos de trancar tudo, até as janelas, aos poucos damo-nos conta de que assim falta o próprio ar, e a enxaqueca, naquele sufoco, vai martelando mais e mais as têmporas. Escapamos do mundo para logo lhe sentirmos a falta e nos enredarmos em pobres sucedâneos, espaços menores onde se dá “uma espécie de cloroformização das palavras e dos gestos” (Eduardo Prado Coelho), e isto porque fizemos da nossa perda de sensação momentânea um motivo para capitular, convencendo-nos de que estamos a viver no meio de palavras vulgares, de uma gente abastardada, bisonha, cabisbaixa, entre a qual vale a parada mínima, o cinismo generalizado. E se por vezes isso é uma parte da realidade, nem é a metade da história. E o certo é que continuamos desesperadamente necessitados desses pontos onde se cruzam os rumos de tantos, lugares onde se alimenta a obsessão, espaços apátridas como a livraria e o café, um lar para além dos pontos cardeais, esse lugar que pode ser quarto e uma nave, onde quem faz dos livros um hábito vive uma vida ao mesmo tempo sedentária e errante. Ali somos seres isolados que se vêem restituídos à sua vasta tribo e longa tradição. O café e a livraria faziam parte dessas referências fora do tempo e do espaço, e a sua função era não apenas reunir pessoas, amigos, conhecidos e mesmo inimigos, mas um espaço armadilhado para fazer confluir emoções em torno de algumas lendas e fascínios.

Estamos no dealbar de uma era em que esses espaços mais ou menos históricos são notícias apenas porque encerram portas. É um eco desse equívoco geral em que cada um de nós se tranca, buscando uma interioridade que, depois, resulta devastada, pois não existe um lado de cá sem a percepção que nos chega do de lá. Como nos recorda a poeta Ingeborg Bachmann, “a sensação do mundo como um todo delimitado é-nos sugerida porque nós, enquanto sujeitos metafísicos, não somos já parte do mundo, mas a sua ‘fronteira’”. Estes lugares seriam como um caminho que se faz através da fronteira, nesse regime do que existe fora do mundo na condição de o delimitar, de o confrontar, pensar e falar sobre ele. Esse foi o papel dos grandes cafés que se espalharam pela Europa. Assim, do mesmo modo que Walter Benjamin disse que “enquanto houver mendigos haverá mitologia”, George Steiner explicava como os cafés eram uma forma de se entender a esquadria das nossas cidades, desse Velho Continente que se distingue por ter sido sempre “percorrido a pé”. “A cartografia da Europa nasce das capacidades, dos horizontes perceptíveis, dos pés humanos. Os europeus, homens e mulheres, percorreram a pé os seus mapas, de lugar em lugar, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade. Na maior parte dos casos as distâncias são uma escala humana, podem ser vencidas por um viajante a pé (…) Este facto determina uma relação seminal entre a humanidade europeia e a sua paisagem. Metaforicamente, mas também em termos materiais, essa paisagem tem sido moldada, humanizada, por pés e por mãos.” Ao cercar a sua “ideia de Europa”, Steiner vê-se obrigado a sentar-se no café, a observar o modo como este foi “um espaço para encontros amorosos e conspirações, para o debate intelectual e a bisbilhotice, para o flâneur e para o poeta ou o metafísico com o seu caderninho”.

O desaparecimento dos cafés significa também uma forma de desmaterialização do mundo, a perda dessa escala humana, numa altura em que cada vez mais a realidade física parece acessória de tudo aquilo que é transferido para a encruzilhada virtual, para esse regime que tem vindo a produzir um novo sujeito, pós-histórico, no entender de António Guerreiro, o sujeito digital. Numa das suas crónicas no jornal “Público”, este crítico da cultura notava como “hoje, os momentos tradicionalmente sociais da vida pública estão a desaparecer e a ser substituídos pela sua versão online, em que os actores não participam em carne e osso, não se confrontam cara a cara, mas como utilizadores da rede, o que os torna semelhantes e homogéneos, para além das diferenças ideológicas, biográficas e de género”. Nesse “aquário digital” para o qual nos vimos transferidos, se somos, por um lado, cada vez mais como peixes afectados na sua memória que se torna circular e constrangida a ciclos cada vez mais curtos, estamos sujeitos à adaptação coerciva que esse líquido amniótico consegue, definindo a nossa vida interior segundo os padrões que orientam o cardume. Analisando a ferramenta do Facebook que nos permite “criar eventos”, Guerreiro nota que, em boa verdade, não se trata de criar nada, mas de publicitar. E, a partir desta formulação fraudulenta, ele consegue mostrar esse mecanismo perverso em que, na verdade, a sinalização digital de um evento acaba por funcionar como o verdadeiro evento. “Aquilo que virá a realizar-se, colocando as pessoas em presença, é apenas um acontecimento diferido daquilo que se passou antes, que foi o anúncio, o acto de tornar público”, diz o crítico, e leva a sua hipótese até ao fim concluindo que, “muitas vezes, ‘criar o evento’ dispensaria até que ele se realizasse, se não houvesse necessidade de manter sólida a relação fiduciária com uma realidade que, neste processo, acaba por se tornar algo tão abstracto como o acontecimento virtual que a ‘criou’”.

O café enquanto instituição literária dissolveu-se há muito, e o que resta são alguns estudantes que dormindo em quartos miseráveis, buscam ainda esses espaços como um escritório onde é possível algum recolhimento sem ficar encafuado, buscam o que resiste ainda daquilo a que Stefan Zweig chamava uma “espécie de clube democrático, acessível a qualquer um pelo módico preço de uma chávena de café”. Mas a definição destes espaços enquanto clubes do espírito apenas persiste enquanto velho mito, matéria para sonhos hoje impossíveis. Eram desde logo atracadouros nas zonas insólitas, nessas bainhas da fantasia tocadas pela sordícia, e eram lugares ferozmente heterogéneos, pense-se em cafés como o Royal (“um café magnífico, grande, era como a sala de um barco”, assim o recordava Cesariny, que ali passara tantas tardes a escrever, e admitiu que lhe terá bafejado no espírito o seu “navio de espelhos”), o Montecarlo ou a Ideal das Avenidas, no Gelo ou mesmo no Botequim… Na capital não pode também deixar de se referir o Nicola ou o Martinho da Arcada, a Brasileira no Chiado. No Porto, os mais referidos são o Majestic, Guarany, Aviz e Piolho. Mas isto são coordenadas que se referem menos à geografia do que ao tempo, pois nesses lugares não resiste nada desse fervilhante convívio que vamos exumando de algumas das memórias que ficaram dessa realidade que nos parece agora ficar inteiramente do outro lado da vida. Mesmo Luiz Pacheco, que tão pouca paciência tinha para essas lendas costuradas à luz da idiotia e do exagero, da operação de beata mitificação do passado, para mandar instalar um realejo e fazer o gosto aos que julgam resgatar um mundo analógico dando à manivela dessa nostalgia fétida que não deixa que nada de autêntico respire, mesmo ele reconhecia que houve qualquer coisa no Café Gelo, naquela clientela que, nos anos 50-60, ali recolhia, deixando claro que a haver segredo terá sido ser esse um espaço onde não havia homogeneidade de espécie nenhuma. Diz que coexistiam ali tipos dos 8 aos 80, e no seu costumeiro registo hábil e maldoso nota que tanto se apanhava lá esse “caco infantil” que era José Carlos González como Raul Leal, do Orpheu, “caquético total”. Depois nem a fama de que este ganhou devia nada a uma identidade ideológica, uma vez que se apanhava ali desde fascistas à Goulart Nogueira a anarcas como António José Forte, Henrique Tavares, Saldanha da Gama. Mas no que toca aos níveis sociais esta arca exorbitava ainda mais, e Pacheco diz que era um conhecido pouso de “prostitutas, bêbados e maricas”. Também tinha a sua ala para “maluquitos”, e ele refere António Gancho que, antes de ir parar ao Telhal encontrou ali outros que tinham uma capacidade semelhante para afinar até ao caos as suas miríficas conjecturas. É nesse aspecto que um café podia ser um laboratório, um sítio onde havia condições para a solidão ser dividida entre muitos, para se fazer dos outros o grilo da consciência e o dragão do pavor íntimo que cada um alimenta por dentro. E neste ponto é importante reconhecer, como nos diz Zweig, que “tudo o que de extraordinário e mais poderoso se produz na nossa existência só se atinge através da concentração interior, através da monotonia sublime, sagradamente aparentada com a loucura”. Essa monotonia que permitia criar a mola para sair a desfigurar a partir de dentro o quotidiano, para ferver lenta e longamente febres etílicas e outras, e se em espaços como o Gelo não havia nenhuma programação estética, o lado acidental das coisas mostrava-se mais profícuo. “Dali não saiu Revista, doutrina, escola que se aproveitasse. Então!? Havia, isso sim, um espaço de convívio em liberdade plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo arrivismo, a vida prática, as etiquetas sociais que noutros meios, da mais categorizada Oh Posição oficial, se evidenciavam”, diz-nos Pacheco.

Cesariny diz que aqueles “eram cafés onde se podia estar”. E diz que era um alívio: “Metíamo-nos ali abrigados do fascismo a fumar e a conversar anos inteiros.” Mas depois começaram a dinamitar a atenção. Ele fala na tragédia que se deu nos anos 60 quando apareceu a televisão. “Com aquilo aberto, nos cafés, era impossível não olhar. E já não se podia escrever, embora se pudesse falar.” Mas hoje até isso está difícil. Há muito que a arte de conversar se perdeu, o gozo de ir memorando mirabolando, de narrar cada um a sua vertigem pessoal, para tentar reatar, contra as razões imperiosas do mundo, esse sentido das coisas num fio que os outros iam ajudando a tornar tenso, pendurando-se, revezando-se. Quando o lume deste estava gasto, era o outro que segurava a chama. Iam afiando assim um juízo comum, mais perigoso quantos mais fossem os espíritos a ter-se libertado nele. Criavam-se assim obras comunitárias, produziam-se visões menos circunscritas, capazes de caminhar e dispersar-se por tempos diversos. Essas obras que geram comunidades apoiam como os faróis quem se atreve a experimentar a deriva, a explorar possibilidades mais além da imediata noção que uma época faz das coisas.

Nos nossos dias, o que a televisão começou a internet e as redes sociais parecem estar em condições de finalizar. De algum modo subsumiram e diluíram o que restava ainda da convivência, integrando todos os circuitos em toda a parte. “Agora as pessoas parece que têm medo umas das outras, não se encontram”, notava Cesariny numa entrevista à Antena 1, a um ano da sua morte. “Eu acho que para haver uma geração de qualquer coisa tem de haver uma comunicação entre várias pessoas. Uma discussão, um grupo para se andarem a batalhar uns contra os outros. Mas isso é uma condição especial, de se poder falar de uma nova geração, é sempre um grupo. Agora as novas gerações não sabem de onde vêm, é cada um por si, e os outros que se lixem, não é?”

Este individualismo devastador que as nossas sociedades tanto acirram tem um desenho nos espaços que habitamos. “Tudo se desmorona, o centro já não aguenta”, como se lia nos versos de Yeats. Mas em vez de pura anarquia, é um excesso de ordem que entra no sangue, uma ordem desoladora e odiosa que leva a encarar o outro como um rival, um competidor, “e por toda a parte/ A cerimónia da inocência [foi] submersa./ Aos melhores falta-lhes convicção, enquanto os piores/ Ardem de paixão intensa.”

Assim, hoje, as zonas históricas e o centro das cidades funcionam de forma cada vez mais desarticulada na relação com a área envolvente, isto à medida que a gramática urbana cede, a rua perde o sentido condutor, ou de encontro. Nela já não se dá qualquer teatro colectivo, e perde a capacidade de arguir, formular ideias, funcionar como uma razão produtora de sentido. 

Estas cidades têm vindo a desagregar-se no esforço para que as coisas que têm para ver, em vez de proporcionar o tédio, possam agora divertir. E um pouco à semelhança dos eventos que se criam nas redes sociais, nestas “tudo se passa, mas nada acontece”. António Guerreiro vinca como “na cidade turística governa de maneira coerciva a lógica da sobreposição recíproca do consumidor e do objecto de consumo, isto é, os turistas tornam-se a própria atracção do turismo”. E o mesmo se passa, sensivelmente, no campo da literatura, em que os leitores cada vez mais se organizam como grupos saindo em excursão, e cuja identificação se prende com esse vago sentimento de se estar fora, no estrangeiro, nalgum lugar que deve distrair-nos pelas provas que se vê forçado a apresentar, documentando a sua estranheza. Já não se procura a sensação do mundo numa posição fronteiriça, mas há um desejo de participar na simulação, no ambiente de feira, nesta interminável volta de carrossel que Guy Debord anunciou em A Sociedade do Espectáculo ao dizer que “a organização técnica do consumo (…) levou a sociedade a consumir-se a si própria”. Com os cafés tomados pelos turistas, por esses leitores de livros que se compram nas lojas dos aeroportos, correspondendo ao seu ensejo de romper com a rotina, o mundo recebe-os na sua representação mais artificial, enquanto parque temático, centro comercial, casino, facilitando esse acesso ao mesmo, esse reencontro estéril consigo, do leitor que já não abdica dos seus privilégios de utente ou consumidor. Essa fauna que com os seus apetites e o seu dinheiro hoje atravessa e desfigura as cidades, firma um pacto devastador em busca de distracções e divertimentos. Se antes o urbanismo supunha sistemas de controlo e domínio dos fenómenos, isso deixou de existir a partir do momento em que a lógica do mercado se impôs, não dando mais margem a esse tipo de preocupações, e abrindo caminho a esse abatimento que é a cidade genérica, a tal substância urbana proliferante, sem limite, sem centro nem periferia. O modelo desta cidade, diz Koolhaas, é o aeroporto, o seu habitante é o turista, e a sua actividade principal é o shopping. Damos, assim, por uma transformação imparável que sujeita os próprios habitantes a um exílio em que ficam como animais de fundo para ilustrar os postais dos turistas. E assim o Rossio é cada vez mais “uma praça para fazer chorar”, como escrevia Cesariny no poema “barricada”. “Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.”

Resta assim erguer essa barricada e lançar essas “substâncias urbanas que são como detritos”, e nenhum lugar seria melhor para se imaginar novamente um futuro à escala humana do que o café, fazendo dele uma resistência frente a esses lugares onde se concentram “os despojos da modernidade”, sob o domínio do consumo rápido e do lazer instantâneo. Agora que a rua se tornou um simples resíduo, um dispositivo organizativo, um mero segmento do plano metropolitano contínuo, e com o turismo a ser encarado como a grande panaceia e a solução para economias em permanente crise como a nossa, é natural que a pressão das cifras actuais da população que continuam a disparar vá produzindo um efeito de erosão do velho mundo, dizimando a substância existente. Assim, e com a persistência da obsessão concêntrica, todos nós estamos transformados em gente das pontes e túneis, segundo Koolhaas, cidadãos de segunda classe na nossa própria civilização, privados dos nossos direitos por essa tonta coincidência do nosso exílio colectivo do centro. Os nossos cafés mais majestosos são pontos de pressão dessa fórmula que faz de todo o espaço um corredor, uma zona de passagem. Assim, nesse manifesto que é “espaço-lixo” Rem Koolhaas diz-nos que a Cidade Genérica é o que resta depois de grandes sectores da vida urbana terem passado para o ciberespaço. “É um lugar de sensações ténues e distendidas, de emoções escassas e distâncias, discreto e misterioso como um grande espaço iluminado por um candeeiro de mesa-de-cabeceira. Comparada com a cidade clássica, a Cidade Genérica está sedada (…) Em vez de concentração – presença simultânea – na Cidade Genérica, cada ‘momento’ concreto afasta-se dos demais para criar um transe de experiências estéticas quase inapreciáveis.” O arquitecto adianta ainda que esta difusa falta de urgência e insistência actua como uma droga potente, induzindo uma alucinação do normal.

E se é tão difícil hoje encontrar um grupo de jovens artistas reunidos nalgum obscuro café como aconteceu em tempos, no Hermínius, por exemplo, ali na Almirante Reis, uma gente debruçando-se numa mesa à parte sobre os destinos da geração a que pertencem e as novas expressões com que buscam descrever os seus conflitos na pintura ou no poema, é fácil perceber como a literatura tem dado sinais dessas tantas portas que se encerraram, confinando-se em meras alucinações do normal, narrativas que deslassam, com as suas descrições embolorecidas, efeito da climatização hoje comum a todos os espaços. Assim, hoje o lugar não produz grandes consequências, a geografia abate-se, o território é servido como uma breve ficção captada em holograma, e tudo reconduz a uma evocação do banal, nessa amalgama de simulacros. Não seria inútil conceber uma teoria literária que fosse a par dessas questões hoje levantadas no campo do urbanismo, reconhecendo como muito daquilo que se escreve e publica reflecte essa condição genérica, essa apreensão da realidade como lugar de sensações ténues e distendidas, de emoções escassas e miragens que esvaziam todos os nossos impulsos. Em “espaço-lixo”, Koolhaas declarou o triunfo do Pladur, esse material tão adequado a uma cenografia cartografada e em periódica remodelação, e a literatura forçada ao consumo rápido segue pelo mesmo caminho, e responde cada vez mais ao consumo que se faz nas livrarias sujeitas à rotação acelerada dos produtos, esse das lojas duty-free dos aeroportos que funcionam como um desvio ocioso na ausência de melhores oportunidades de entretenimento. Temos assim aquilo a que Koolhaas chama de “existencialismo diluído com a intensidade de uma garrafa de Perrier”. E é curioso notar como mesmo os cafés vivem cada vez menos de servir as bebidas da paciência, a chávena de café e o copo de vinho ou o chá com rum. Não se trata de passar umas horas, mas matar tempos mortos, e quem visita aquele café provavelmente visita-o pela primeira e pela última vez, sendo a Cidade Genérica fundada por pessoas em trânsito, determinadas a seguir adiante. Isto, diz-nos Koolhaas, explica a insubstancialidade das suas fundações. Diz-nos ainda que a condição de estar ‘em trânsito’ está a tornar-se universal, e que, em resultado disso, o aeroporto se impõe como modelo, operaando como um concentrado tanto do híper-local como do híper-global… E, ao ritmo actual, “ao tornarem-se cada vez maiores, equipados com mais serviços não associados às viagens, [os aeroportos] estão em vias de substituir a cidade. 

À medida que as portas se fecham, em vez de lugares que aproveitavam o exterior da cidade como um teatro colectivo, temos essas zonas de isolamento, em vez dos cafés temos os hotéis, os quais implicam “um encarceramento, uma prisão domiciliária voluntária”. Koolhaas vê a forma como estes, em conjunto, “descrevem uma cidade de dez milhões de habitantes, todos encerrados nos seus quartos, uma espécie de animação invertida – a densidade implodida”.
O sinais desta implosão estão por toda a parte. E se é difícil escapar ao diagnóstico de que “a rua morreu”, as frenéticas tentativas da sua ressurreição, tornam-nos habitantes de fantasmagorias patéticas. “A pedonalização – pensada para preservar – canaliza simplesmente o fluxo dos condenados a destruir com os seus pés o objecto da sua presumida veneração”, nota Koolhaas. E, nisto, não há propriamente uma fragmentação, porque as partes continuam ligadas ao todo, mas é pior, porque essa massa escapa ao controlo de um gesto arquitectónico, tal como os romances actuais se erguem de acordo com princípios gerais e técnicos, numa autonomia que frustra o autor, que em vez de surpreendê-lo, subjuga-o, força-o à posição daquele que se limita a receber um ditado, a estar às ordens de uma função total que o ultrapassa. Assim, se vai esvaziando não apenas o repertório clássico das derivas literárias, o seu campo de investigação, como fica em causa a própria ideia de transgressão, pois já não existe uma lei contra a qual se pode conspirar e consumar algum tipo de gesto ofensivo. De algum modo, mesmo aqueles gestos que pretendem agredir são deglutidos nessa híper-escala, tornam-se elementos carnavalescos, mas irrelevantes. Há um efeito de estabilidade que determina que tudo, mesmo os actos mais absurdos ou desesperados, se alinham numa tabela em que se calculam desvios comportamentais que são “sempre” de esperar. A literatura torna-se uma patologia, e passa a ser encorajada como mais um escape; a revolta torna-se mais um sintoma, algo como uma indigestão. Sem fazermos parte de um desses clubes que, fundeados e amarrados nalgum porto, tendo o mar se retirado como estratégia de evasão, dependiam da imaginação e do talento dos seus membros, dessas tripulações ao sabor do vento que toca as palavras aladas para zarparem, sem isso a arte e a literatura apenas ensaiam novos modos de capitulação.

Em tantos outros momentos da história os homens sentiram o mesmo desencanto, a mesma sensação de fim-de-mundo, o mesmo esvaziamento pulsional, mas tal como registou Max Horkheimer no final da vida, estamos cansados de saber que “é verdade, o indivíduo não pode mudar o curso do mundo”. “Mas, se a vida inteira não for o selvagem desespero que se revolta contra isto, o indivíduo não chegará a realizar o pouco de bem, infinitamente pouco de que é capaz enquanto indivíduo.”

Se estamos cada vez mais cercados de uma cultura que se define pela sua banalidade inofensiva, regressar aos cafés é regressar a esses lugares perdidos onde são possíveis ainda os encontros amorosos e as conspirações, o debate intelectual e a bisbilhotice, esses lugares onde chegamos infectados pelo medo e pelas angústias que se respiram por toda a parte para ali nos sacudirmos delas, alimentando esse “excesso em nós de a vida a ver-se a si mesma sobre um fundo de oceano infinito provocando um desejo imenso de literatura, que é a mais irrepreensível das éticas” (Eduardo Prado Coelho). “Quem nunca entendeu isto, quem nunca pensou que estava deitado sobre a areia coberto por um tecto de estrelas e que cada estrela era um prego em chamas enterrado na carne, quem nunca calcou a cabeça para dentro da água e depois a puxou pelos cabelos até que os olhos se tornassem escamas, esse poderá ser professor, ter cátedra aberta com porta para a rua e falar de hedonismo.”

Se nos vão faltando os cafés, persiste em nós esse desejo de escrevinhar, esconjurar demónios interiores, e é através das memórias de outros que o vamos fazendo, aproveitando as anotações que fizeram aqueles que nos precederam, e que puderam ingressar nos cafés como numa “academia platónica” – assim os definiu nos primórdios do século passado Hermann Bahr. Ora, nessa academia nada se ensinava, mas o que se apreendia era a sociabilidade e o desencanto, lembra Claudio Magris, que tinha no Café San Marco, em Trieste, o seu ângulo aberto a uma variedade impetuosa que lhe permitiu iniciar-se no seu ofício enquanto prodigioso cartógrafo da Mitteleuropa. “Pode-se conversar, contar casos, mas não é possível pregar, fazer comícios, leccionar. Cada qual, à sua mesa, está próximo e distante em relação a quem tem ao seu lado (…) Neste lugar do desencanto, onde já sabemos como o espectáculo termina, nem por isso perdemos o gosto de assistir ou a indulgência para com os lapsos dos actores, não há lugar para falsos mestres, que seduzem com falsas promessas de redenção aqueles que têm uma ansiosa e vaga necessidade de fácil e imediata redenção.” Assim, aquilo que ali cada um por si aprende é “a agarrar-se à madeira, sem medo, porque o naufrágio também pode ser salvação”.